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Contos-->O desmedido véu de sonhos -- 28/04/2002 - 20:33 (Rodolfo Araújo) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A cabeça de Gabriel voltou-se repentina, trazendo consigo um rosto apavorado com a visão que acabara de ter. Mirava a rua sem fim, acossada por um dilúvio infinito. As gotas construíam uma escultura distorcida, um quadro impressionista. Um cenário túrgido e apaixonante. Começou a correr, com passos firmes e olhar obstinado. Sabia aonde queria chegar. Uma janela aberta. O prédio de esquina aproximava-se. Olhos de lince, Gabriel, dominado pela tempestade e constantemente bombardeado por ameaças de raios, fitava a pequena janela. Dentro do apartamento, uma sombra. Na rua, Gabriel, ofegante e trêmulo. Não conseguia piscar. Suas pálpebras insistiam em contrair-se. Uma fração de tempo poderia privá-lo da visão tão sonhada. Mais uma tarde em vão. A silhueta, seguindo sua rotina de teima, não quis retornar. As gotas perderam a violência e uma fina garoa começou a acariciar Gabriel, vítima de mais uma frustração. O rapaz passou as mãos no rosto. Suas lágrimas perderam-se na tormenta. Seu corpo perdera o rumo. Gabriel deixou para trás a certeza de sua volta. A respiração, antes descompassada, foi substituída por discretos soluços, típicos de crianças perdidas em parques. Voltara dez anos dentro de si. Outra tarde perdida.
Dona Anadir, face rubra, preparava um saboroso jantar para seu filho. Cabelos envoltos no lenço vermelho, mexia o conteúdo da fervente panela. Braços fortes, de mãe. Vagava pela cozinha, à procura de uma colher que havia deixado cair. Sem avisar, um estrondo joga a panela no chão. Um barulho de sola antiga de sapatos rasgou a casa. A porta chocou-se de volta e trancou a casa. Dona Anadir nunca havia visto Gabriel daquela maneira. O filho, tradicionalmente calmo, um verdadeiro "bom-moço", estava trancado em seu quarto. Dali não saiu mais. Até a manhã seguinte.
A torrencial avalanche de água do dia anterior cedeu espaço a um sol-rei, pleno e dominador. Seus raios, soberanos, invadiram o aposento de Gabriel, iluminando suas pálpebras obstinadas, avisando-as que era hora de partir em busca da tão sonhada visão. Ele despertou impressionantemente renovado, abrindo um sorriso que misturava obsessão e certeza de que, finalmente, venceria. Sua mãe já havia partido, assim como seu pai. Gabriel saltou da cama, acarinhou sua pequena cachorra, despiu-se e experimentou andar pela casa daquela forma. Sim, nunca havia sentido-se tão livre quanto naquele momento. Sua alma sofrera uma inversão de valores enquanto o corpo estava ali, recostado em sono profundo.
Gabriel entrou novamente em seu quarto e vestiu roupas leves. Pressentimentos iluminados perseguiam a expressão do rapaz, que chegava a gargalhar, uma vez que sua empolgação não se continha mais em seu corpo. Saiu correndo, pisando mais firme do que sempre, em direção ao ponto de ônibus. O veículo veio rapidamente, o que não era comum. A sorte desenhava o dia para que Gabriel triunfasse. Em vinte minutos, caminhava decidido na mesma rua do dia anterior. Desta vez, o sol abençoava seu desejo. Parou em frente à janela. Pequena. A mesma janela. Fixou os olhos, a silhueta não aparecia. As gotas de suor viam na testa de Gabriel uma nascente terna e sadia. Multiplicavam-se, o tremor dava seus primeiros sintomas, a derrota de mais um dia fazia-se por anunciar. Atônito, Gabriel sentou-se na sarjeta e começou a recordar. Sem parar.
Há dois meses, o rapaz estava ali pela primeira vez. Caminhava com amigos, numa madrugada que rendera prazeres incomensuráveis para um homem de apenas vinte anos. Mesmo naquele estágio nefelibata, Gabriel, extremamente detalhista, reparava nas janelas, até que avistou uma silhueta. Uma seqüência de curvas estonteantes, um sonho noturno que parecia estar ali, em suas mãos. Ele parou e, hipnotizado, ficou. Dois minutos foram suficientes para que tal magia envolvesse a mente influenciável de Gabriel. Puxado pelos amigos, voltou para casa, mas sem esquecer do feitiço sombrio.
Depois de reeditar toda a insanidade, Gabriel aparentava estar com os pés novamente no chão. Disse, olhando pelo asfalto:
- Vou esquecer isto. Foi apenas uma noite. O álcool desenhou aquela sombra para mim. Que fantasia ridícula. Justamente eu. Sim, isso, vou embora, para nunca mais voltar.
Levantou com o mesmo vigor que o despertara para aquele dia. Olhou para a janela como quem desejava despedir-se. Abaixou a cabeça e começou a andar de volta para casa. Porém, um canto começou a invocá-lo. Virou o rosto, mais uma vez assustado. O som vinha da janela. Uma mão branca, feminina, chamava-o. Finalmente, a sombra ganhou corpo. Gabriel voltou, sem sorrir, expressando uma desconfiança normal para quem estava imerso em seguidos infortúnios. Entrou no prédio, subiu as escadas trôpego, pulando degraus. Chegando no quarto andar, a porta estava aberta. O rapaz suspirou e entrou. Não havia ninguém. Seus olhos percorreram a sala e o início das outras dependências. Nada. A mão branca, delicada, um toque indubitavelmente divino, atingiu o peito de Gabriel. As pontas daqueles dedos de fada percorriam o corpo do garoto com uma suavidade que lembrava as doces notas do canto que o chamou. Fim do sonho. Gabriel estava no portal da loucura.
O vento fechou as cortinas. Apenas alguns feixes de luz sobreviventes iluminavam o apartamento. Gabriel direcionou os olhos para trás e, depois, o corpo. Deparou-se com um rosto desmedidamente angelical. Relutou em tocá-lo, mas a alva pele da mulher clamava pela carícia. Com desconfiança, os corpos tocaram-se. Vestida em um véu branco, a jovem abriu um ofuscante sorriso. Era o estopim, a cartada que consumaria a hipnose. Gabriel, embriagado por tamanho encanto, aproximou-se, buscando um contato mais completo, mais uno. Quando o abraço parecia inevitável, a musa barrou o rapaz, espalmando seu peito. Ele observou as mãos aveludadas e, sem entender o que havia feito de errado, deu dois passos para trás. A moça e seu véu andaram no sentido oposto. Ela saiu, foi para dentro de uma das dependências do apartamento. Completamente envolto na cena, Gabriel correu atrás dela, perguntando seu nome. Um canto leve, respondeu, com notas doces, uma sinfonia individual:
- Alva...
Seguindo a voz, o garoto encontrou Alva. O sonho recebera um nome. Novamente, o sorriso atraiu Gabriel. Ele, sem controle, avançou ao encontro de seu delírio. Desta vez, estranhamente, os lábios tocaram-se sem impedimentos. O rapaz, perdido naquele feitiço sem fronteiras, mergulhou intensamente no beijo. Efervescentes, os dois deixaram de lado a amplitude poética do encontro e renderam-se ao instinto, à selvageria da carne. A boca de Gabriel descobria cada centímetro da alva pele de seu sonho, enquanto ela entregava-se progressivamente à loucura que a havia atingido. A unidade, tão almejada pelo rapaz, estava ali, consolidada em carinhos, afeto e devaneios.
Viciado, entorpecido por tal acontecimento, Gabriel custou a sair do apartamento. A lua já havia emergido e ele preocupava Dona Anadir, já que não dera as caras durante todo o dia. A senhora preparava uma grande panela de arroz, quando um assovio vinha lentamente da rua, confundindo os pássaros e incomodando os ouvidos de Dona Anadir. Inquieta, colocou a cabeça para fora da porta. Nunca teve visão parecida. Seu filho, chegando feliz, quebrando a típica seriedade, contrastando com a explosão que vira há uma volta da Terra. Ganhou um forte abraço de Gabriel. A veia do sentimento nasceu no garoto. Agora, em cada manhã, os alvos dedos surgem de um infinito desconhecido a trazerem as manifestações solares e os beijos mais doces. O amor desperta Gabriel diariamente. Não se sabe até quando o mistério estender-se-á. Será tudo real? Alva realmente existe? Gabriel não se importa. Enquanto os sorrisos ofuscarem seus olhos, a vida existe. Viver pode ser um sonho. Por que não?
***

Escritos de Gabriel para Alva

Alva, não partas deste sonho
teu beijo, cruel bálsamo
explode a vida em cada manhã

Trazes o Sol e o pecado
carregas consigo a antítese crucial
o toque fundamental
a vida, sem igual

Sou produto teu
És o canto sagrado das folhas
o arrastar sonolento das estrelas
o brilho tímido do cálice

És o tornado, a tempestade
a tormenta que acalenta
a triste partida
o vácuo entre os braços

És o céu
O inferno das cores
Rompedora de nuvens
Nascente de pulsos

Não partas, peço eu
escravo simplório de teu toque
ouro turvo, o silêncio que brada
teu nome
teu surgir
teu véu.
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