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Artigos-->O URAGUAI DE BASÍLIO DA GAMA: QUEM É O HERÓI? -- 07/07/2006 - 23:00 (Jayro Luna) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O URAGUAI: QUEM É O HERÓI?

Prof. Dr. Jayro Luna



Basílio da Gama no canto I do Uraguai, nos versos que compreendem a dedicatória, escreve:



"Acostumar ao vôo as novas asas

Em que um dia vos leve. Desta sorte

Medrosa deixa o ninho a vez primeira

Águia, que depois foge à humilde terra

E vai ver de mais perto no ar vazio

O espaço azul, onde não chega o raio."

canto I, v.15-20)



Observa Mário Camarinha da Silva o sentido da metáfora no verso l5: "afazer-se o poeta a um novo gênero literário"(1) . Basílio está pois, colocando-se numa posição de quem desculpa-se pela tentativa, vez primeira, de escrever nesse gênero que lhe pode causar problemas, devido, talvez, a uma certa inexperiência: "Desta sorte/Medrosa deixa o ninho a vez primeira". Este procedimento humilde do poeta, de certo modo, era uma norma retórica, uma vez que buscava o poeta argumentos para convencer o leitor da validade de sua obra, embora a reconheça como modesta em relação aos grandes clássicos do gênero.

Basílio da Gama, poeta tido como de curto fôlego para o gênero épico, mas de certa engenhosidade, deixa transparecer em seus versos uma sutil contradição entre o herói do poema, europeu, nobre, educado e os índios, bárbaros de uma terra sem história. Ocorre que o conjunto da obra acaba por nos transmitir a imagem de índios que chegam a suplantar em coragem e encanto a tropa da metrópole, muito embora seja a derrota dos índios esperada pelo público leitor, mas o que surpreende é o valor dado pelo poeta aos personagens nativos que criou (2).

Na fala de Andrade no Canto II, lemos como aos olhos do herói se descreve o adversário nativo:



"Sete povos, que os bárbaros habitam

Naquela oriental vasta campina

Que o fértil Uraguai discorre e banha.

Quem podia esperar que uns índios rudes,

Sem disciplina, sem valor, sem armas,

Se atravessassem no caminho aos nossos,

E que lhes disputassem o terreno!"

(Canto II, v.170-176)



A adjetivação colocada na boca do herói é exemplar no sentido de caracterizar a visão do colonizador em relação aos nativos: "rudes, sem disciplina, sem valor, sem armas". A rudeza dos índios pode compreender-se pelo estágio de evolução da civilização nativa, a falta de disciplina, porém, já remete a uma visão de mundo calcada num juízo decorrente de uma civilização que não reconhece no indígena uma outra cultura, mas uma ausência de cultura. Disciplina significa para o europeu, ordem e hierarquia. Ora, hoje sabemos que a estrutura e a organização social da tribo sul-americana é resultado da visão de mundo em que outros valores são colocados e o que para o herói podia aparecer um certo caos, é antes resultado de uma outra ordem (3). O terceiro adjetivo da série no verso, "sem valor", já aponta diretamente para uma questão que envolve história e tradição. Desde as poéticas de Aristóteles e de Horácio, o valor é compreendido nesta ótica de tradição. Evidentemente, um povo não europeu, sem conhecimento da escrita, não católico e de organização social rude e simples, na opinião do colonizador, não pode ter uma história de modo a medir-se com a da civilização européia. O último adjetivo, "sem armas", qualifica a situação bélica do adversário, que com armas rudimentares não pode fazer frente ao poderio da metrópole. Observamos, porém, uma sutil contradição: Como um povo de guerreiros sem valor podem enfrentar sem armas o exército real ultramarino? Valor também significa coragem, valentia, heroísmo, bravura, brio: "O grande valor da forte gente" (Camões). Daí a pergunta que se segue ganha um sentido de espanto, de incompreensão diante de um fato: "Quem podia esperar que uns índios rudes /(...)/ Se atravessassem no caminho aos nossos/ E que lhes disputassem o terreno?"

Esse juízo de valor diante do índio que tanto significa ausência de tradição como descrédito em relação à bravura dos mesmos, também requer diante da situação uma reavaliação por parte do europeu. Afinal tal povo ousa enfrentar o colonizador diante de tão desfavoráveis condições.

Numa metáfora no Canto II, nos versos 225-234, o poeta sutilmente coloca uma tentativa de reavaliação desta visão:



"Pela primeira vez aqueles ares

Desenroladas as reais bandeiras.

Saem das grutas pelo chão cavadas,

Em que até li de indústria se escondiam,

Nuvens de índios, e a vista duvidava

Se do terreno os bárbaros nasciam.

Qual já no tempo antigo o errante Cadmo

Dizem que vira da fecunda terra

Brotar da cruelíssima seara.

Erguem todos um bárbaro alarido,"



Nestes versos os índios sul-americanos são comparados com os mitológicos personagens da lenda do dragão da Beócia, em que Cadmo semeara os dentes dessa fera no chão de onde brotaram guerreiros que foram a origem dos Tebanos. Temos, portanto, uma interessante situação, em que os rudes índios sem valor são agora comparados a personagens da mitologia grega. Não fez outra coisa Basílio do que tentar circunscrever seus personagens nativos na tradição, de modo a valorizar seus índios. É uma sutil tentativa de fazer o povo bárbaro de terra inculta serem notados pelo europeu, não só como tais, mas sim como personagens de uma história que se coloca no âmbito dos valores da literatura da metrópole.

Seria já, talvez, demonstração de um sentimento de amor à terra bárbara, quem sabe até um sentimento nativista? Observa José Veríssimo:



"de parte o valor de beleza do poema, este é o merecimento do Uraguai: ser na literatura da nossa língua o precursor do romantismo e no ramo brasileiro dele criador do que em Gonçalves Dias, Garrett e Herculano se chamou a poesia americana , isto é, a introdução na poesia clássica de elementos indígenas da América, a natureza, os íncolas, os costumes, em suma as coisas deste novo mundo."

(VERÍSSIMO,José. Estudos de Literatura Brasileira, 2 série. p.63)



José Veríssimo mesmo é quem cita Camilo Castelo Branco, que diz:



"A liberdade, a sagrada comoção de independência, sente-se arfar nas apóstrofes de Cacambo, o herói do poema. Havia ali naqueles cantos mais embriões de revolta que nas inquietações materiais dos desgostosos do Governo Colonial."



(VERÍSSIMO,José.Estudos de Literatura Brasileira, 2 série.p.62)



Não podemos, no entanto, supor que Basílio da Gama tenha colocado intencionalmente no poema elementos de suposta intenção de independência da colônia, mesmo porque ao que se sabe Basílio da Gama não compactuava com tal propósito, antes pensava num novo renascimento do império português tendo por base o Brasil. Nesse ponto salienta José Veríssimo que Basílio escreveu o Uraguai sem se dar por conta de que seu poema permitia-se ser lido como um dos primeiros a cantar um sentimento de liberdade e que a corte e os críticos de Europa não viram nele outra coisa que a exaltação das armas lusitanas associada a um tom de americanismo a partir do conceito do bom selvagem de Rousseau. É ainda José Veríssimo quem diz:



"Mas, tal é a superioridade da arte e do talento, dando um poema como aquele à sua terra, fazendo nele vibrar as grandes vozes da liberdade dos seus rudes íncolas em uma entonação de epopéia, pondo na sua boca, embora apenas por um artifício retórico, reivindicações e protestos contra o invasor, o poeta sintetizava sem propósito, pela intuição misteriosa do gênio, um vago sentimento que não tardaria a abrolhar, fazer-se ação e depois fato."

(VERÍSSIMO,José.Estudos de Literatura Brasileira, 2 Série.p.62)



Basílio da Gama tinha que colocar em seus versos elementos conhecidos da tradição literária clássica e européia para que sua obra tivesse reconhecimento como tal, aliás, essa preocupação, diga-se de passagem, nem mesmo existia no autor, nós é que a buscamos como modo de explicar a contradição entre o motivo do poema e a forma como ele se faz. Contradição que se nos apresenta hoje, mas que aos olhos da época, era no máximo intuída pelos espíritos mais aguçados. Assim, por exemplo, nos versos 292 e seguintes até o verso 298, temos uma interessante comparação entre o cenário da batalha de Caiboaté, decisiva no enredo de O Uraguai, e uma avalanche de neve nos Alpes. Essa interessante metáfora (a precipitação dos guerreiros à luta é uma avalanche de neve dos Alpes) segundo Mário Camarinha da Silva não é original, sendo tema comum desde a Eneida, livro II(4) . O que a torna original ou peculiar no poema de Basílio é o fato de que apesar da enorme distância entre o cenário da batalha e os Alpes e da constatação de que no Brasil não neva, - exceção somente a alguns locais mais elevados do sul do país, ainda assim, ocasionalmente, - ocorre uma diferença de caráter cultural, de sorte que somente aos colonizadores essa metáfora toma sentido, enquanto que aos nativos da terra ela soa distante ou até forçada. Mas Basílio tinha que seguir a tradição, era preciso colocar seu poema numa linha que o fizesse ser lido e reconhecido pelo seu público, que era, em princípio, o público da metrópole. Vejamos os versos aludidos, primeiramente os que compõem o primeiro termo da comparação, ou seja, os guerreiros no campo de batalha:



"Precipitadamente as armas deixam,

Nem resistem mais tempo às espingardas.

Vale-lhe a costumada ligeireza,

Debaixo lhe desaparece a terra

E voam, que o temor aos pés põe asas,

Clamando ao céu e encomendando a vida

Às orações dos padres."

(Canto II, v.286-292)



É interessante salientar que aqui os guerreiros estão em fuga, em disparada diante do sucesso das armas portuguesas. A seguir, os versos do segundo termo da comparação, ou seja, a avalanche dos Alpes:





"Desta sorte

Talvez, em outro clima, quando soltam

A branca neve eterna os velhos Alpes,

Arrebata a corrente impetuosa

Coas choupanas o gado. Aflito e triste

Se salva o lavrador nos altos ramos,

E vê levar-lhe a cheia os bois e o arado."

(Canto II, v.292-298)



Algumas anotações se fazem necessárias sobre esses versos, de modo a desenvolver melhor nossa idéia. A expressão "em outro clima" pode, a nós leitores brasileiros, referir-se a um clima diverso do nosso, portanto estrangeiro, conota uma idéia de distância, mas lembremos que não é esse bem o caso, o "outro clima" apenas quer dizer um clima diverso desse onde o narrador observa os fatos, mas esse "outro clima" é também o clima mais próprio do seu público leitor: "Tu que viste e pisaste, ó Blasco insigne,/ Todo aquele país, tu ó pudeste,/ Coa mão que dirigia o ataque horrendo/ E aplanava os caminhos à vitória,/ Descrever ao teu rei o sítio e as armas,/ E os ódios, e o furor, e a incrível guerra."(Canto IV, v.16-21)

Observa Rodolfo Garcia (5) que Blasco era um genovês, engenheiro, que reformado do exército húngaro, fora contratado pela corte portuguesa para o serviço de demarcação da região dos Sete Povos das Missões, dela deixando mapas, prospectos e memórias. Blasco, no caso, vai dar notícias de "todo aquele país", ficando assim evidente que o público a quem se dirige Basílio é o da metrópole, desse modo, "em outro clima" não é o clima diverso do leitor, mas diverso do cenário da narração, portanto, o outro clima é o "clima nosso" se nos colocamos em comunhão com Basílio e com o público a qual ele se dirige. Daí que os adjetivos de Alpes, colocados no verso 294, ganham um sentido especial: "A branca neve eterna os velhos Alpes". A neve é branca e eterna, adjetivos que nos remetem a uma conotação de pureza pela cor e de divinização pelo sentido de eternidade. O adjetivo "velhos" aplicado aos Alpes, remetem-nos não só à cadeia de montanhas que é conhecida da civilização européia desde os primórdios, como a um sentido de tradição cultural.

O lavrador que mora em choupana aos pés dos Alpes é dentro da escala social, um plebeu, um rude, e, desse modo, a comparação dele com os guerreiros que sobrevivem à batalha, indica que a rudeza dos índios, anteriormente mencionada, ganha um sentido nobre, digamos assim, uma vez que os "índios rudes,/sem valor, sem armas" estão em situação semelhante ao lavrador aos pés "dos velhos Alpes" sob uma avalanche de "branca neve eterna". Parece que havia por parte do escritor uma constante intenção de medir o acontecimento narrado no poema com grandezas ou valores da tradição da Europa, como forma, talvez, de aproximação, ou de valorização da obra dentro dos termos correntes da época do que fosse literatura ou poesia (6).

Nesse sentido, como norma da poesia clássica, não podia Basílio deixar de se reportar aos modelos da tradição e constantemente no poema ocorrem versos que ressoam a esta ou aquela obra clássica. Sérgio Buarque de Holanda, em Antologia dos Poetas Brasileiros da Fase Colonial, observa no capítulo tocante a Basílio, que é grande a influência de Torquato Tasso. Ora aqui, ora ali, ressoam versos de Virgílio, de Homero, de Camões. Basílio tinha que buscar nos mestres do gênero elementos estéticos para o seu poema. Era uma necessidade que transmitia valor à obra.

Antônio Cândido salienta que Basílio da Gama compôs um poema lírico, bucólico e de caráter árcade disfarçado sobre a roupagem do épico, estando aí um dos principais méritos poéticos do poema. Basílio da Gama atualizava a epopéia para os padrões de seu tempo, abrindo, inclusive, elementos estéticos que seriam utilizados no Romantismo, como o Indianismo e uma composição lírica dos sentimentos do herói, se considerarmos seus índios como compreendidos na esfera dos heróis.



"Contrário a Durão e sua empresa algo extemporânea, talvez o maior mérito de Basílio da Gama consiste no haver encontrado solução ideal para o epos setecentista, reduzindo-o a proporções compatíveis com o tom lírico, além de lhe dar conteúdo ideológico moderno. Poder-se-ia com certa pertinência defini-la como uma espécie de écloga heróica, em cuja estrutura se percebe o canto alternado de pastores e citadinos, com o lobo voraz surgindo a cada passo na roupeta do jesuíta."

(CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira, vol.I. p.127)



No Canto III do Uraguai, temos o interessante instante em que Lindóia tem a visão do terremoto que assolaria Lisboa. Nesses versos há uma relação com versos de Virgílio e com o herói de Homero - Ulissses -, e podemos notar ainda, que no mesmo canto, uma centena de versos antes, que Cacambo é comparado a Ulisses, quando o herói nativo em seu momento derradeiro vê nas águas de um rio não só o incêndio que intentara causar ao acampamento das tropas lusitanas, como tem também a visão de um incêndio na cidade da metrópole. Leiamos estes dois trechos de Basílio:



"Rompe as escumas assoprando, e a um tempo Suspendido nas mãos, voltando o rosto,

Via nas águas trêmulas a imagem

Do arrebatado incêndio, e se alegrava...

Não de outra sorte o cauteloso Ulisses,

Vaidoso da ruína, que causara,

Viu abrasar de Tróia os altos muros,

E a perjura cidade envolta em fumo

Encostar-se no chão e pouco a pouco

Desmaiar sobre as cinzas."

(Canto III, v.117-127)(7)





"Não de outra sorte a tímida Lindóia

Aquelas águas fielmente pintam

O rio, a praia, o vale e os montes onde

Tinha sido Lisboa; e viu Lisboa

Entre despedaçados edifícios,

Com o solto cabelo descomposto,

Tropeçando em ruínas encostar-se.

Desamparada dos habitadores

A Rainha do Tejo, e solitária,

No meio de sepulcros procurava

Com seus olhos socorro; e com seus olhos

Só descobria de um e de outro lado

Pendentes muros e inclinadas torres."

(Canto III, v.221-233)



Quando Cacambo é comparado a Ulisses, ocorre uma inversão entre os papéis dos personagens do poema de Basílio, afinal, o índio se encontra na posição de adversário em relação ao público para o qual o poeta escreve. Seria, talvez, até ousando um palpite infeliz, mas oportuno, no caso de se medir a situação dessa narração com os poemas homéricos, buscar em Heitor uma figura para comparar-se com Cacambo, assim não haveria essa inversão de lados. Porém, o índio de Basílio não é só o adversário do herói teórico do poema, na verdade, as figuras indígenas do poeta roubam a cena ao general português. Mário Camarinha da Silva, em já citado estudo assim vê Cacambo:



"Cacambo, efetivamente, não é apenas o homem natural servindo-se em seu habitat dos elementos naturais ; é antes o indivíduo Cacambo, que transforma em aliados o pátrio rio e o vento, que faz fogo roçando paus no mato e vai visitar ao fundo do rio a areia, que o passo estende e na quarta aurora vê de longe a doce pátria e os conhecidos montes; é aquele que, tornando não esperado e vitorioso à presença do Vilão, encontra não a esposa amada, mas a morte: diante dele nos sentimos como na presença de um homem, exatamente aquele que melhor conhecemos no poema, e não ante um mero arquétipo do bom selvagem."

("Estudo Crítico" em: O Uraguai,Nossos Clássicos, p.14)



Na visão de Lindóia destaquemos primeiro os versos 223-224: "onde/Tinha sido Lisboa", paráfrase de Ubi Troia fuit, que conforme Paulo Rónai: "Ao contar a Dido, rainha de Cartago, a sua fuga de Tróia, Enéias relata à sua hospedeira como olhou pela última vez, chorando, as praias de sua terra, o porto et campos, ubi Toia fuit (Eneida,Livro III,ll)." Observa ainda Rónai (8), que existe uma variante em Ovídio: "Jam seges est, ubi Troia fuit" (Heróides,I, 42)

A comparação do terremoto que assolou Lisboa com a destruição de Tróia reforça a colocação do par Cacambo/Lindóia como protagonistas. E o fato de ambos terem esse presságio faz com que percebamos forças divinas ao lado dos personagens, como que mostrando a ambos que o presente mau fado não será em vão, estando prestes por vir uma vingança, qual seja a destruição da capital do império. Mas, habilmente, Basílio coloca essas forças sobrenaturais, que permitem essa antevisão, na esfera da mitologia, de modo que sendo tais divindades pagãs, tudo se resume a uma inteligente colocação estética, que dá beleza e valor às ações das personagens. O resultado seria outro se essas visões pudessem ser entendidas como resultado da fé cristã, o que não seria totalmente impróprio pelo enredo, afinal, lembremos que esses índios estavam lutando ao lado dos padres jesuítas. Mas é sabido que Basílio escrevia um poema com preocupações anti-jesuíticas, como era de se esperar, resultado do ar da política pombalina que se respirava.



"...a intenção ostensiva, fazer um panfleto antijesuítico para conciliar as graças de Pombal. A análise revela, todavia, que também outros intuitos animavam o poeta; notadamente descrever o conflito entre a ordenação racional da Europa e o primitivismo do índio. Ao contrário do que se dá em Cláudio, sentimos a cada passo certa indecisão entre ambos, como se o encantamento pelo pitoresco levasse o poeta a lamentar intimamente a ruptura do ritmo agreste pela civilidade imposta."

(CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira, v.I. p.128)



Esse "encantamento pelo pitoresco" fez com que Basílio compusesse um poema em que a habilidade do poeta em pintar cenas e cenários fosse notada, por alguns, como uma das principais qualidades estéticas do Uraguai.



"E, sobretudo, a maestria do pincel literário reproduz, com emoção, os detalhes do quadro, a surpresa e as indecisões de Caitutu, a sombra amável da curva latada de jasmins, e rosas , a reticência da perspectiva, e até a indizível graça original daquele verso célebre: tanto era bela no seu rosto a morte! (...)

Nas várias cenas de inglória luta, o poeta anima verdadeiras paisagens. Tem um forte pendor pictural; é um impressionista, à maneira primitiva de um Claude Monet."

(CAVALCANTI, Povina. "Relendo o Caramuru e o Uraguay" em: TEIXEIRA, Ivan. Obras Poéticas de Basílio da Gama. p.431)



Tal habilidade de pintar com palavras será retomada por Manuel de Araújo Porto-Alegre em Colombo, mas de um modo mais agressivo e com cores mais contrastantes.

O Uraguai é nesse sentido um poema que supera pela vez primeira a difícil tarefa de representar com personagens de uma tipologia não clássica uma epopéia. E pelo modo como o faz, Basílio consegue recuperar nos seus heróis indígenas aquilo que os heróis das epopéias com influência cristã estavam perdendo, a ousadia de, em sendo ingênuos, serem donos de seus destinos, daí talvez pagarem com a vida. Não ficou devendo muito Basílio aos cânones do gênero. Soube acrescentar à poesia épica algo novo, como o sentimento lírico dominando a cena, seus personagens índios que caracterizam-se por serem mais humanos que os heróis vencedores e a visão de uma nova terra onde desenrolam-se atos de bravura e sentimentos nobres comparáveis aos heróis da literatura européia.



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Notas:

1.Nota de rodapé à página 21 de Basílio da Gama, Nossos Clássicos, vol.77. Rio de Janeiro, Agir, 1976.



2.Espectativa semelhante ocorre no filme de Edward Zwick, Tempo de Glória (Glory, 1989, EUA) que conta a história do primeiro destacamento de soldados negros do exército americano e sua ação na Guerra Civil Americana, em que apesar de sabermos de antemão que o regimento negro perderá a batalha, o que nos comove é a bravura e os sentimentos nobres que os personagens nos transmitem.



3.É sob argumentos semelhantes a esses que Oswald de Andrade, no Modernismo Brasileiro apregoará a "antropofagia": "Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da magia. Antropofagia. A transformação permanente do tabu em totem" (Manifesto Antropofágico).



4.Os versos de Virgílio referidos são esses na tradução de Manuel Odorico Mendes:

"A cidade se afunde em grita e pranto;

E, inda que num retiro entre arvoredos

Meu pai habite, mais clareia o estrondo,

Recresce mais e mais o horror das armas.

Sacudo o sono, ao píncaro da torre

Trepo, ouvidos apuro. Tal, se a queima

Soprando o bravo sul cai na seara;

Tal, se grossa torrente despenhada

Arrasa o campo e as ledas sementeiras,

Prostra o lavor dos bois, aluídas selvas

Arrebatando; lá do sáxeo cume

Pasma néscio o pastor que o ruído escuta."

(Eneida, Canto II, tradução de Manuel Odorico Mendes. Rio de Janeiro, Clásssicos Jackson, 1960. p.133)



5.Conforme Mário Camarinha da Silva, Rodolfo Garcia é o autor de várias notas que se encontram na edição de O Uraguai pela coleção Nossos Clássicos, da editora Agir.



6. Se comparamos com a referida metáfora existente na Eneida, notaremos que o herói do poema de Virgílio, que é quem observa do alto a cena da destruição de Tróia, é comparado ou transformado aqui, em Basílio; o observador basiliano como o herói virgiliano, vê do alto - de uma árvore, talvez - a fuga das tropas indígenas.



7.Os versos de Virgílio na tradução de Manuel Odorico Mendes são esses: "(...) os Danaos a invadiram,

Dominavam-na toda: o voraz fogo,

Dos ventos irritado, os altos ganha,

Rolando em labareda os ares cresta.

Prossigo; à régia e à cidadela passo:

E já nos vácuos pórticos, no asilo

De Juno, eleitos a velar na presa,

Se postam Fénix e o nefando Ulisses;

Os tesouros de Tróia em montões vejo,

De acesos tectos, saqueados templos,

Vasos de ouro maciço, alfaias, mesas,

Vestes sacerdotais: à roda em fila

Estão pávidas mães, tenros meninos."

(ENEIDA, Canto II, tradução de Manuel Odorico Mendes. Rio de Janeiro, Clássicos Jackson, 1960. p.146).



8.Rónai, Paulo. Não Perca o seu Latim, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. p.175.

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