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Contos-->Noite de Gala -- 29/04/2002 - 00:00 (Jactâncio Futrica) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Noite de Gala


Cachorro que engole osso,
é porque tem confiança no cu”


A festa ia muito galante e animada a bordo do Tibúrcio C., a meio trajeto entre Rio e Santos. 1989 já vem rebentando mais adiante. É noite de Reveillon, uma beleza! Um grupo de jovens bonitos e desenvoltos, mostrando-se mais loquazes que de costume, reúne-se em separado pra cafungarem um “FELIZ ANO NOVO” confeccionado em coca sobre uma reluzente bandeja.

Destaca-se entre eles um rapaz de vinte e poucos anos, fisionomia iluminada, elétrico, mal cabendo em si de inspiração... Depois de alguns golpes de caratê boliviano, tomado pela euforia, ele se apercebe pela primeira vez em sua vida de que o ser humano é também capaz de voar, e de mover montanhas, de entrar no fogo sem se queimar, de explodir uma parede com a força da mente... e daí por diante. _ “Doidão, hem?!” _ cutuca um companheiro mais experiente, percebendo sua atitude já um tanto bandeirosa...

Um sentimento homérico ferve em suas veias alteradas; um chamado das potências transcendentais, um tesão, uma grandiosidade, uma braveza, uma ânsia de heroísmo que lhe sacode as entranhas... o copo de uísque prestes a esfarelar-se entre seus dedos. “É isso! é isso!”, exulta ele, admirando-se de como pudera ter sido tão simplório durante toda sua vida, até uns poucos minutos atrás; de como pudera ser tão cego até então pra todo um universo de possibilidades e poderes que estavam bem à frente do seu nariz, o tempo inteiro... Pareceu-lhe ouvir a voz rouca de Robert Plant: “Many many men can’t see the open road...”, e Page destruindo com a sua Gianini Megatrip...

Há vários nomes pra isso: revelação, iluminação, iniciação, ordenação, revolução, cheiração, quarta-dimensão... Qualquer que seja o nome, o fato é que se trata de uma legítima conquista espiritual; um cetro inalienável que não mais lhe escapará _ ele tem certeza _, pois tudo o que ele sente agora lhe parece muito óbvio... muito certo pra que deixe de sê-lo depois, mesmo quando cessar o efeito da brizola. Uma visão de mundo completa e fechada se lhe apresenta sem o menor esforço; uma cosmologia brilhantemente simples e libertadora, uma paixão nova, um fogo virginal que lhe irrompe simultaneamente dos sete chacras! Sua perspicácia parece abranger violentamente tudo a um só tempo; a vibração de cada átomo do universo tornadas quase que palpáveis. Mas _ o que é mais precioso! _ ele capturou a verdadeira essência de seu ‘eu interior’). Ele, Odário Lúcio Evangivaldo, haverá descoberto a chave do tesouro de sua divina interioridade.

Retira-se do aposento com passadas marciais, trincadaço... No convés, ele fita o horizonte por alguns instantes. Empertigado. O semblante carregado de profundo mistério, a magia do vento a lamber sua pele e a deslizar por entre seus ricos cabelos, o ar a encher seu peito com as mil e uma lendas que pairam na noite, a natureza ajoelhada a seus pés! Como num comercial dos cigarros Malboro.

Ele olha o oceano e o sente como um de seus filhos. Talvez com sete ou oito braçadas o atravesse de um lado ao outro... De fato, Odário Lúcio _ o homem, o mito, o Lorde das Águas _ primeiro exulta e, num salto espetacular, mergulha do navio, explodindo num grito de bravata. Um berro tremendo!.. traindo ademais um leve quê de esnobismo...

Ele nada velozmente em direção a aventuras e conquistas inauditas. Uma vibração incontida o impele pro desconhecido. Nada, absolutamente nada, poderá detê-lo agora... O navio se distanciando, silencioso, ele ainda se vira pra olhar os tristes simplórios que lá se vão, sumindo no breu, numa festinha chué. “Vão ver se eu tô lá na esquina, cambada de farofeiros”_ zomba-se ele, satisfeito.

Uma maravilhosa sensação de liberdade! e num clarão ele se dá conta da alarmante mediocridade de seus antigos sonhos _ a caretice, a bundudice em que sempre vivera chafurdado, julgando-se muito original em todo o seu nhenhenhém de papagaio compulsivo, de amostra-grátis de tudo quanto há de mais típico e mediano: um bobalhão antropológico, sociológico, etológico e a puta que o pariu; um mero sintoma do contexto cultural; uma excrescência natural e necessária de seu habitat; um corolário barato de behaviorismo; uma figura facilmente definível, seja por um réles comentário de bêbado de esquina, seja por um abalizado corpo multidisciplinar de estudiosos compenetrados. Sua profunda e bíblica vulgaridade no final das contas cabia inteira numa piadinha curta e grossa... Mas ele, o novo Odário, o príncipe das marés, sabe agora que se livrou desta inhaca ancestral de uma só estocada.

Antes de atingir tal iluminação, a imagem que tinha de si no futuro era a seguinte: um cardiologista de renome _ brilhante, charmoso e cheiroso, praticante de mergulho submarino, consumidor de alta costura, bom gourmet, membro dum clube de aeromodelismo, bom entendedor (ou enganador) de vinhos, charutos e mitologia grega, inteirado em tecnologia, bolsa de valores e relações internacionais... eventualmente num iate, eventualmente numa festa chique, eventualmente num congresso em Genebra, eventualmente pilotando um helicóptero particular, com uma modelo famosa a tiracolo... exalando glamour e distinção a cada gesto... Mas (aí é que tá a coisa!) o que umas boas largata de brizola não podem fazer com a cabecinha de um moço ambicioso e convencional de classe média-alta?! Sim, o que acontece agora é que seus antigos projetos se lhe afiguram melancolicamente ridículos em vista da majestade do fogo no cu, de que ele agora é detentor! Ele atingira um estágio superior de libertação: nada mais do que a roupa do corpo será necessário pra que ele vare o mundo, levando sua verve dionisíaca por onde quer que passe... soberano, sábio e com o bicho no corpo! “Ê mundão véi sem portêra!!!” _ ele exulta, jocoso, dando soquinhos n’água.

Porém, como de praxe, é aquilo de sempre, só pra variar: o ‘efeito’ vai passando e a bunda vai crescendo. Aquela valentia toda, que do pó veio, ao pó retornando vai!.. Foi difícil, relutante, mas enquanto a situação ia se tornando grossa e negra, ele era obrigado a aceitar, decepcionado, que a magnífica tocha da genialidade estava se transformando num foguinho cada vez mais pálido e estropiado. E então, de grau em grau, lá foi ele, descambando, decaindo na hierarquia cósmica... De deus a semi-deus... daí a prodígio... ... a portento... ... a herói... ... a grande homem... ... a cabra-macho... ... a bom sujeito... ... a carinha dichavado... ... a almofadinha cretino... ... a palhaço... ... a pobre-diabo... ... ... até o grau do mais patético e fodido desespero.

#

Não podemos desmerecer totalmente a ‘viagem’ do nosso amigo. Droga é isso mesmo: tu fica empenado e sai pisando torto pra fora daquelas risquinhas de giz que julgava ser o trilho da vida. Aí fica fascinado com as novas visões do labirinto. Novas clarezas, novas noções de justiça... Se tais incursões são válidas ou não, só o capeta saberá! É uma dialética, possivelmente insolúvel, entre dois diferentes estados de patetice... Quanto ao drama do Odário, o que aconteceu foi simplesmente isso: o entusiasmo da coquêine, aliado ao êxtase juvenil da descoberta filosófica, o levou a uma ação física à altura do frenesi mental. É fácil de compreender. É perdoável. O desafio do mar foi simplesmente irresistível! Porém, tirante nossa compreensão e simpatia, continuemos observando... De minha parte, estou torcendo e rezando muito por ele, mas tenho uma forte desconfiança de que a naba vai entrar feio...

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A claridade do dia é o cenário onde damos substância a nossas vidas. Fisicamente, o mundo se nos apresenta bem definido; as coisas são apenas coisas e não símbolos vivos de nós mesmos... e nossas pernas são pernas, não um par de remozinhos canhestros.

Agora é noite, e já passou a hora de ir pra cama. Odário está aceso, alucinadamente lúcido, mas, ainda assim, arrulhando mecanicamente a velha e idiota súplica: “Santo Cristo Ressuscitado, fazei disto tudo apenas um sonho mau! E acordai-me entre os lençóis fofinhos de meu leito!”

Ele saboreia a sensação da ‘dançada’. Feia!.. “Com tanta festa de Reveillon por esse mar afora, por que logo eu, talvez em toda a história da navegação, fui ser o primeiro idiota a ter uma idéia dessa?!” Realmente, é vexante. A coisa é tão improvável, tão absurda, que Odário se enraivece, sentindo-se alvo de alguma perseguição funesta. Deus deve estar de sacanagem com ele _ só pode ser isto!..

Com certeza, a sentença mais terrível que pode se abater sobre um sujeito é a de não mais poder contar consigo próprio... E Odário, pela afobação, já esgotou o único recurso de que dispunha: sua acalentada disposição atlética. Nadou, nadou e nadou, praticamente em círculos, e agora tá pregado!

Ele nunca esteve tão consciente na vida, mas e daí? _ Que utensílios e artimanhas cunhar com mãozadas d’água? Que inteligir de razoável nessa imensidão líquida? senão a existência duma vertiginosa infinidade de formas de vida inumanas zanzando de um lado pro outro, procurando algo pra engolir... É a noite primeva! Absoluta! Inapelável! Nenhum interruptor de luz ao alcance das mãos... Um cigarrinho até que iria bem agora, não, chegado?.. Eis aí uma noite perfeita pruma bela estrepada!

Um navio de carga já passou por ele, sem que ninguém ouvisse seus gritos. Ele nadou como um louco, chegando a ficar a 200 metros da embarcação, nadando e esgoelando ao mesmo tempo... Mas ela se foi, indiferente e majestosa, como que deslizando em manteiga... Odário imaginou um monte felizardos lá dentro, sequinhos, jogando cartas e sorrindo. Sorrindo como se zombassem dele. Sentiu-se esnobado e até humilhado (como um playboy ultrapassado na rodovia por um carro inferior ao seu).

Como um zagueiro driblado, cego na tentativa de salvar sua honra, ele adoraria cometer um pênalti desnecessário (no caso, afundar, bombardear de alguma maneira aquele navio petulante).

Mas que roubada, hem gente-fina?! A uma hora dessas cê poderia muito bem estar em casa, vendo o especial do Roberto Carlos na Globo, enroscado com as almofadas do sofá. Ao invés disso, apenas o céu estreladíssimo sobre a sua cabeça _ lindo, se observado lá do navio, mas, do seu ponto de vista, decididamente tétrico e fantasmagórico! O manto glorioso da crueldade cósmica... E abaixo, esta coisa úmida que até hoje você só usara pra matar a sede e praticar esporte. E o silêncio sobressaltado, a perpétua escuridão das profundezas, onde seres de péssima aparência se chocam em combates horrendos... Goste ou não de ecologia, você tem grandes chances de se tornar parte da cadeia alimentar da fascinante bicharada que vive aí embaixo...

A minúscula bolha animada do ego flutua, imponderável, num mar de pesadelo. Sim, o mar se mostrou mais poderoso que a doideira da coca. E o pior pesadelo, convenhamos, é ser atropelado pela realidade! (Pelo menos Odário não se esborrachou logo de cara quando resolveu pular do navio: quantos jovens cheiradores não tiveram esse privilégio quando cismaram de pular da janela do apartamento, achando que iriam sair voando como o Capitão Chiclete, ou que dariam uma roladinha maneira ao bater no chão e dali já emendariam outro vôo pra cima do poste e dali pro terraço do prédio vizinho disparando raios laser pelo cu, como aqueles patetas de filme japonês).

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Um cardume de lagostins se aproxima velozmente, nadando como se fossem sardinhas... vermelhos, olhos negros estatelados, pinças afiadas e nervosas. Hirtos de volúpia! Odário sofre a sensação antecipada de ser retalhado de todos os lados ao mesmo tempo, por milhares de tenazes cascudas. Ilusão e terror certeiro!.. Vem agora um ser tosco, amorfo, rudimentar, mais antigo que o mais antigo deus dos homens. Vem muito devagar, remando com duas perninhas magricelas pra impulsionar seu corpo massudo, semelhante a um grande tronco apodrecido. A boca parece uma gruta, sempre escancarada, donde projetam-se dentes desparelhos. A cabeça, que se emenda sem distinção ao resto de corpo, tem a expressão de uma estupidez não menos que geológica; o cérebro, uma minúscula massinha paleozóica. Sua presença entorpece a vítima, a qual levará dezesseis meses pra deglutir.

Por acaso há notícia de alguém que derivou pela noite em alto-mar e que sobreviveu pra testemunhar que ali não existem criaturas fantásticas? _ Deve haver, mas nesse dia Odário perdeu o telejornal... Além do quê, é muito provável que existam criaturas muito raras espalhadas pelas cavernas, abismos e cordilheiras do oceano. Sendo as profundezas do mar um terreno menos explorado que a Lua, tais criaturas acabam sendo avistadas só de 100 em 100 anos por algum marinheiro, que depois ainda leva a fama de bebum e mentiroso. Só pelo fato de terem escapado à catalogação científica até hoje, esses animais já nos inspiram uma certa sensação de respeito. Agora, imagine a feiúra dessas coisas misteriosas... Deve haver muito bicho horripilante rondando essas águas, genuínos demônios do mar que, de quebra, não estão nem aí pros anais da ciência. Eu mesmo já vi uma galera romana fantasma em Jericoacoara, de madrugada. Por que então não haverá Megophias ou homens-peixes canibais passeando por aí?

Pequenas massas de água fria se deslocam e sobem pelas pernas de Odário, parecendo preceder alguma aparição sinistra que nunca vem. Ele se debate como um pato alucinado, fugindo, espreitando, fugindo... desnorteado em meio ao tráfego de miragens que lhe roçam as pernas. Enormes e pesadas vesículas de um gás cinzento rebentam na superfície, espalhando no ar um cheiro de feijão azedo. São peidos de um titã _ ele imagina. O homem era ainda um incipiente animal rosnante, Moloc era apenas uma larva... e já então pulsava vagarosamente o coração do leviatã que ainda hoje habita sua fossa entulhada de degetos e carapaças queratinosas.

O movimento langoroso dos esqualos reverbera-se nos nervos tesos de Odário. Quando esses bichos fazem a sua dança, o exasperante não é tanto a certeza da morte, mas a perfeição feral do ato, onde cada um deles, mesmo na coreografia feérica do momento, é a justa incógnita de uma equação bem mais que fatal. Eles estão dançando agora, e como são requintados, estão saboreando pacientemente os insinuantes aromas do prato.

É então que, após uma introdução muito suave, infinitamente triste, ergue-se entre as ondas mansas uma melodia estranha, de notas contínuas, lembrando um canto monástico. Com certeza, não são monges gregorianos a recitar seus responsórios monótonos. É a liturgia oceânica _ a mesma que assombrou a esquadra de Xerxes na travessia do mar Negro; o amálgama tenebrosamente grave de antigas vozes, talvez saudosas das remotas e convulsionadas idades da Terra: silvos e bramidos de krakens, hidras, sereias, tritões, iguanos, medusas... E da fabulosa serpente chifruda, que só ao fim de eras abandona seu antro e sobe à superfície pra soltar uma medonha blasfêmia contra o mundo da luz... O concerto é de uma beleza petrificante. Acometido de terríveis calafrios, Odário tá na iminência dum ataque cardíaco... o peito porrado por um bombardeio constante de sons graves, que chegam a crispar a superfície da água. Um monstruoso gemido raspado faz-se ouvir esporadicamente; algo de uma ferocidade tal, que faz brotar cabelos brancos, instantaneamente, na cabeça do sujeito.

Estado agudo. Surto incontrolável da imaginação. Invasão. Imolação. Estupefação. Calamidade orgíaca de almas e sombras que deslizam a toda velocidade; pipocam, reviram-se, estrebucham, encabritam-se. Metamorfoses giram como ciclones, ao redor, dúzias delas. Nos redemoinhos, uma profusão de manifestações infernais se esboça, transmutando-se continuamente numa espécie de plasma mefítico, intercambiando-se numa rapidez desvairada: parecem querer mandar um alô, mas são logo chupadas ao interior do vórtice pra dar lugar a outras aparições, infinitas, uma pior que a outra. A sonoplastia do espetáculo é algo sinistro o suficiente pra tirar um ser humano da razão em dois tempos... Odário suplica, fremente, com as mãos crispadas junto ao peito: “Oh, Senhor! Tudo menos isso! Tudo menos isso, Senhor Misericordioso!..” Pois então! _ Deus é pai, não é padrasto. Passou! Pronto! aquilo passou.. A polvorosa agora é silenciosa... completamente silenciosa. Uma placidez nervosa. O silêncio aflitivo da loucura! A nova leva de visitantes que chega desta vez se faz notar apenas por uma sensação, um pressentimento de rapidez, e por uma exalação de malignidade que penetra até os ossos... É bom frisar que no mundo das assombrações não existe o tempo; não é possível se distinguir segundos de horas, ou horas de meses, pois a única sensação de tempo que se tem é uma desesperadora certeza da eternidade do suplício. E eis que o silêncio é quebrado por uma voz ao longe... duas... três... várias... Choros, música, gritos, portas que se batem, discursos inflamados, repique de sinos, conversas sussurradas, risos, guinchos de vagões, ecos de preces em latim, deboches infantis cantarolados, gargalhadas ensandecidas, imprecações possessas, farfalhar de asas, jingles de shampoo, baques e rangidos de coisas que desabam, clamor de turbas amotinadas, lamentos inconsoláveis, uivos de danação: tudo isto misturado e num crescendo, cada vez mais próximo. Caretas humanas começam a passar em rasantes pela flor d’água, como cometas. As expressões, via de regra, são, digamos assim... atrozes. Assaltado por este espetáculo de deformidade, Odário sente uma súbita aversão por sua tão usual forma humana, como se de repente se tornasse óbvio que o invólucro humanóide fosse uma das coisas mais imundas que um ser vivo possa vestir. É o horror dos horrores: sentir-se desconfortável e enojado debaixo do próprio couro. O estômago revira violentamente... E lá está ele, gritando de nojo e revolta, batendo as perninhas e vomitando, fazendo a maior cena no meio daquele marzão muitcho lôco. Seus gritos se perdem na imensidão, de forma quase lírica.

Sob um domo transparente submerso, reúne-se em circulo uma irmandade de criaturas esguias, aparentemente humanas, cerca de 3 metros altura. Todos carecas, envergando túnicas brancas; todos sofrendo de úlceras horríveis, mas mostrando-se impávidos e serenos. Os rostos são de talhe indo-iraniano, porém anormalmente cumpridos, evidenciando uma grave e cega crueldade. No centro da roda há um aquário esférico, onde uma moréia de aparência arcaica circula com movimentos pérfidos. Ela está velando pela “Irmandade”, com um olhar maníaco de coisa-ruim. Os magrões agora estão curvados, cabeça ao chão, reverenciando sua rainha _ a asquerosa moréia _ que entrou em transe. Neste antiquíssimo ninho de mistérios interditos à raça humana, um coral de vozes nasaladas repete, num idioma antediluviano, uma oração ainda mais antiga, imemorial, onde parece haver uma enumeração linear e desconexa de nomes insuportavelmente solenes, opressivos, híbridos _ como se a nomes de antigas entidades como Tmolos, Piracmon, Sislau, Caronte, Radamanto, se fundissem termos zoológicos: Lycosa raptoria, Goniopsis cruentata, Araneus cribarius, Latrodectus mactans, Amblyrhynchus cristatus... Nomes inomináveis, profundos, perfeitamente tétricos. É o paroxismo do terror metafísico... A Lua se transforma num rosto esperto e efeminado _ notadamente de uma sub-raça _, que repete, fazendo beicinho: O Bicho! O Bicho! O Bicho!

O problema de Odário a esta altura é conseguir controlar sua imaginação, que funciona danadamente, febril, prenhe de todas as quimeras. Cada movimento da água lhe sobressalta como se fosse o ataque final. Cada sopro de vento lhe evoca uma multidão inteira de bizarrias gargalhantes e malfazejas. Passado o susto maior, ele baba. Languidamente exausto, ele baba gostoso. Zen! Finda a babada, torna a ficar nervoso, e o descontrole retorna em ondas avassaladoras. Uma miríade de bestas de vários tipos e tamanhos, deste e do outro mundo, se prolifera livremente em sua fantasia. Ele sabe que já foi percebido, pois mesmo o predador mais inepto consegue detectar uma vítima a quilômetros... “Por que essas pragas não me devoram logo, em vez de ficarem embromando?!”... Aquele rosto ignóbil e risonho, sobreposto à Lua, ainda lhe anuncia, em falsete, a ameaça de um ogro supremo: “O Bicho! O Bicho! O Bicho!..”

Mesmo engolfado neste mar de fantasmagoria, uma parte de si prossegue, impassível, em medições e cálculos: todos, praticamente, seríamos felizes se pudéssemos dispor, pelo simples bom senso, da tecnologia que se adquire nessas situações extremas; se aprendessemos a dar o devido (e caríssimo) valor aos detalhes aparentemente triviais da existência, sem precisarmos nos fuder a ponto de já ser tarde demais pra que isso faça alguma diferença. Odário suspira: “Como seria aconchegante viver num pântano infestado de crocodilos, víboras, formigões peçonhentos, insetos de meio quilo...” Enquanto qualquer um de nós prossegue, década após década, preocupado em manter as mais fajutas aparências, ele se disporia alegremente a dar qualquer vexame, diariamente, em troca de sair daquela situação: cagar em público; ganhar a vida como travesti em alguma ruela imunda; viver servilmente, beijando os pés de algum patrãozinho de merda; ser o zé-mané, o bostinha risonha do arraial do Corguinho Seco, alvo de humilhação pública permanente; seria roçador de pasto, bóia-fria, escravo, mendigo, andarilho; faria faxina com a língua no banheiro do INPS _ qualquer coisa... “Quanta ilusão! Como as pessoas se consomem e aniquilam sua juventude de espírito por nada! Eu... bem, agora eu sei o que realmente conta nessa vida. Sei como é sagrado abrir os olhos de manhã e enxergar tudo o que há em volta... É foda!.. é realmente uma pena que eu esteja perdido!”

O cara mandou bem, mesmo! “Ilusão” _ eis aí uma palavra que deveria ser mais lembrada e divulgada, a toda hora, todo minuto. A ilusão a que me refiro (a mesma que Odário vislumbrou em seus insights de condenado) é a ilusão de que o dom da vida é mensurável; de que nossa alma é refém de um caprichoso repertório de conveniências e cotações; de que a felicidade nos aguarda pacientemente até o momento em que um raio mágico de luz haverá de descer sobre nossas cabeças, nos tornando donos de super-poderes maravilhosos... Os estudiosos ainda não exploraram o suficiente este fato psicológico tão crucial, que nos faz comer tanta mosca. O dom da vida nos berra na cara, mas o real pode deixar-nos loucos; preferimos então olhá-lo de tabela, por meio de ilusões pré-fabricadas, e aí é que dançamos! Não podemos colher simplesmente a dádiva da vida; precisamos de uma legião de paspalhos nos aplaudindo; só assim conseguiremos ser felizes!.. A influência da patetice histérica é bem mais forte no espírito humano do que o legado de Jesus Cristo, dos profetas, e do retardado Raul Seixas!

Odário procura se lembrar das pessoas mais fodidas na vida que ele já viu pela frente. Chega à conclusão de que a maioria na verdade se trata de gente muitíssimo afortunada, faltando-lhes apenas saber disto. Lembrou-se da Claudiéle, empregada doméstica em sua casa. Ela não tem família; veio do interior (onde ao menos tinha uns tantos amigos) pra morar com uma família de gente empinada e puxa-saco, onde não goza da mínima consideração. Mas ela tem tem um quartinho de fundos pra sonhos tristes (porém honestos, quentes, enxutos); uma cama de molas soltas recoberta com uma mimosa colcha de retalhos; uma arca com objetos queridos; uma gravura de Cristo e do Sagrado Coração; uma bastante ração de restos bem requentados... Que bendita capitulação seria voltar a terra firme e então abraçar uma vidinha simples e respeitável. Juraria devoção eterna à Imaculada Rainha do Santíssimo Rosário. Casaria-se com Sandra, sua ex-namorada, que embora um tanto vagabunda, era um verdadeiro relicário de pureza em vista do geral de nossas moças.

#

Acabou-se a corda, enfim. O frio é insuportável. Metabolismo zero. É o fim! A hora de afundar... Um adeus amargo e louco. O agudo apelo final... Com efeito, extinguir-se suavemente num leito bem disposto, aninhado entre no seio da família que se despede, pode até ser doce, mas sucumbir sob o fascinante e impassível esplendor dessas trevas é simplesmente hediondo... Ah, desgraça filha-da-puta! ô porra nojenta! ô diabo do caralho!.. A alma encontra-se reduzida a um tênue eixo explosivo. O final se aproxima. A fúria aprisionada... os sonhos... os vôos e aspirações estupidamente abortados... as manhãs iluminadas... os possíveis amores... as expedições aventurosas... os dias festeiros de sol... as farras... as trepadas picarescas... as realizações de vida... a fúria, a fúria cega é só o que resta...

Mas deixemos de observar de fora e experimentemos um mergulho mágico na alma de Odário.

O que vemos então? _ Um grande curto-circuito, um fuzuê infernal de dimensões astronômicas! Sóis que desabam, constelações que se despregam da abóbada incendiada... É isto mesmo! qualquer cabeça-de-bagre torna-se bem arrojado nessa hora, porque a mente exige o seu resgate a qualquer custo, o resgate da sacralidade do eu.

Gigantes mongolóides sacodem os mundos pelo escalpo. Os veneráveis hieróglifos de pedra, as tábuas da Cananéia, as rezas, os preceitos, os sagrados ensinamentos, a Herança Clássica, a recém-proclamada dignidade das massas _ tudo isto transformou-se numa enorme e tumefata cloaca empalada por uma tempestade de raios. Mestres barbudos, do alto de suas montanhas sagradas, fazem aquele conhecido sinal: mão direita (espalmada) batendo no topo da esquerda (fechada). Explosões pirotécnicas de flores, enguias, fetos e bezerros. Tótens, confetes, muletas, gafanhotos, espantalhos de serafins aviltados, sutiãs, velocípedes, sapatos esbagaçados, dentaduras, bonecas decapitadas... Todas as superstições do universo, com o dedo em riste, pregam seus sermões, num clamor insuportável; suas gargantas escaldantes, fenomenais, regurgitam o magma fabuloso das mentiras obscenas. Atavismos inomináveis escorregam, espessos. Selvageria! Perversidade! Uma gênese inteira de aberrações blasfemas evolui e transmuta-se em ciclos ininterruptos. Coisas indescritíveis escoiceiam-se mutuamente, emitindo grunhidos guturais de puríssimo ódio (um abafamento infernal impera em meio ao burburinho de berros afogados e modorrentos madrigais entoados às divindades do lodo). Sons de tuba, desafinados e desconexos, soam entrecortados por agudíssimas gargalhadas histéricas. Centauros descadeirados debatem-se em pátios de hospício. Feiticeiras com olhos de gato, sentadas à sombra, desfiam seu interminável rosário de urucubacas.... Musas esplêndidas revelam-se descaradamente em orgias com serpentes e lagartos, e as fadas se revelam madrinhas dos mais repugnantes abortos. No horizonte, uma multidão de corpos agoniza pendurada nos varais e, pelo chão, um animado bacanal de cadáveres... Ágeis e macilentos espectros acenam com mortalhas negras, como que eletrocutados, mostrando-se loucamente alegres: eles saúdam, em algazarra, a parada militar que se aproxima. Um desfile triunfal. Centuriões abrem caminho pro cortejo: uma velha descabelada, mais morta do que viva, vem carregada em seu trono, coroada com desvanecidos louros de plástico. Aclamação e pompa! Nos magníficos estandartes, o grande símbolo da megera obsessiva nos fita de olhos vidrados... Tufões umbráticos avançam pela noite. Monstruosos ídolos, em aparições colossais, emergem de um oceano tenebrosamente místico. Colapsos de universos estrangulados e de vetustas mitologias que clamam em idiomas sacrílegos. Desintegrações estupendas da matéria bruta intercalam-se à simples e indolor falência da matéria orgânica, subitamente transubstanciada em monturos de papel picado. Há uma cataclísmica porradaria; deuses e deusas que disputam entre si os antigos privilégios: quem vai ser deus de quê... quem vai presidir a terça-feira, o nascimento dos bezerros, a hora do crepúsculo, a sorte na pescaria, o fogo, o vento, a chuva, o trovão, as florestas, a gravidez das ratazanas, a construção de pontes e pinguelas, a dor de cotovelo, o desperdício de sabonete, as manifestações alérgicas, a fofoca, os enganos de rota, o amor, a gonorréia, a colheita do milho, as encruzilhadas, os embebedamentos, as quedas, as vinganças, as epidemias, a habilidade matemática, as batidas de trem, os empreendimentos industriais... e daí ao infinito. São trilhões de divindades emboladas numa luta cruenta, e incontáveis mundos e civilizações pisoteados no desenrolar desse bafafá titânico.

E, apesar de tão grandioso espetáculo, paira em tudo uma ausência aterradora: algo que fora o ar e o sangue de nossa alma nos abandonou. É como abrir a porta da rua de manhã e constatar que o encanto do mundo foi quebrado; tudo e todos se foram em silêncio, durante a noite, só restando a poeira trazida e levada pelo vento. Fomos triplamente corneados; o tapete, puxado debaixo de nós. No chão, com a bunda quebrada, percebemos que já não somos filhos de nada, mas apenas cães. Um erro irreparável foi cometido e a patética vergonha vem cobrar seu preço...

Silêncio... expectativa... suspense... Trombetas reboantes e um rufar de tambores anunciam a chegada de Sua Majestade... ... ... Júpiter?.. Odin?.. Jeová? _ Nada disso! É o Cu! Nada mais, nada menos que ele... o tirânico e antipático Cu, que vai se erguendo majestosamente no firmamento... soberano... absoluto... apoteótico e monumental... senhor do Universo... Eis a famigerada entidade. O Sol Negro! O filho-da-puta do Cu! _ idealizado a um grau absurdo, no único intuito de causar revolta. Mostra-se em grandes planos, com movimentos orbitais cinematográficos, com direito a um solene efeito estéreo-digital.

O número principal vai começar agora: sim, o Cu vai cantar... E ei-lo a piscar com um ruído enjoativo... O que estará tentando dizer com esses enigmáticos latejamentos? Estará recitando sua saga gloriosa? Estará contando vantagem, como um grande índio guerreiro? Estará embargado pela emoção?.. É então que, mostrando enfim a que veio, o Cu começa a tragar o Universo, num espetáculo vertiginoso. Estrelas, quásares, cinturões de asteróides, nuvens de poeira cósmica, galáxias inteiras, o tempo e o espaço vão sendo devorados pela horrenda entidade. Num refluxo, eras e mais eras se precipitam, em espirais, pro abismo deste furúnculo sideral, em cuja face oposta a boca torta de Brahma põe-se a babar os aeons...

No final é sempre assim: o Cu triunfa sobre a piroca mole que antes fora a tesuda pilastra do mundo... A beleza não tem mais sedução. As maiores delícias da vida tornam-se coisas anódinas, ligeiramente nauseabundas até. É a hora da Merda, a apoteose do Cu... O Pai, a Mãe, o Filho e o Espírito Santo foram esmagados como formigas. Acabou-se. É o fim. O mundo acabou. E sua extremunção é uma oração excrementícia arrematada com um chocho e desenxabido peido final.

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O céu é jovem novamente. É manhã. A água é pura e viva. Odário bóia suavemente sob a luz dos primórdios do mundo. O vento, como tudo, novamente tem uma alma. Uma alma forte. A natureza novamente tem seus gênios, e os gênios novamente respondem aos sacrifícios e invocações dos oráculos. (Um meteorito acaba de mergulhar no espelho turqueza do mar).

Odário aporta numa costa habitada por um povo belo e pacífico, de raça helênica, onde é feito rei. Sob seu cetro ergue-se uma nação belicosa, alcoólatra, adúltera, medonha.

Seu cadáver inchado e mordiscado rola nas águas, trazendo na cara um rijo sorriso de triunfo.


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