Usina de Letras
Usina de Letras
50 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62332 )

Cartas ( 21334)

Contos (13268)

Cordel (10451)

Cronicas (22543)

Discursos (3239)

Ensaios - (10406)

Erótico (13576)

Frases (50712)

Humor (20055)

Infantil (5474)

Infanto Juvenil (4794)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140846)

Redação (3313)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1961)

Textos Religiosos/Sermões (6221)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Erotico-->30. AS PRIMEIRAS DORES -- 17/08/2002 - 07:31 (wladimir olivier) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Alfredo não se divertiu junto aos companheiros de deboche. Estava inquieto. Em certo momento, se disse indisposto e largou-os entregues às fantasias. Queria ler o que se continha no envelope.

Como nada consumira que o tornasse menos lúcido do que o habitual, poderia enfrentar de mente aberta qualquer fato a revelar-se. Antes de abrir o envelope, pôs-se ludicamente a brincar com a imaginação. E se o conteúdo do texto revelasse plenamente o domínio do espiritual sobre o material? E se lá dentro estivesse o depoimento do pai ou da mãe, a demonstrar a verdade após a morte? E se lá estivesse o relato do espírito de Ângela, a respeito do aborto, ou de Criseide, a respeito de suas ameaças? Poderia ser alguma mensagem de Marcos, a prometer-lhe vingança pelos males que infligiu à família? Ou estaria ali tão-só a descrição de todos os crimes que perpetrou, revelados por via espiritual? Haveria médiuns tão poderosos, capazes de conhecer os fatos por comunicações particulares?

O envelope fechado poderia revelar-se mais eficaz e interessante do que aberto. O jogo lhe pareceu muito curioso, pois deixava-lhe bem claras as preocupações. Não eram impulsos de sutis vibrações, como há alguns dias atrás.; eram nítidas, perfeitas e completas acusações conscienciais.

Alfredo ponderou que, se o inferno se constituísse de penas desse tipo, deveria ser insuportável, principalmente porque o indivíduo não tem o que fazer, a não ser meditar a respeito dos erros em relação aos irmãos. Não gostou da hipótese, mas avaliou a vida para saber se praticara algum bem que pudesse estar ali descrito. Por mais que se esforçasse, o mais a que se permitia era a consignação de pequenos reparos de algo que havia feito de muito ruim, como no caso dos cheques para Criseide.

Nesse ponto dos pensamentos, foi, irresistivelmente, levado a pensar a respeito da figura de Ângela no caixão. Tinha algumas fotos da menina, por quem se apaixonara um dia. Para evitar desassossegos, guardara-as em absoluta segurança na fortaleza. Pensara em mandar fazer um pôster, para deixá-lo em alguma dependência particular, mas, sopesando o mal que lhe havia feito com o amor que lhe dedicara, resolveu não correr o risco de enfrentar as acusações, no olhar ingênuo da garota. Isto enquanto viva. Será que agora iria passar pelo mesmo perigo? Buscou na carteira uma foto três por quatro em que a jovenzinha se via com tranças e uniforme escolar. Desabotoou a blusa da pequena e a imaginação se deixou embalar pela lembrança das tardes que com ela passara em diversos motéis da cidade. Queria ver se afastava a perturbadora visão que lhe havia deixado Carlos. Por mais que forcejasse, contudo, via-se sempre no amplo salão vazio do necrotério, rodeado de féretros lacrados, com imensas coroas de flores brancas, só brancas, e, ao centro, o de Ângela, aberto, onde se via a pequena deitada, nua, com as flores a embelezá-la ainda mais, provocando-lhe a candura que lhe ressuscitava a infância. Mas Ângela se transformava em mulher e estendia os braços para enlaçá-lo e beijá-lo com frios lábios de morta.

Nesse ponto, Alfredo levantou-se rápido e se aproximou do regulador do ar condicionado, buscando refrescar-se, pois ardia em febre. A pulsação acelerou-se e pensou que estivesse tendo alucinações. Mais tranqüilo, tendo sorvido, em rápidos goles, um copo de água gelada, voltou a sentar-se diante do envelope.

Que pensaria a seu respeito a pobre pequena? Teria mantido as juras de amor que fizera ou tudo se perdera com o aborto infeliz e com a expulsão da família?...

Alfredo não temia enfrentar os seus fantasmas, pois se sabia apto a vencer qualquer anomalia espiritual da pobre mente encarcerada no crime. Tinha noção exata do que era despachar as pessoas para o lado de lá da morte. Desde a primeira vez que o fizera, resguardara-se por detrás de escudo providencial: se não fizesse, fariam com ele.; se não atacasse, seria atacado.; se não matasse, seria morto.; se não eliminasse, seria eliminado. Tudo era perfeito direito de sobrevivência e de legítima defesa.

Vira alguns dos parceiros enfrentar as barras dos tribunais por crimes até hediondos. Um matara a mãe, em desespero provocado por alucinógenos. Alfredo não poupou dinheiro para amenizar a pena. Queria ver até onde a lei dos homens era capaz de punição, quando a corrupção vigesse. Deixou de lado o assédio ao juiz e aos jurados, mas trabalhou seriamente sobre o promotor da acusação. O advogado do réu era dos melhores, mas não lhe revelou até que ponto o parceiro representante da lei fora abafado. Na verdade, o criminoso, confesso de vários crimes, acabou em liberdade, não tendo permanecido preso mais que quinze dias. Fora considerado culpado, é certo.; mas as atenuantes da lei receberam o amparo do juiz, após a recomendação do júri. A única conclusão séria do julgamento foi que, para se evitar aos filhos que matem as mães, não deveriam estar munidos, ao mesmo tempo, de cocaína e de revólver. Alfredo acrescentava punhais e quejandos objetos pontiagudos, em lúgubre facécia, na qual nem mesmo ele encontrava graça alguma.

Essa peregrinação pela vida de crimes fez com que se recordasse de inúmeras pessoas cujo desaparecimento determinara ou cuja morte provocara indiretamente. Começou a supor que todos esses indivíduos tiveram o destino que buscaram. Imaginou-os embarcando para o etéreo, onde foram de pronto dominados pelas forças do mal. Não admitia a existência do inferno, mas, já que era para pensar na possibilidade da vida após a morte, certamente aqueles que partissem em estado de impureza deveriam receber o devido castigo. Aí o pensamento levou-o a um ponto indeterminado do futuro. Não era imortal.; um dia iria ter de partir... Buscou alegremente na memória alguém que pudesse julgar pior que ele mesmo. Não achou. Cotejou-se até a assassinos assalariados e riu-se de sua brutalidade e inconseqüência. Soube-se mais malicioso e ardiloso que ninguém. Se alguém ousasse vir apanhá-lo depois de morto, necessitaria ter sido muito ruim. Será que Hítler, Nero, Átila ou Caim estariam disponíveis para o saque à sua alma? Não acreditava que tais gênios do crime pudessem preocupar-se com tão insignificante personagem. Talvez alguém ligado à igreja, Torquemada e caterva, mas esses, com certeza, já se teriam cansado da perseguição... Quando adentrasse o mundo do etéreo, seria para assustar.

Aí imaginou a pobre mãe a esperá-lo. Para essa tinha algumas graves acusações de abandono e rejeição. Era o mais novo, mas nunca recebera o mesmo carinho dos demais. Depois, abandonara-os cedo para a vida no centro e cedo ainda os deixara na Terra. O pai, sabia-o santarrão de última hora.; era aparecer e levar de instrutor de sonegadores de impostos e promotor de falcatruas. O irmão, médico de madames, era o maior dom-joão, tanto que largara a família pronta para o assalto dos aproveitadores, tanto que ele mesmo, Alfredo, se vira à vontade para a sedução da filha. De resto, falecera pela moléstia do sexo, a provar que boa coisa não era. A cunhada e os filhos, acusou de aproveitadores e covardes. Se fora com ele, teria morrido mas não admitiria jamais o pavor que os fizera passar. Se lhe aparecesse Ângela, convidaria a seguir com ele para serem felizes juntos.; ou infelizes, mas juntos, porque sabia que, no íntimo, ela era igual a ele. Ou teria mudado?...

O tema da mudança ocupou-lhe a atenção. O envelope em cima da mesa não era um convite à abertura, mas provocava-lhe o desejo de fantasiar, de divagar, de pesquisar dentro de si mesmo. Esse aspecto lhe era novo, estranho, perturbador. Mas estava por sua conta. Nada precisava mais conquistar na vida. Tudo que desejara, conseguira. Decifrava agora os mistérios do além. Convidaria o irmão novamente. Precisaria fazê-lo mais modestamente. Pareceu-lhe que o encontro o espantara pela riqueza que ostentara. E ele bem que pensou estar sendo modesto... Realmente, os seus padrões...

Nesse ponto das reflexões, o olhar recaiu sobre o envelope. Deveria abri-lo? A visão fora tão rica em sugestões que talvez fosse preferível manter o mistério do conteúdo intocado.

Seguindo o hábito dos últimos tempos, julgou estar na hora de realizar pequenos exercícios de relaxamento. Sem querer, ficara tenso o dia todo.; percebia-o pela rigidez dos músculos da nuca e pela dor das mandíbulas, sinal claro de que estivera o tempo todo a rilhar os dentes.

Guardou o envelope em lugar seguro e predispôs-se a passar serena e repousante noite de descanso. Antes de deitar, aguardava por ele o habitual banho de sais na hidromassagem, que mantinha desligada para que a agitação das águas não representasse qualquer importunação. Precisava cuidar-se para não dormir dentro da banheira, local em que se punha de bem com o mundo.

Duas horas depois, ressonava puro como os anjos. No dia seguinte, voltaria a cuidar da vida.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui