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Contos-->Abrindo Escaras -- 27/04/2002 - 00:58 (Erasmo Junior) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O começo eu lembro bem, quarenta e sete dias sofrendo com aquele velho dentro do hospital universitário caindo aos pedaços, com os estudantes metendo o dedo no cu dele todo santo dia, medindo pressão, furando os braços e nada de melhorar, nada de melhorar. Eu via meu pai definhando e implorando por um fim decente e o melhor que pude escutar dos professores doutores foi, a doença dele é grave, queremos melhorar o sofrimento, a essa altura do campeonato a doença já espalhou para outros lugares do corpo, blábláblá.
Sofrimento melhora?
Eu sei que depois desse tempo todo, no dia em que morreu já fazia bem uns cinco dias que ele não defecava e o cirurgião queria abrir. Eu não sabia mais se pedia consolo para meus orixás ou se chorava e quando fazia um acabava fazendo o outro e me atrapalhava todo. Me botaram para fora do colégio dizendo que o atestado que tinham me dado não valia para nada, eu não sabia mais o que valia ou o que era completamente inútil na vida. Não tinha mais ninguém. Só o velho, não tinha irmãos, nem dinheiro, nem nada, era eu e ele a vida toda. Antes de ir para o hospital, ele vendeu o dente de ouro e comprou uma cadeira de rodas velha da vizinha da rua de trás porque não conseguia mais andar. É claro que ele fez isso sem me avisar e quando eu fiquei sabendo, o negocio já tinha sido feito.
Não agüentava mais dormir na cadeira de acompanhante, do lado da cama dele, com mais três doentes dentro do mesmo quarto, impregnados com um cheiro de urina medonho, comendo pela sonda. Tinha um cartaz bem grande na recepção do hospital falando sobre humanização de atendimento ou algo parecido, parecia mais uma piada de mau gosto. Outra delas foi um vendedor escroto vir me oferecer no elevador um espaço no cemitério Parque das Orquídeas na hora em que a acompanhante de um paciente do mesmo quarto que meu pai tinha me chamado dizendo que ele tinha parado e que estavam tentando reanimar. Meti a mão na cara do desgraçado, ele caiu dentro do elevador cheio de gente e eu o chutei ali mesmo no meio das costelas e na costura do saco, infeliz, como podiam se aproveitar daquele jeito de uma pessoa, todo mundo mandando eu parar, enfermeiros, estudantes, sei lá, me segurando pedindo calma. Cai no choro, vomitei em cima do puto e desmaiei.
Acordei em um quarto vazio na mesma enfermaria que colocaram meu pai com uma dor de cabeça do inferno, a camisa molhada de suor e suja com o vômito. O doutor residente me contou tudo, seu pai teve uma parada, estava com o intestino obstruído, o coração não agüentava mais, ele descansou, foi melhor assim do que continuar sofrendo. Ladainha infeliz essa, pior que a ladainha do casal de crentes que tinha visitado o quarto na primeira semana de internação. Um negão suado de gravata com a bíblia embaixo do sovaco e uma menina magrela com uma camiseta escrito Evangelização Já – movimento Jesus no coração. Falaram coisas bonitas para mim e para o meu pai por uns quinze minutos, tudo decorado, muitos gestos, expressões fortes, palavras de consolo e alívio travestidas em um chamado divino em nome de uma igreja falida, podre, ridícula e demente. Os outros doentes ficavam olhando, de olhos fechados balbuciando, amém, e meu pai nem abria os olhos. Quando acabaram com o grande discurso, me entregaram um papelzinho com uma oração, um desenho do todo poderoso segurando uma pomba branca com um endereço logo abaixo.
Olhei pro negão e falei, vá se foder. Pega a tua bíblia e enfia no, daí a menina falou para mim antes que eu completasse, a gente entende o seu sofrimento, que jesus te abençoe e toque o seu coração com a paz divina, e saíram da enfermaria. Não voltaram mais, graças a deus.
Tinha que enterrar o velho e não tinha nem um tostão furado no bolso, o salário do colégio já era. Tinha ganhado melhor como pipoqueiro do que como porteiro daquela escola estúpida e, se eu tivesse uma arma em casa, ia voltar lá um dia e dar um tiro no meio da cara do diretor que me colocou para fora. Todo mundo gostava de mim, eu cuidava das crianças do jardim e da alfabetização como se fossem meus filhos, eu sempre adorei crianças. Não era justo, mas eu tinha que arrumar dinheiro e enterrar o meu pai, ao menos o caixão. Já bastava ter visto minha mãe e tios indo pra baixo da terra dentro de rede.
Vendi a cadeira de rodas, me valeu um caixão empoeirado e roído. Esperei um mongolóide lavar e pintar o velho e agüentei pouco tempo no velório porque quando as rezadeiras e conhecidos do terreiro vieram me dar os pêsames eu comecei a rir descontroladamente. Ri de gargalhar, quase mijando nas calças, como podia aquilo, eu rindo e meu pai dentro do caixão, com o nariz cheio de algodão e com a boca pintada, faltando o dente de ouro. Quando todos já estavam estarrecidos e indignados com as minhas gargalhadas, comecei a engasgar, ele morreu porque não conseguia cagar, não conseguia mais, todos os médicos ficavam cutucando e querendo abrir e ele morreu, soluço, soluço e cai em um choro convulsivo, incontrolado. Não há mais ninguém. Tomei um chá, me levaram quase desmaiado pra longe do corpo e nunca mais vi o velho de novo.

* * *

A casa parecia ter sido esquecida para sempre. Comida estragada na geladeira, baratas pelo chão, teias de aranha do tamanho de gente, ratos, parasitas, vaso sanitário sem dar descarga, televisão cheirando queimado e sem querer ligar, contas vencidas no chão. A ultima vez que eu tinha estado ali foi para buscar uma toalha para o velho se enxugar no primeiro dia porque a que deram no hospital estava com um aspecto horrível. No mesmo dia eu tinha passado no terreiro e avisado que não ia mais porque não queria ser cavalo nem queria viver dentro de religião nenhuma.
Nem passou pela minha cabeça começar uma faxina ou lavar prato. Deitei na cama e apaguei pelo tempo que fosse preciso. Os dias se passaram, um, dois, três, uma semana, duas, e eu não tinha coragem de colocar a cara para fora, nem de tomar banho, fazer a barba, não tinha coragem nem de levantar para fazer xixi ou beber água. As moscas da cozinha tinham invadido a sala e já entravam no meu quarto, pousando em tudo que era de quina, colocando seus ovos e procriando na imundice.
O cheiro se tornava cada vez mais pungente.
Toda noite era um tormento para eu dormir. Lembrava do velho no caixão, com a boca torta, as mãos no peito rodeado de flores, vai em paz, homem. Vai em paz. Sonhei que ele estava doente do mesmo jeito, todo velho e corcunda, bem velhinho mesmo, dentro do caixão, e que eu ia busca-lo no cemitério. Daí o tempo passava e ele ia melhorando, ficando mais jovem, mais e mais jovem, como se os instantes se desfizessem, de trás para frente, ele ficando tão jovem que de repente tinha menos idade do que eu, de repente era um adolescente cheio de espinhas, de repente era uma criança adorável, como nos retratos que eu via dele quando criança, no colo da mãe com os nove irmãos, ele brincando no pátio do colégio em que eu trabalhava, com o uniforme suado, correndo e chamando a minha atenção, rolando na grama, de repente desaprendendo a ler, desaprendendo a andar, a falar, balbuciando apenas a primeira sílaba do meu nome, seus dentes entrando para dentro da gengiva, o cabelo ficando ralo, andando de colo em colo, cada vez menor e menor. Quando achava que não o perderia jamais, eu o entreguei para a minha avó, que o amamentou uma ultima vez antes de voltar para dentro dela para morrer.
Acordei então com batidas na porta de casa, o cheiro devia ter tomado proporções maiores do que eu esperava e os vizinhos deviam estar com raiva de mim. O luto para eles já tinha passado. Era a vizinha da rua de trás, com um dos seus filhos, um moleque com a metade da minha idade e o dobro do meu tamanho, uma mão enorme, calejada. A porra do dente, ele falou, ela nem olhava na minha cara, a porra do dente que seu pai trocou com a gente era falso, cadê a cadeira?
Me lasquei. A cadeira já era, falei. Vendi para pagar o caixão do meu pai. Para quem, ela perguntou sem ainda olhar na minha cara, você vai ter que se virar porque já tem gente interessada na cadeira se não vai ter confusão. Confusão nada. Eu não sabia que o dente era falso, pombas, como eu ia saber? A boca era do meu pai, se brincar nem ele sabia disso.
Não vai devolver não, é? Moleque durão, fechava os dedos estalando as juntas, quase esfregando o osso na minha cara, então vai ter que pagar. Pagar com o que, meu chapa, eu não tenho nada, estou desempregado, perdi a única pessoa que me fazia companhia na vida e vocês ainda vem fazer uma sacanagem dessas comigo? Sacanagem é o que você fez comigo, seu caloteiro filho da puta, os olhos da mulher finalmente encontraram o meu, cheia de ódio, me fez pagar o maior mico do mundo com esse dente falso.
Já tinha gente na rua olhando. Não posso pagar nem vou te dar nada em troca, falei. Não tenho condições para nada no momento, por favor, sumam da minha frente e não me procurem nem tão cedo –
– pou, o moleque me acertou no ouvido, cai para o lado contra a porta e ele veio para cima de mim, meteu um soco nas costas, no rim, me arrebentei no chão e ele entrou na sala, pegou a televisão com antena e tudo e atirou contra mim enquanto tentava me levantar, completamente desorientado. Me atingiu em cheio abrindo o supercílio e fazendo um barulho de que algo havia se quebrado completamente. Minhas pernas estavam tremendo, não tinha força nos braços e a vista ficou fechada com o sangue.
Isso é pra você aprender a não enganar os outros, caloteiro, falou, não sei se ele ou se a mulher. Pegaram meu passa-disco e foram embora.

* * *

Difícil mesmo foi fazer o supercílio parar de sangrar na base da acetona. Levava uns dois pontos mas eu decidi resolver tudo com um esparadrapo bem colocado, nem sentia a testa direito. No outro dia, cortaram a luz elétrica por falta de pagamento. O meu celular já estava sem cartão há muito tempo, ligação só a cobrar. Meu estomago doía de fome e eu não tinha coragem de olhar a minha cara no espelho, sentia apenas a barba arranhar e coçar como se estivesse infestada. E agora? E agora, meu chapa, era pegar uma corda, amarrar no pescoço e se jogar da cadeira, ou da ponte, ou no meio de um carro. Numa hora daquelas, se não fosse a doença e a morte do velho, eu estaria no colégio, recebendo as turmas da tarde, dando bom-dia aos pais e garantindo que nenhum dos pequenos sairia do colégio sem estar acompanhado por um parente ou pessoa autorizada. Ainda sabia os nomes, de todos eles, maternal, jardim um, turma A e B, falei para mim mesmo os nomes em voz alta e senti os meus olhos ficando cheios d’água.
Nem uma arma eu tinha em casa, não para matar o diretor desgraçado, mas para dar um fim na minha vida miserável. Eu não sabia fazer mais nada, não sabia fazer porra nenhuma além de tomar conta de crianças em colégio. Sem criatividade para pensar em um fim digno para um perdedor como eu, peguei a camisa vomitada, que era a única limpa que eu tinha, e vesti para sair, dar uma volta. Foi quando caiu um papelzinho todo amassado do bolso.

* * *

Era engraçado entrar naquele lugar, cheio de cadeiras, um altar cafona adiante com uma bateria e uma caixa amplificada do lado dos vasos de flores. Na hora em que eu coloquei os pés lá dentro não tinha mais do que umas cinco pessoas esparramadas no galpão. Os dizeres da entrada indicavam que o próximo culto ia começar em uma hora, pare do sofrer, tinha escrito bem grande na porta, letras em itálico.
A princípio nenhum dos crentes tinha me notado ali, mas o negócio foi enchendo tanto que eu tive a impressão de que a cadeira onde tinha me sentado tinha um dono que ia chegar a qualquer momento. Que palhaçada meu deus, quem diria que eu ia parar em um lugar daqueles e me meter em uma fria. Eu podia ter começado a contar as coisas dessa parte, mas a morte do velho serviu como um ponto de partida melhor. Começar com um fim, estranho isso. Quando não tinha mais espaço para gente entrar, ou quando eu já me sentia sufocado e arrependido com tanta gente feia e demente, o negão que eu mandei se foder entrou, aplaudido, e subiu no altar, com a mesma bíblia e com o mesmo halo de suor no sovaco, um cara tocando a bateria e outro no violão amplificado.
Foi difícil encarar algo tão irritante, tão leviano. Houve orações em voz alta, piripaques, choradeiras, gritarias, santos jogados no chão e chutados, canções, sacolas para dízimos, almas salvas do inferno e a minha esquecida para sempre, indagando como eu podia ter ido parar em uma espelunca daquela, no meio de fanáticos. Eu era porteiro mas não era demente, fui batizado na umbanda e não acreditava nem em papai noel, precisei renegar tudo para me sentir menos infeliz. Só o desespero mesmo para chegar a um ponto daqueles, entrar em um lugar sem a mínima noção do que se estava fazendo. No final do culto, enquanto todos cantavam e o pastor se retirava, uma meia dúzia de fiéis distribuía pedaços de pão simbolizando o corpo do cristo. Corri para cima de um desses entregadores, meti a mão e puxei bem uns quatro pedaços para meter na boca de uma vez. Olhei na cara da pessoa com o cesto cheio e era a menina magrela sorrindo para mim, pegue mais, irmão, você está com fome e eu estou muito feliz em ver que jesus cristo todo poderoso entrou no seu coração e o fez esquecer a dor e o ódio.
Amém, peguei mais pães.

* * *

Passei a ir todo dia no culto e, com menos de uma semana, todo mundo já me conhecia e me chamava pelo nome. Limpei minha casa, lavei os pratos, joguei a televisão quebrada no lixo, puxei um gato do poste e tive luz elétrica novamente. Fiz a barba, lavei as camisas, estava me lixando para os crentes, para as intenções religiosas deles, para a salvação de minha alma e o diabo no inferno porque meu único motivo ali dentro passou a ser não um ato desesperado de um desgraçado que não tinha mais ninguém no mundo, mas uma tentativa em ter a menina magrela nos meus braços. Engraçado que eu nem tinha notado aquele dia no hospital, acho que por causa da camiseta estúpida, ou por causa da doença, ou por causa do suor do negão, que era pai dela, pai adotivo, ela disse. Ela era feia, mas era bonita. Ela era linda. Olhos fundos no rosto, um nariz diferente, cabelo sempre preso, eu queria muito vê-la soltando o cabelo, um corpo esguio escondido em roupas de crente. Tinha um sabor de proibição com segredos, um pudor meio obcecado, tentando fugir de mim quando notou as minhas intenções. Cheguei e falei, no outro dia depois dos pães, você é linda, eu vim de novo hoje e vou ficar vindo todo dia só para olhar para você. Ela se fez de doida e saiu para uma das cadeiras da frente, onde eu não conseguia enxergar direito, de costas e distante. Acabou o culto, uma tonelada de besteira igual ao dia anterior e a todo dia despejada no cérebro dos crentes e eu fui atrás dela repetir, você é linda e eu não tenho mais nada no mundo, se não tivesse entrado aqui ontem e te encontrado, eu já estaria morto, sabia? Ela falou, foi deus quem te colocou aqui, não fui eu, deus salvou a sua vida e abriu o seu coração para jesus, e agora vai curar o seu pai. Dei uma risada e falei, menina, meu pai morreu faz três semanas e ela emendou, ele foi curado e agora passou para o reino dos céus ao lado de nosso senhor jesus cristo. Puta que pariu.
Amém. Para de falar em deus e vamos dar uma volta. Eu quero passear com você e conversar.
Passei uns cinco dias cozinhando, pensando nela, insistindo, agüentando os cultos e as esquivas federais. Eu amava o cabelo, a camiseta, o cheiro de alfazema, a presilha de cabelo dela. O rosto encovado. O negão, o pai dela, veio falar comigo no culto, era a primeira vez que me dirigia a palavra desde o dia em que eu tinha mandado ele se foder, meu filho, disse, com os braços abertos já me abraçando, fedendo a suor, você acha que eu tenho uma gota de raiva por aquelas palavras, saiba que eu sou incapaz disso porque nosso senhor pregou que o ódio é a arma do diabo, e aquele dia o satanás te tentou e o fez pensar naquelas coisas e dizer para mim, mas você é forte, tão forte que encontrou a salvação. Aqui você vai ver, a sua vida vai mudar completamente.
Mudou mesmo. Continuei sem emprego, sem dinheiro. Não tinha mais o que comer e minha refeição era praticamente o pão servido no culto. Vendi a minha geladeira, a cama que era do meu pai, o ferro de passar roupas. Fui secando minha casa para ter mais espaço para meu desespero em amar a crente. Estava sufocado do mesmo jeito. Passaram um jornalzinho que tinha um retrato dela do lado do pai com as mãos dadas e os braços levantados no meio dos fiéis e eu batia punheta para aquele retrato toda noite antes de dormir e quando acordava. Sonhava com ela, brincando nos pátios do colégio com uniforme, nem ligava para mim, eu chamando o nome dela mas sem ser escutado. Ainda não tinha esquecido do meu pai, a dor da perda era um pedaço de mim que não parava de sangrar. Então, depois de um tempo nessa agonia, cheguei um dia bem cedo no culto e ela estava sozinha varrendo o galpão perto da bateria; olhou pra mim e assustou quando me viu entrando, teu pai está aqui, perguntei, ela falou que não, pois é com você mesmo que eu vim falar. Se você não quer saber de mim, fala de uma vez que eu vou embora e mais nunca volto nessa merda de culto. Não fale assim, ela choramingou, não fale assim, falo do jeito que eu quiser e pára de me enrolar, eu estou sofrendo. Ela chegou perto virando os olhos e resmungando umas rezas e eu agarrei e meti um beijo nela, de língua, que ela se derreteu todinha e abriu a boca, morrendo de medo de mim, ou morrendo de tesão. Não sei dizer.
Depois dessa, eu já estava envolvido até o pescoço. Todo dia, quando acabava o culto, eu dava umas dez voltas no quarteirão, esperava os crentes irem embora e o pai dela se recolher para retiro e voltava, pegava ela no galpão mesmo e ficava agarrando, eu te amo, eu falava para ela, fala que me ama, repete, repete, beijava desesperado, eu só tenho você agora na minha vida, como eu fui cego naquele dia no hospital. Ela nem falava nada, ficava gemendo baixo, recebendo meu desespero amoroso, o sangue de cristo tem poder. Não dava para saber se gostava de mim ou se era uma fanática que se fazia de doida para um desgraçado. Mas a coisa ia esquentando de um jeito que com pouco tempo eu já colocava a mão nos peitos dela, agarrava, tentava colocar os dedos por dentro do sutiã, beijava o colo, tentava levantar a camisa mesmo que ela resistisse o tempo todo, no fundo aceitando. Quando eu chegava em casa, com o pau doendo de tão duro, batia umas três punhetas seguidas para o retrato do jornalzinho. Eu tinha rasgado a foto separando o negão e os fiéis para poder me concentrar nela. Era um desejo, um amor que crescia dentro das minhas tripas, retorcendo tudo por dentro, eu tinha vontade de chegar para o pai dela e para os crentes no meio do culto e me declarar, vou leva-la embora daqui, vocês nunca mais vão ver a gente. A essa altura, a sala de casa estava completamente vazia. Vendi armário, sapatos, criado-mudo, gaiola velha, panela de inox. Passei umas quatro vezes na frente do colégio, meio que por acaso, para ver se alguém se lembrava de mim. Ninguém. Nem um oi, tio, nem um boa tarde, absolutamente nada. Eu até perdôo as crianças, porque realmente devia ser difícil de lembrar de uma cara tão comum como a minha, mas os pais, sinceramente, me dava nojo ver aqueles putos passarem na minha frente e me ignorarem, quando meses atrás chegavam buzinando na porta do colégio para eu chamar seus filhos. Sai de lá para pensar novamente na minha amada.
Quando eu já estava começando a ficar desesperado de novo com a passividade dela, comecei a meter a mão na sacola que passava para doar dízimos fazendo que colocava uma nota de um real e pegando um monte amassada entre os dedos. Achei que ninguém estava notando até o pai dela vir falar comigo uns dias depois, antes do culto começar. Meu filho, falou colocando a mão no meu ombro, já suando, eu sei que você tem passado muita dificuldade e, nesse momento difícil, tem cometido delitos diários. Não quero lhe ver assim, nessa angústia, fazendo uma coisa dessas, uma coisa impensada. Se você quiser trabalhar aqui dentro, de porteiro, limpando o galpão e cuidando do lugar, eu te pago um dinheiro digno, do jeito que jesus cristo abençoou o pão dos trabalhadores, blábláblá.
Parei de vender minhas coisas porque só tinha sobrado o ventilador e meu colchão. Passei a cuidar do galpão e assim ficava com ela mais vezes, e deitava no chão comigo, levantava o sutiã para eu lamber o bico dos seios e pegava no meu pau duro atrás do altar. Eu gozava nas calças e volta para casa todo melado, atordoado, cada dia mais agoniado tentando pensar aonde aquilo ia dar, mas adiando para depois. Ela quase não falava comigo, me ignorava na frente dos crentes e do pai e, quando a procurava, eu ficava em dúvida se o meu desejo era maior que o tesão dela, que se espremia toda, rezando.
Uma vez, quando fui vender umas cortinas no centro, encontrei dois conhecidos da umbanda, que me esnobaram. No mesmo dia fui falar com a mãe-de-santo que eu costumava visitar e ela falou, meu filho, tome cuidado para não se perder, do jeito que a sua vida está, a coisa vai engrossar. Ela chamou o preto velho e ele me escutou uns dez minutos, fumando o pito fedorento e escarrando no chão. Soltou o risinho fino algumas vezes e me aconselhou a parar para pensar, o que tem de ser vai ser, filho, e escarrava. Mandou eu tomar três banhos do pescoço pra baixo com raiz, sexta-feira não podia, e me mandou ir para o cemitério repetir uns versos. Tomei o banho mas não tive coragem de ir para o cemitério, nem de voltar para o terreiro, nem de porra nenhuma mais.

* * *

A coisa toda foi assim, desse jeito mais ou menos.
Hoje de tarde eu acho que acabei de me ferrar, confirmando tudo de ruim que me falaram e que eu vinha sentindo, mesmo que eu me sinta mal o tempo todo há muito tempo. Bem antes do culto começar, quando eu estava sozinho cuidando do galpão, um crente com jeito de veado que eu nunca tinha notado antes veio falar comigo, perguntando um monte de merda que ele fazia de conta que não sabia. Insistente. O que você quer, meu chapa, joguei, quer falar com alguém, se perdeu? Ele continuou a enrolar, enrolar e perguntou da menina. Não sei, vem só na hora do culto, respondi grosso e dando as costas, daí ele cutucou, não sabe mas quer comer ela, né? Eu nem respondi porque se falasse qualquer coisa ia meter a mão na cara dele, virei de volta, que história é essa. Eu sei de tudo, disse, sou amigo dela muito antes de você aparecer por aqui perturbando. Não cheguei perto porque queria ver onde ia dar, mas eu sei que você mexe com macumba e que é um caloteiro, ela me disse tudo, disse que você mandou o pai dela se foder no hospital, que veio aqui morrendo de fome e que encheu o saco para que ela te desse atenção. Continuei calado, escutando, a raiva comendo tudo por dentro. Foi o diabo que te mandou aqui, seu safado, vai aparecendo na vida dos outros e atrapalha tudo, ela não agüenta mais você por perto.
Aonde você quer chegar, perguntei trincando os dentes, com as mãos fechadas, as unhas rasgando a palma para o sangue escorrer. Eu, eu não quero chegar em canto nenhum, mas você vai ter que dar o fora daqui senão, vai preso. Ela ia contar hoje para o pai que você anda mexendo com ela, mas antes ia dar queixa sua na polícia porque ficou sabendo que você foi despedido porque andava tarando criancinha no colégio em que trabalhava. O diabo que te mandou, seu macumbeiro do inferno.
Agarrei o desgraçado pela camisa, levantei meio palmo do chão, ele era leve e afeminado, menor do que eu. Lava a boca para falar de mim, seu crente filho da puta, você pode morrer de mentir a meu respeito mas não me chama de macumbeiro, nem de tarado, nem de sacana porque eu não sou nada disso, ele afinou na hora, calma, calma, jesus nosso senhor, e começou a rezar, afasta o demônio desse homem. Empurrei ele contra as cadeiras mas ele resistia a cair. Quando ele se agarrou na minha camisa, eu girei a mão no ouvido dele, que soltou um grito seco, e com um impulso não sei de onde, atirei em cima da bateria, que virou toda com um ruído infernal. O desgraçado ficou caído, saindo sangue pelo ouvido e massageando a perna rezando em voz alta, afasta o demônio desse homem, sangue de cristo tem poder. Eu vou quebrar o seu pescoço, seu filho da puta, se você não falar que estava mentindo, eu não fiz nada dessas coisas. Você sabe que eu não sou doido, eu sou uma pessoa descente e você apareceu aqui para desgraçar a minha vida mais ainda, quando me dei conta já estava segurando a garganta dele, que virava os olhos engolindo as rezas, meu senhor, meu senhor. Quando ele estava parando de respirar, soltei e me levantei, com vontade de chorar.
Não deu tempo nem dos meus olhos se encherem d’água para ouvir um estouro da entrada, bam, e sentir minhas costas amortecendo. Olhei para lá e o negão estava com um trinta e oito enfumaçado na mão, rodeado por um bando de crentes e nada dela. Tinham as bíblias em mãos, sagrado é o sangue de nosso senhor jesus cristo, saia desse templo, filho do demônio, pervertido, herege, blábláblá. Quando puxei o fôlego para sair correndo pelos fundos, engasguei e senti um negócio solto no pulmão. A minha camisa estava emplastada de sangue do tiro das costas. O pai dela disparou de novo e errou, pegou no crucifixo gigante do meu lado e eu comecei a mancar, com a respiração toda atrapalhada, em direção da saída de trás. O crente veado me deu um calço e quase me esborracho no chão, puta que pariu. Eu estava chorando e nem tinha notado as lágrimas misturadas com sangue e com o catarro que escorria do meu nariz. Alcancei a porta e ouvi outro estouro, pronto, pensei, pegou em mim de novo e agora ele me lascou, mas o negão era ruim de mira. Pastor pistoleiro, deus me livre disso.
Saí me arrastando pela rua dos fundos, dobrando tudo que era de esquina para não me seguirem. Eu acho que ninguém veio atrás, e acho também que ela não estava lá. Acho que ela não falou aquelas coisas para o veado porque são mentiras, como ela ia falar uma coisa daquelas se ela nem comigo conversava? Como ela ia conversar logo com um imbecil daqueles, se era eu quem a amava? Não dava para saber mais de nada.
Estou em casa, esperando o sol sangrar a manhã. O ventilador ligado, o colchão cheio com o meu sangue, olho para o teto encardido, de pintura descascada que eu nunca tive coragem de arrumar mesmo quando meu pai estava vivo porque quando eu chegava do colégio vinha muito cansado. Me chamar de macumbeiro não doeu tanto, mas de tarado, chamar de tarado, falar que eu tinha feito coisa ruim com criança, eu devia ter matado aquele crente. Está difícil respirar porque dói muito dentro do peito, parece que o pulmão não está mais enchendo com ar, chorar faz doer mais ainda, mas eu nem ligo tanto porque chorando eu me sinto mais aliviado, menos angustiado.
Será que foi ela quem falou aquelas coisas, ficava vindo na minha cabeça, misturando com sonhos embalados, posso vê-los, manchas no teto passando para diminuir o meu sofrimento, mas sofrimento, agora eu sei, sofrimento não melhora, e não há mais ninguém para mim, e nunca houve, e eu vou esperar aqui assim mesmo, até chegar.

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obrigado por ter chegado ao final.
se vc gostou/detestou a leitura e gostaria de expressar qualquer comentario, envie-me uma msg: teeth@elogica.com.br
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