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Contos-->Cal e Flores Para o Doutor ABC -- 29/04/2002 - 21:13 (Jactâncio Futrica) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Cal e Flores para o Doutor ABC ( I )


Um bêbado atacado de lirismo e filosofismo em pleno velório. Haja estômago pra agüentar um tipo desses!

O cara me chega às 9 da manhã (sóbrio) no velório do tio, na capelinha municipal no. 5, ao lado do sumidouro... derrama algumas lágrimas de crocodilo... mostra-se fraternal com um monte de gente cujo nome ele nem se lembra mais... informa-se sobre a ficha médica recente do falecido... comenta casos similares... diz 50 vezes que “cada um tem a sua hora”... começa a se chatear... e lá pela uma e meia da tarde descobre que o enterro tá programado só pras quatro e meia. Como a fome e o tédio já começaram a bater, resolve dar um passeio pelas redondezas e fazer um lanche...

Por volta das 3 horas ele está de volta, revigorado. E bêbado! Lambido! Empenado!

O acontecimento, antes monótono e ordinário, torna-se pra ele um cenário riquíssimo de reflexões e implicações antropológicas, metafísicas e mitológicas. Seu espírito _ agora cheio de arrojo e musicalidade _ vibra com a descoberta de novos ângulos da realidade, finas deduções, vislumbres revolucionários sobre a transcendência fundamental que paira entre a essência do não-ser manifestado e a excrescência do existir-sonhado... Neste momento ele se sente capaz de escrever a obra última e definitiva do gênio humano (como pensou Heidegger ao produzir sua goma esquizofrênica).

Então, já não cabendo em si de amor e auto-contentamento, começa a bailar pelo aposento, molestando cada um dos presentes com uma enfiada de abobrinhas filosóficas (com direito a um bafão de pinga & pastel de carne moída). Em pouco tempo as únicas pessoas não constrangidas na sala são o defunto e ele, o bebum, que pensa estar abafando. Ele se sente pousado naquele ponto exato onde o herói, o poeta, o anjo e o cientista se encontram e se integram. Está convencido da extraordinária agudeza de seu pensamento _ engano que só a magia do álcool explica. Frases insossas e sem nexo, às vezes de extremo mau-gosto e impropriedade lhe parecem inspirações divinas. “A estrela-mãe um dia chama de volta ao seu seio as centelhas que irradiou”... “É preciso ter a valentia de uma flor e a doçura de um furacão”... “A torre de cada igreja é um dedo a nos apontar o reino dos céus”... “As nuvens querem obscurecer a luz, e esta se vinga, prateando-as”... “Tio Aparício é agora um raio de luz, viajando entre as esferas”... “A vida é um rio de dor, que deságua no oceano do Êxtase”... “Deus é o grande computador cósmico!” E, lógico, não podiam faltar aqueles três fatídicos comentários. Número 1- (Contemplando o defunto com olhar mimoso, a voz transbordante de paz): “Parece que está dormiiindo!..” Número 2 - (Fazendo meneios desfalecentes com a cabeça): “Ele está tão sereno!” Número 3 - (O desabafo cru de uma alma ferida): “Que MEEERDA, hem!!”

Hora do enterro, e lá vai o nosso batuta, ainda emocionado e militante, alugando o ouvido de todo mundo com sua criatividade inesgotável. Chegando ao jazigo da família, pra extremo constrangimento dos seus (e deleite de muitos), esta vítima do alcoolismo, julgando fazer um belíssimo papel, trepa na sepultura e pede a atenção dos presentes. Com a língua enrolada e o cérebro incendiado de glória, começa a discursar.

_ Meus senhores, minhas senhoras! Causa-me muita pena não possuir os dons oratórios que o momento exige. Confesso que me sinto vacilante e acabrunhado ante à preclara assembléia que ora se reúne ao pé deste ataúde _ eu, que sou um homem tão simples e tristonho... Peço pois desculpas a todos se não pude conter meu ímpeto. Foi imperiosa _ eu diria até, avassaladora _ a necessidade desta expansão, de modo a extravasar um pouco da mágoa que ora me enche o peito! Visto não ser eu orador, conto apenas com a condescendência da simpática e seleta assistência...

Ali está nosso homem! [indicando o defunto] _ este que foi sempre a razão primeira de nosso ser e que hoje é a razão de ser desta dolorosa despedida! Este! que até ontem fora o mais venturoso dos mortais, acariciado pelas mãos fagueiras da fortuna... Este! que tem por auréola a luminosidade das virtudes imorredouras e o cocar sagrado da consideração pública!!

Embora seja, talvez, o mais relapso de seus prosélitos, sempre fui um admirador entusiasta das inquebrantáveis e preciosíssimas excelências de sua alma! Eis aí mais um motivo por que não pude resistir à tentação de homenageá-lo com esta breve alocução. Oh, Deus, quanta dor! Francamente, não sei se terei frieza o bastante para seguir até o fim! Se, por acaso, explodir num pranto convulsionado e esbravejante, aqui na frente de todos vós, não o julgueis como fraqueza de ânimo: sou forjado na velha têmpera dos bravos _ bem o sabeis _ mas, acreditai, sob esta velha carcaça curtida pela vida, guardo uma índole sentimental e amorosa ao extremo! Peço a todos que me perdoem e amparem...

Adorados amigos, minha alma arde de veneração! Como conseguirei expressar condignamente a solenidade deste momento?? _ Ai, pobre de mim! que só posso oferecer-vos os pálidos clarões de uma inteligência enfraquecida, e as mortas cores de uma imaginação extenuada! Deixai pois que arrisque timidamente algumas palavrinhas de adeus a este morto brilhante... Quisera eu ter ao menos a eloqüência necessária com que pudesse revestir meu tosco fraseado... Quisera que minhas palavras compusessem um ramalhete das mais lindas flores e se desfolhasse em apoteose sobre a sua cabeça amiga!

Triste e irônica fatalidade! A foice funérea vibrou no pescoço do melhor dentre todos nós!.. Extinto está o Último dos Indígenas!! _ como ele próprio se definia... A barbaridade cega do destino acaba de cortar o fio da existência de uma criatura verdadeiramente preciosa! Preciosa não apenas por seus dotes espirituais; preciosa não apenas pela opulência de seu intelecto, mas, outrossim, por sua magnífica contribuição à instituição do ensino médio e aos pendores arcádicos de nossa Jacupiaçu do Sul! Sim, meus senhores, sua vida foi um poema! Era ele um visionário! Um esteta! Ele aspirava ao infinito, senhores!!! Águia de possante vôo, seus ideais encontraram eco nas naves do templo de Deus! E é com o coração retalhado pela mais cruciante das mágoas e com a alma enlutada pelo mais escuro do pesares que encaro esta tumba sinistra que ora se escancara como uma boca faminta e insolente!

Um desalento enorme, um tédio infinito pela vida me assoberba ao ver tanta inspiração, tanta nobreza d’alma, tanta vida, tanta esperança, tanta sedução _ tudo desfeito em pó a um caprichoso aceno da Parca fatal... Como expressar com palavras a profundidade de nossa dor?! Como definir o breu deste abismo que se abriu em nossos corações?! A brutalidade deste golpe é de tal rudeza que chega a embargar-me a voz e faz com que as palavras me saiam estertoradas em soluços. [Obs.: não há o mínimo indício de espasmo em seus lindos gorjeios, apenas o demagogismo pedante e engrolado.] A dor lancinante que me subjuga os sentidos _ como bem podeis ver _ não me permite relembrar por inteiro o conjunto das preciosas qualidades que faziam de titio Aparício a mais estimada jóia de nossa sociedade! Sinto-me, de fato, envolto pela mais tétrica e caliginosa das noites! _ negra como o pecado; lúgubre, trevosa, esfuziada de lívidos e sinistros espectros! Ó, senhores, olhai com os olhos de vossas almas todo este terror!.. o vento a zunir pelas arestas dos rochedos, semelhando vozes humanas a estertorar gemidos... as cataratas do céu a despencarem sobre a terra... Tudo negro e convulsionado... tudo cheirando a cinza e enxofre!.. Ó titio Aparício! Ó estrela polar de brilho alvinitente! ó arrebol fulgurante da clarividência! _ por que nos deixastes sozinhos, jogados a nossa própria sorte em meio a este vale de lágrimas? Levai-me a mim também, titio, eu vos imploro!!! Por que nos abandonastes?! _ nós, pobres nautas, que agora nos vemos obrigados a lançar nosso frágil batel nesta rota inconstante! [Ele assume ares de sonhador, levanta os olhos pro céu, com um sorrisinho frouxo, afetando um súbito e melancólico contentamento:] Deixais, no entanto, titio, um legado inestimável de exemplos sublimes, um rastro diamantino de ações ilustres, e a lembrança indestrutível de uma existência sem mácula...

Convenhamos, amigos, é um abalo tremendo ver cair por terra, vencido pela luta sem tréguas da vida, aquele que parecia ser o santelmo sagrado que nos encaminhava nesse oceano encapelado! Este respeitável ancião, em que se reproduziam os costumes patriarcais... este emblema da bravura moral! protótipo da generosidade!.. deixa ele um grande vácuo aberto dentro de todos nós, o qual o tempo não será suficiente para encher, porquanto jamais serão varridas de nossa lembrança as infinitas e louváveis qualidades que tornavam sua alma um verdadeiro diamante a irradiar chispas luminosas de inúmeras e multicolores facetas!

O que é o homem, afinal?! _ Um ser pela metade! Um ente estropiado posto entre o nada e o túmulo! Desabrocha como a débil flor ao orvalho matutino; mas apenas o astro do dia dardeja seus raios, murcha, definha e seca! O que é o homem, distintos condiscípulos? O que é o homem? eu vos pergunto! _ Uma sombra furtiva! Um fiapo de palha arrebatado pelo vento! É a água que corre por terra para não mais voltar! Omnes morimur, et quasi dilabimur in terram, quae non revertuntur.

Ó orgulho humano, como és baixo e mesquinho ao pé do sepulcro! Ó homem! ó cinza soberba!.. de que valerão tuas glórias quando uma grosseira lousa de concreto descer rangendo para selar-te na eterna e negra solidão do jazigo! Da mais eminente águia da ciência moral ao mais tosco dos protozoários, convergimos todos para a mesma linha de chegada: VALA! Debaixo de sete palmos somos todos do mesmo tamanho, irmãos! e a recompensa é igual para todos nós: um paletòzinho de madeira sob medida e um passaporte com visto permanente para a Cidade dos Pés Juntos!

Colhei num cálice as purpurinas lágrimas desta viúva, amigos! Sim! Guardai-as como uma relíquia sagrada, pois jamais haverá no mundo uma substância tão pura quanto o néctar destas pupilas! Coitadinha! _ tão jovem e já viúva! Não faz muito que tio Aparício, já entrado em anos, se apaixonou por aquela jovenzinha que mal se despedira dos alegres e despreocupados folguedos da infância... a cândida violeta modestamente oculta entre os silvados!.. a estrela pequenina rebrilhando no azul do infinito... a avezinha feliz a desferir gorjeios de celestial harmonia por entre os ramos floridos da jaboticabeira!.. Ó gardênia odorosa e inebriante! uma estonteante emoção me invade ao relembrar o júbilo permanente que dominou titio nestes últimos anos, desde o dia em que encontrou em vosso coração um sacrário de afetos condigno a fazer-lhe par na aventura da existência! A diferença de idades e o murmúrio dos invejosos não vos impediram de consubstanciarem vossas almas num laço indissolúvel de suavíssima doçura! Era o carvalho vigoroso que pedia à madressilva o aconchego das lianas perfumadas; o jequitibá adusto que à cálida florzinha pedia o calor balsâmico das pétalas odoríferas. Sim!.. e o que há demais nisto?! É justamente quando o sol de nossa existência chega ao zênite da vida _ quando nossa cabeça começa a pratear-se e quando o coração solta o hausto supremo em que manifesta o verdadeiro conhecimento das coisas _ que sentimos a necessidade de um peito onde encerrar as nossas últimas esperanças e ilusões. É nesta quadra da vida, já vencido o vendaval das contrariedades, já apaziguados os arrebatamentos anárquicos da mocidade, que com maior exigência se impõe a necessidade do aconchego feminino... perfumado pelas carícias e _ por que não? _ pelos fogosos atrevimentos de uma Lolita em flor! Parabéns, jovem tia Dolores! pois em meio ao torvelinho da conturbada sociedade de nossos dias, permanecestes sempre este mesmo diamante sem jaça, a nos envolver a todos no luar de vosso amor. Como Romeu e Julieta, Abelardo e Heloísa, Fernando Collor e Rosane Matta, enlaçados num doce amplexo, tio Aparício e titia Dolores trilharam risonhos a cabreirosa estrada da vida, alheios às emboscadas e percalços do caminho! Com efeito, o amor entre dois cristãos é a mais bela coisa que a natureza criou! É como aqueles finíssimos licores que o tempo torna ainda mais preciosos. Pois se a felicidade é o fim supremo da existência, o amor _ esse puro e sublime sentimento, base de toda a criação, fluido misterioso roubado aos céus por trigueiros serafins _ o amor é o talismã único que possa abrir ao homem a porta secreta das delícias infinitas!

O meu peito arfa de satisfação, titia! A minha alma canta e se dilata na mais suave das alegrias e o meu coração transborda de prazer ao ver vosso rosto se iluminar num prazenteiro esgar de resignação... Podeis ter certeza de que, neste momento, é o espírito de titio que fala através de mim! Consolai-vos uma vez mais, lembrando-vos de que ao vosso querido esposo destes este rebento varonil: o Catatau _ este menino tão estudioso e interessante, que aos nove anos de idade já compõe versinhos de fina lavra, onde se entrevê uma sofisticação espiritual e um bucolismo que certamente é o prenúncio de uma aurora fulgurante de realizações, honras e felicitações gerais!.. Olhai o jardim de vosso lar _ cenário das tranqüilas e santíssimas alegrias matrimoniais _ e suportarás melhor este golpe brutal com que a mão do destino golpeou vossa cornucópia de venturas!

Embora fosse conhecido nos meios social e profissional como professor ABC, para mim ele será sempre o titio-Aparício-de-meu-coração! Pois a ele devo tudo o que sei e sou! Pois dele bebi o patriotismo que me embala! Nele colhi os frutos doces da verdadeira ciência!.. Sejamos francos, senhores: a riqueza de um Cresus não é nada se comparada à lição fecunda que este homem nos deixou! Era ele um aristocrata da alma, não obstante se misturasse e amasse profundamente a ralé ingrata, que jamais soube agradecer-lhe condignamente nas urnas!.. Ele não era deste tempo!! Ele não era deste mundo!! E no entanto jamais se furtou a concorrer materialmente, com sua carne e seu sangue, para a evolução político-administrativa desta terra que todos nós adoramos! Foi ele o mentor intelectual e moral de toda uma geração! Um homem que tinha os pés no chão, embora seu espírito sôfrego, arrebatado pelos ingnoscíveis mistérios da supra-realidade, pairasse sobranceiro em alturas que a nossa débil e vulgar visão nem sonha tanger! As feéricas elocubrações que conduzem ao templo de Minerva eram sua vereda costumeira! Sua verdadeira morada era o Eterno; sua vocação, o Infinito! Contudo, foi ele um homem de ação, um filantropo que bebia na ciência as razões de sua fé!

Penetrado das máximas evangélicas, este nosso padrinho jamais fechou seu coração ao rogo dos desvalidos, levando luz e refrigério a todos quantos recorriam a sua sapiência, concorrendo outrossim com a esmola para o imponente monumento da Religião _ o templo santo da Caridade! Mesmo nos momentos em que a sorte lhe foi madrasta, ainda assim seu coração palpitava pela grandeza de nosso município e do nosso idolatrado Brasil! Ele sabia que a admiração dos séculos vindouros seria sua única recompensa... Apóstolo fervoroso do trabalho, possuindo no mais elevado grau o dom da abnegação, sua vida foi uma seqüência ininterrupta de esforços tendentes ao bem estar da comunidade! Por isto, estou certo de que esta cova tão venerável que ora me serve de tribuna, será por muito tempo regada por uma verdadeira chuva de lágrimas!

Titio! oh, titio! nosso redentor, nosso mártir! Como me lembro daqueles momentos mágicos que passei em vossa companhia!.. aquelas manhãs sagradas em que presidias ao hasteamento do pavilhão auri-verde no patiozinho dos fundos, o hino nacional retumbando na vitrolinha Philips enquanto as lágrimas escorriam silenciosamente... os sermões edificantes... as revelações hieráticas... aquelas noites frias, ao pé da lareira, em que absorvíamos vossos preceitos em religioso silêncio _ as hesitações de nosso espírito em formação sendo desfeitas por vossas gentilíssimas palavras... A verdade é que deveras nos poupastes da contrariedade com vossas palavras esclarecedoras! Lamentamos apenas não pudéssemos corresponder a tanta gentileza! Mas _ podeis acreditar, titio! _ se faltamos a esse dever, não foi por descaso ou imprevidência, mas pela incapacidade juvenil de absorver devidamente o que tão pacientemente nos ensináveis. Perdoai, titio, toda a mágoa que vos causamos! É no momento da despedida que melhor avaliamos o que perdemos!

Titio!.. luz de nosso ser!.. quem há de duvidar da majestade deste momento?! Apesar das extravagantes circunstâncias que presidiram vosso óbito, bem sei que neste peito cabia um arco-íris inteiro das mais acrisoladas e indubitáveis qualidades! Chega mesmo a ser estonteante conceber tantos dotes físicos e morais enfeixados assim, num único ser! Somente os que tiveram a ventura de conhecer-vos podem aquilatar em justa medida a extensão de vossa grandeza! E é por isto que exulto ao enxergar a reverência e o reconhecimento que perpassa o semblante de todos os presentes! Vossos admiradores vos saúdam através de minhas palavras! Perdoai se elas não traduzem a eloqüência de vosso saber, mas duma coisa podeis estar certo: de que são a síntese da admiração de todos nós pela vossa poderosa personalidade! _ personalidade esta que se erguia sobre o tripé augusto formado pela Filosofia Positivista de Auguste Comte, pela Filosofia Energista do professor Montalvão e, naturalmente, pela religião do Senhor de Todos os Exércitos, o Cristo Rei!

Poucos sabem, mas foi ele, Dr. Aparício Bambirra Caixeiro, o primeiro sacerdote da Igreja Positivista em nossa região. Mais tarde, em 1963, quando se instalou definitivamente nesta cidade, a fim de assumir triunfalmente os negócios de seu sogro _ pai de sua primeira mulher _, entusiasmou-se então pelos ensinamentos do Energismo. Como todos sabem, tal filosofia se fundamenta no poder do raciocínio lógico como fio condutor da existência humana e, acima de tudo, na FORÇA DE VONTADE como dinâmica absoluta dentre as faculdades motrizes elaboradas. De fato, titio era a encarnação daquilo que se pode chamar de “homem-vontade” ou, como ele mesmo se intitulava, um “filho da Tempestade”! Sua tenacidade em perseguir o êxito o levou bem longe! Sua odisséia rumo ao sucesso chega mesmo a ter sabor de ficção, de aventura oliudiana!.. Ele, que começou como um moço simples e autodidata, venceu sozinho, graças a sua aplicação!.. e quando da morte de sua primeira mulher, já havia ampliado em 35 porcento o patrimônio de seu sogro!.. imbuído sempre da mesma conduta retilínea e de uma inquebrantável observância ao Catecismo Positivista.

Como já disse, havia ainda um terceiro pilar na personalidade deste homem singular: a sacrossanta Religião de Nosso Senhor! Sim!.. pois haverá algo que entusiasme mais uma imaginação pura do que esta crença sublime que redime os cativos, que mitiga as dores dos aflitos e que consola os estrepados? Haverá algo mais sedutor a um idealista nato do que esta religião que o sangue de um Deus regou no pináculo do Gólgota?!!

Em 1976, então com 48 anos, tio Aparício inaugurou este que é hoje uma referência nacional na metodologia didática energista: o Educandário Santa Rita do Pissirico. Foi ele um dos primeiros a abordar a Educação com os modernos métodos de administração empresarial. E assim venceu! Triunfou exercendo o mais sagrado dos apostolados: a disseminação da instrução! _ esse evangelho supremo que redime o ser humano de suas paixões grotescas e dos instintos perversos; que nos impele sempre avante, devastando a seara bravia dos preconceitos e das abusões nocivas que tanto têm estorvado a marcha das livres idéias.

1977 _ Aparício Bambirra recebe a Medalha do Mérito Administrativo; ocasião em que pronuncia memorável discurso apologético aos 13 gênios da raça humana.

1979 _ Publica no Diário Jacupiaçusense sua magistral crítica ao livro “O Terceiro Olho”, de Lobsamg Rampa; à sombra do qual é eleito para a Academia Jacupiaçusense de Letras (este augusto sodalício de gênios!).

1980 _ Publica o magistral “Razão e Religião à Luz da Filosofia Analítica”.

1981 _ Mostrando de quanto idealismo é capaz, doutor ABC passa a percorrer diversas fábricas e oficinas mecânicas da cidade, ensinando astronomia e oratória ao proletariado. Na cadeia da delegacia de polícia, recita poemas de Castro Alves para os detentos, e canta árias de Rossini, todo primeiro domingo do mês.
_ É condecorado em palanque com Placa de Prata e Diploma por Prestimosa Colaboração e Engrandecimento da Associação Beneficiente e Recreativa dos Subtenentes e Sargentos da Polícia Militar, na Administração do Sub-Tenente Jactâncio Futricca.

1982 _ Após 3 dias e 3 noites de ininterrupta meditação _ sem comer, beber ou dormir _ doutor ABC descobre as Três Leis Universais das Inter-Relações Fenomênicas.
_ Recebe a comenda de Cavaleiro da Ordem da Redenção da Casa Soberana Real e Imperial Taguatingüense Arghusiana Kriptoniana do Planalto Central, pelo Decreto Real 123/21-A/1, assinado por sua Majestade, Rei Girivaldo I, diploma em sânscrito e tupi.

1983 _ Sob a égide da Igreja Positivista, tem atuação decisiva na criação da Guarda Mirim Municipal.

1984 _ Nosso homem causa terremoto no mundo das idéias com o assombroso “Cânones do Método Analítico”.
_ Ordenado Comendador Honorário da Ordem Ra Yuna do Poder Mental.
_ Recebe o diploma de Amigo do Samba, do Grêmio Recreativo Escola de Samba Independente Canarinhos do Amanhã, tri-campeã do carnaval de Corguinho Seco.

1985 _ Cria o Clube Filatélico Energista.

1986 _ Apoteose! Enfim a consagração pública com a peça teatral didático-especulativa “Jesus Cristo no Divã de Sigmund Freud”.

1987 _ Dr. Aparício volta a brilhar, desta vez como mentor e projetista do muro de arrimo que ainda hoje protege a casa paroquial dos incidentes geológico-pluviais.

Bravo, titio!!! Nossa gratidão ao sacudido e caborjudo varão que tanto realizou em prol da comunidade e, acima de tudo, em prol da santa causa do ensino médio!..

Sugiro aos educadores aqui presentes que organizem neste mês que se avizinha uma gincana em torno da obra literária que nos legou Aparício Bambirra Caixeiro. O seu “Maravilhas do Sistema Solar” _ todo escrito em versos _ poderia ser tema para divertidas competições de perguntas e respostas. O instigante “Últimos Progressos do Gênero Humano” com certeza seria pretexto para acalorados e proveitosos debates em sala de aula. Se me permitem, sugiro para as turmas mais avançadas, o grandiloqüente “Segredos do Pentáculo Pitagórico”, um manifesto logosófico de fortes cores positivistas, onde ao lado de um pragmatismo verdadeiramente espartano, podemos flagrar os ecos da tuba canora de Homero, os trenos maviosos do doce Virgílio e, acima de tudo, um sentimento alevantado de amor pela excelsa doutrina do meigo Nazareno. Como atividade extracurricular, gostaria de sugerir a todos aqueles que se quedam ao exercício do livre-pensamento, a leitura deste que é o momento culminante de toda a obra apariciana, o clássico: “Os Ases da Aviação” _ mormente os tomos IV e IX, onde julgo que titio realmente conseguiu perscrutar a essência íntima do Universo, alçando a Razão Humana a alturas nunca dantes tangidas por nenhum mortal! _ nem por Voltaire, nem por Diderot, nem por São Tomás de Aquino, nem mesmo por Santo Agostinho!.. Para os que se interessam por neurolinguística e oratória, sugiro o não menos genial “Fala, e Vencerás!”

Titio!.. prodígio de nossa terra!.. colosso mental que jamais será igualado! Escolhestes uma carreira certamente das mais difíceis na sociedade contemporânea! Os contratempos e rudezas do caminho em nada ofuscaram o brilhantismo com que desempenhastes vossas funções de lapidário da inteligência! Graças ao vosso idealismo e ao vosso elevado saber pedagógico, hoje espraiamos nossas vistas, embriagados, ante o radiante futuro que deslindastes a centenas e centenas de jovens! Decididamente, senhores, dir-vos-ei que a instrução é a mais bela prenda que um ser humano possa ostentar aos olhos da sociedade! _ o verdadeiro pão do espírito!

Vossa vida foi uma obra de arte, professor bendito!.. esteta maior do nosso vernáculo!.. palindromista insuperável!.. datilógrafo sem igual!.. hermetissíssimo ocultista, senhor dos mistérios de Osíris e Akennaton!.. página mais refulgente na história de nossa municipalidade!.. alquimista da alma!.. zéfiro da madrugada!.. bardo indômito do Vale do Birigüi!.. A clarividência, a propriedade, o método com que haveis perlustrado todos os vossos empreendimentos, a maestria com que tecias uma metáfora, a filigranática sutileza das antíteses, as ofuscantes anástrofes que fariam inveja a um Ovídio!, a inebriante finura dos recursos sintáticos, o requinte com que buriláveis os raciocínios... Uuuuuh!! Confesso que sinto desfalecimentos deliciosos ao relembrar tanta inspiração! Entretanto, amigos, não só de inspiração é feita a obra de um grande homem! mas de incessantes estudos, de profunda meditação, de trabalhos estafantes e de uma inamovível dedicação ao próximo! Com efeito, as irradiações de vosso espírito, tio meu, possuiam a propriedade rara de eletrizar todos aqueles que a maré da felicidade fez arribar ao porto de vossa amizade! Vós nos ensinastes o sentido do verdadeiro amor! Cumulastes o erário moral de nosso município com uma reserva inextinguível!.. como uma cascata, um Niágara de virtudes, que certamente haverá de irrigar o espírito de muitas e muitas gerações de jacupiaçusenses!!

Ó Senhor Deus, Mestre do Universo! acolhei em vossa seleta plêiade esta alma santa que ora pleiteia seu descanso eterno! Possa ele, por vossa infinita misericórdia, gozar da felicidade dos justos na Sião Sagrada!.. Adeus, nosso capitão! Resquiescat in pace. Amen!

[Ufa!! até que enfim!.. Ninguém aguenta mais esse cara. Mas esperem!.. parece que faltou um pequeno detalhe. Ah, um brindezinho, lógico!]

Brindemos todos à saúde deste gentil e exuberante defunto que ora embarca para a sua última viagem! [dizendo isto, ele saca de dentro do paletó uma garrafinha de aguardente e começa a chupá-la como um bezerro sedento, ali, na frente de todos, derrubando exatos 220 ml de cachaça, de um fôlego só. Ele, que já tinha finalizado seu discurso, sente-se repentinamente invadido por um fogo ainda mais incontrolável. Ele tenta, em vão, se segurar, mas sua língua tá coçando como nunca. “Sê breve, e agradarás!”, diria o professor ABC. Algo de misteriosamente selvagem arde dentro dele agora _ algo de furioso e bélico... nobre... patético... altaneiro! Com a cabeça baixa, os olhos marejados e beicinhos trêmulos, profundamente emocionado (não pelo drama do falecido, mas pelo simples falatório em si) ele tenta heroicamente lutar contra este inesperado e renovado alvoroço espiritual deflagrado pela pinga. Levanta o olhar ao céu, pedindo a Deus que o detenha; a imensidão do firmamento resplendendo no espelho de seus olhos!.. Respira fundo e, cerrando os punhos junto ao peito, retoma a palavra, explodindo numa arenga grandiloqüente e vociferante: ]

_ Evoé, marujos!!! A gesta de Aparício Bambirra ainda não terminoooou!!! Uma canção ainda reboa na mansão dos astros!.. O fogo eterno, devorador das eras e dos mundos, prossegue sua marcha invencível! turbilhonando por entre as miríades de galáxias até o mais ínfimo grão de areia!!! Em algum lugar entre as estrelas, Aparício galopa agora, como um guerreiro em seu cavalo de fogo, escoltado pelas potestades do Vento, da Luz e do Trovão!!!... De minha parte, tio Aparício! afirmo que o maior tesouro que nos legastes foi capacidade de acreditar num sonho!!! Minha herança é avançar ereto e altivo, rompendo caminho até o coração das intempéries, obstinando sempre no ideal solar da linhagem dos cavaleiros do Graal!!! Sou filho dos cataclismos e amigo dos loucos e insurretos!!! Minha herança é cavalgar sobre os abismos, empunhando o estandarte do Dragão e a espada da Serpente!!! Minha herança é a linha do horizonte! e meu destino, o portal dos mundos!!!

Sim! Vossa saga não foi em vão, meu velho! Vós nos legastes a ira dos vulcões!!! Vós nos fizestes crer no poder do Verbo e da Lenda!! Vós nos legastes a chave do Templo... a insígnia do Leão... e o archote flamejante que nos guiará a salvo até o núcleo das trevas!!! ... ...

[ Depois de chatear e constranger a todos com mais quarenta minutos desta oratória solene e idiota, um mendigo extraviado que aparecera por ali (também trêbado!) faz um aparte, protestando: “Chega cum essa merda, ô zé-muié!!!” Surpreendido, o orador tropeça e cai em cima duma caixa de isopor com as ossadas da família, espalhando-as aos pés da viúva (que entra em crise nervosa). O crânio de seu avô sai quicando ladeira abaixo até a aléia principal do cemitério, enquanto ele sorri, olimpicamente _ perfeitamente recomposto _ convicto de seu classicismo e envergadura moral...

Ao passo que seus pais e esposa não sabem mais onde enfiar a cara, ele, por sua vez, pimpão e cheio de belas maneiras, assume ares de senador romano e vai envolver a já quase desfalecida viúva, tentando afetar um abraço de homem forte e calejado. Circunspecto!.. Cheio de bafo e de moral.



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