28.02.2006 Agora entendi por que Cacá Diegues escolheu aquele lugar como cenário ideal para que Deus (Antonio Fagundes), cansado, encontrasse finalmente um substituto durante suas férias, um candidato a santo. Se não soubesse que cenas de “Deus é brasileiro” foram filmadas ali, no Jalapão, ia acreditar que minha mulher e eu éramos as primeiras pessoas a botar os pés naquelas dunas de areias vermelhas e virgens – os pés, os joelhos e as mãos.
Explico.
As dunas formam um grande platô retangular de uns 40 metros de altura, na parte mais elevada. Para chegar lá em cima, tem-se que escalar o paredão de areia que é íngreme, quase reto. Imaginem subir uma parede fofa. A impressão é essa. E o medo é de que, subindo em pé, vai-se cair para trás, claro, como acontece a quem desafia a lei da gravidade. Mas era tarde para desistir. Começamos então a subir, verificando logo que o problema não era o de cair, mas o de não chegar ao destino. Os pés afundam na areia mole e adquirem o peso de duas botas de chumbo. Aí, não dá mais. O negócio é ajoelhar e usar também as mãos, ou seja, ficar de quatro.
Pode não ser a posição mais solene, mas é a única que nos levará até o topo. Haja esforço e haja fé. Ufa! Chegamos. Os percalços da subida são logo esquecidos quando nos erguemos e começamos a caminhar sobre aquela plataforma deserta. Me dizem que há milhões de anos tudo aquilo era o fundo de um oceano. Será que isso explica o riachinho de um palmo de fundura que corre na base e em torno do bloco de areia? Mas aquela água é doce e cheira a ferro. Como ela, tão cristalina, foi parar ali? Mistério.
Mas não é hora de reflexão e sim de contemplação. O único sentido a funcionar é a visão, e ela está em êxtase. Algum ser humano já andou por aqui antes? A serra que circunda toda a região é feita de rochas estranhamente simétricas: há poucos picos, as plataformas são planas como tampos de mesa. Daqui a pouco, assistiremos ao pôr do sol. Em Palmas, me tinham recomendado como algo imperdível – mesmo para quem está acostumado a isso em Ipanema.
Me assalta agora a tentação de mentir, descrevendo-o sem ter visto. É que, de repente, relâmpagos e trovões passaram a anunciar um temporal bíblico. Era hora de partir. Havia o risco de ficarmos retidos na estrada onde, na vinda, um pneu se rompeu, deixando-nos sem estepe.
Se fossem só as dunas, já estava de bom tamanho. Mas o Jalapão é muito mais, é um gigantesco parque que oferece mil opções de passeio. Há um roteiro que leva quatro dias para ser feito. O nosso levou dois. Comandada por uma jornalista tocantinense cujo único defeito era a resistência de atleta, nossa expedição saiu às seis horas da manhã de Palmas para voltar dois dias depois à noite. São cerca de 200km da capital de Tocantins, dos quais mais da metade é o caminho de terra e areia usado pelo Rally dos Sertões. Não se viaja, sacoleja-se sobre os buracos. O corpo vai de um lado para o outro e a cabeça só não se desprende porque bate no teto. Juro que me sinto apto a fazer o Paris-Dakar.
No entanto, se você for jovem como minha mulher e eu, vale a pena. Há umas dez cachoeiras a serem visitadas. Paramos numas três e nos deslumbramos com a do Lajeado. A água corre sobre grandes prateleiras de uma pedra argilosa chamada toá, com que se fazem tijolos e telhas. É de um vermelho tão bonito que os índios a utilizavam para pintar o corpo. Destaque para a Prainha, onde mergulhamos nas águas claras e frias do Rio Novo. Um capítulo especial deveria ser reservado para o Fervedouro de Mateiros. É uma piscina natural no meio de árvores onde a novidade extraordinária é que você não consegue afundar. Por mais que se esforce, bolhas de ar saindo do fundo de areia mantêm-no de pé dentro da água. É um dos vários mistérios da região.
Disse que deveria reservar um capítulo ao fenômeno, mas não vou porque saí frustrado. Assim como perdera o pôr do sol, não consegui boiar. Tentei umas cinco vezes, ajudado pelos companheiros de expedição. Fui o único a fracassar. Minha mulher flutuando, tentando me ensinar como manter o corpo ereto, e eu insistindo em ir ao fundo como se tivesse uma irresistível vocação para ser pedra. Um vexame. Pretendia falar de muitas outras atrações, como o Povoado de Mumbuca, onde nasceu o artesanato de Capim Dourado, que é hoje vendido até para a Europa. Vai ficar para outra ocasião. Com apenas 17 anos, Tocantins comporta-se como gente grande. Tem muito a oferecer. Deus que o diga.
(*ZUENIR VENTURA esteve em Palmas, Tocantins, no dia 17.02.2006, para proferir conferência no ENCONTRO COM JORNALISTAS, no auditório do SEBRAE. No dia seguinte, teve a oportunidade de visitar o JALAPÃO.)