É PRECISO MONDAR-SE O TRIGO
Délcio Vieira Salomon
A opinião pública ainda está aturdida diante da reação do Planalto ao episódio Waldomiro Diniz. Pelo noticiário somos levados a pensar que nem a sórdida denúncia de Collor envolvendo a filha de Lula, na campanha eleitoral de 1990 abalou tanto o presidente e os militantes do PT.
Fico a cismar com meus botões: se ele estivesse no lugar de JK face à rebelião de Aragarças e Cachimbo ou, então, exposto à fúria sanguinária de um Carlos Lacerda, infernizando-lhe a vida, não suportaria uma semana e renunciaria mais rápido do que Jânio Quadros.
Triste é constatar que Lula temeu a CPI, quando ele mesmo deveria ser o primeiro a envolver todo o Congresso e todo o Judiciário, na maior investigação histórica da corrupção nesse país, dando, assim, mostra de que a transparência em seu governo não é mera figura de retórica, a valer apenas como “slogan” de período eleitoral.
A Medida Provisória proibindo o bingo com o conseqüente esvaziamento da CPI acaba de demonstrar o que jamais poderíamos esperar, a saber: despreparo político para governar o país. Deixou em todos nós a impressão de que, diante de mais um abalo desse porte, todo seu aparelho de governo se desmoronará como castelo construído sobre areia.
É sabido que o mal não é o jogo em si, apesar de assim não pensar nosso presidente, ao baixar a referida MP. Nosso amigo Sacha Calmon em sua coluna de sábado (EM 06.03.04) tachou o ato de hipocrisia, lembrando, inclusive, que jogos do tipo “bingo” estão respaldados pelo artigo 195 da Constituição.
Acrescentaria: estão “sacramentados” pela própria Bíblia. Entre outras passagens, lembro Ester, 3,7: “foi diante de Aman lançada na urna a sorte, que em hebreu se chamava Fur e caiu a sorte no duodécimo mês chamado Adar”.
Aliás, no momento mais trágico da história ocidental, a crucificação de Cristo, está registrado no Evangelho que os soldados romanos, repetindo costume oriental, lançaram os dados para sortear quem ficaria com a túnica do condenado: “dividentes vero vestimenta eius miserunt sortes” (Luc: 23,34).
Não sou capaz de pensar que Lula acredita na honestidade de seu ato de baixar a referida medida. Bachelard nos lembra que “para alguém se fazer crer, é preciso ele mesmo crer”. E como não conseguiu me fazer crer, concluo que ele mesmo não crê na sinceridade e na eficácia do que fez.
As ocorrências me forçam a cogitar em outra coisa pior para um governante: Lula está mal assessorado. Como ainda confio que ele acordará em tempo, move-me o desejo de repassar-lhe a sabedoria camoneana revelada no canto 8, estrofe LIV de Os Lusíadas:
“Oh! Quanto deve o rei que bem governa
De olhar que os conselheiros ou privados
De consciência e de virtude interna
E de sincero amor sejam dotados!
Porque, como está posto na superna
Cadeira, pode mal dos apartados
Negócios ter notícia mais inteira
Do que lhe der a língua conselheira”.
Sabedoria de governar, pois baseada na desconfiança, o que o Poeta revela no canto seguinte, na estrofe XXVII:
“Vê que esses que freqüentam os reais
Paços, por verdadeira e sã doutrina
Vendem adulação, que mal consente
Mondar-se o novo trigo florescente”.
Lembro que mondar-se o novo trigo significa arrancar as ervas daninhas que crescem junto do trigo, ou seja, livrar-se dos aduladores que influem nocivamente no espírito do governante. O momento é oportuno, pois o mandato de Lula, tal qual o trigo, está no início da florescência.
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