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Artigos-->MEMÓRIA: MNEMOSINA E SUAS FILHAS. -- 14/09/2005 - 15:54 (Jayro Luna) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
MEMÓRIA: MNEMOSINA E SUAS FILHAS.



Segundo Jacques Le Goff, pelo fato de que memória é a propriedade de conservar informações, o estudo da memória compreende várias disciplinas como a psicologia, a psicofisiologia, a neurofisiologia, a biologia e a psiquiatria. Por outro aspecto, se pensamos em memória coletiva e social, em patrimônio histórico, em cultura, a memória compreende o estudo da História, da Antropologia, da Sociologia, da Historiografia. E se ainda pensamos nos processos pelo quais a Memória se conserva e se efetiva nos processos da linguagem, temos que fazer recurso dos conhecimentos das ciências da linguagem, como a Lingüística e a Semiótica.

No âmbito da antropologia e dos estudos culturais, o folclorista Luís da Câmara Cascudo apresenta um breve, mas pertinente conceito de memória:



“A Memória é a Imaginação no Povo, mantida e comunicável pela Tradição, movimentando as Culturas convergidas para o Uso, através do Tempo” (CASCUDO, p. 9).



Notemos que o folclorista escreve “A Memória é a Imaginação no Povo”(grifo nosso) e não “do Povo” como até se poderia pensar. Suponho que para Câmara Cascudo, a memória se realiza no “Povo”, é seu campo de ação o coletivo, o social, o cultural. Daí no seu breve parágrafo encontrarmos com letras maiúsculas os substantivos comuns “Memória”, “Imaginação”, “Povo”, “Tradição”, “Culturas”, “Uso” e “Tempo”.

Maurice Halbwachs defende o conceito da memória coletiva em obra póstuma publicada no Brasil em 1990. Halbwachs, morto em campo de concentração nazista em 1945, nos diz da existência de dois conceitos de memória, a individual e a coletiva. Halbwachs faz uma análise dos aspectos que envolvem esses dois tipos de memória, de como são indissociáveis, e de como o que é individual está estritamente ligado ao coletivo.

Para nós, do âmbito dos estudos literários em língua portuguesa, não podemos deixar de lembrar da teoria de Teixeira de Pascoais acerca do Saudosismo. Fundamentado na noção de saudade, o escritor português fala que existe em Portugal a saudade individual, aquela que é fruto de um processo de rememoração da experiência vivida, com carga emotiva, subjetiva e, de outro lado, a saudade coletiva, resultado do peso do passado histórico e grandioso de Portugal sobre o presente. Se saudade é diferente de memória, não resta dúvida, mas que a existência da saudade está totalmente ligada ao contexto do que seja memória, isto também é indiscutível. Só podemos ter saudade – individual ou coletiva – do que, de fato, lembramos.

Já Walter Benjamim busca entender o relacionamento entre a História e a Memória. Os estudos históricos acerca da memória são numerosos e proeminentes. Mas, mesmo os antigos não confundiam Memória e História. Tanto que existe Mnemosina, a divindade da Memória, e Clio, a musa da História, esta sendo filha da primeira. Sabia mitologia que compreende que a existência da História depende da existência da memória, e que de certa forma, volta ao que antes citamos de Halbwachs, a memória parece ter um viés individual mais determinado ou determinante do que a História, que intenta ou busca parecer mais coletiva. No entanto, em ambas, a dissociação entre o que é individual, subjetivo, emotivo e o que é coletivo, cultural, social não se justificam como oposições ou dicotomias, mas apenas ângulos de abordagens complementares.

Quando Benjamin discute a questão do narrador, argumentando acerca da obra de Nikolai Leskov, está também buscando comentar como a memória é crucial para o desenvolvimento da oralidade, ou vice-versa, na literatura. Com efeito, já o sabia Milman Parry nos seus estudos acerca dos aedos e da épica, que uma série de procedimentos de linguagem são desenvolvidos na técnica narrativa desses poetas para que possam mais facilmente memorizar as longas passagens. No Dicionário de Análise do Discurso de Charadeau e Maingueneau, fala-se em Memória e “memória discursiva”, o discurso em relação com a memória, existindo dois planos complementares: o da textualidade e o da história. Pois bem, o plano da textualidade está ligado aos procedimentos textuais que permitem, paralelamente às estruturas composicionais e estilísticas, servirem de instrumento para a memorização: anáforas, conectores, tempos verbais, e podemos acrescentar as rimas, paralelismos, entre outros. No estudo do contexto, desenvolve-se nesse plano também a idéia de uma memória intratextual, em que o texto se auto-refere como recurso de recuperação da memória e da leitura. O segundo plano é o da História, e desse já de certa forma, comentamos.

A passagem da oralidade para a escrita significou bem mais do que a simples mudança de suporte para a transmissão de história e conhecimento. A escrita interage com o que se pretende escrever de forma que o texto se liberta da necessidade de memorização. A memória do autor/poeta se liberta e pode ser agora utilizada como recurso para o desenvolvimento de estruturas mais amplas e complexas de composição. Não existia um aedo que declamasse passagens dos épicos de forma idêntica em um certo espaço de tempo, e Camões e Milton de certo não saberiam declamar seus poemas épicos na totalidade apenas de memória. A escrita modifica a estrutura, a forma, a organização do texto e, por conseguinte, o contexto.

Marshal Macluhan em Galáxias de Gutemberg já comentara do que representa em termos de percepção do mundo a passagem da oralidade para a escrita. E em estudo posterior, Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem, já observava que a última extensão a ser desenvolvida pela sociedade moderna, seria a transposição do cérebro para a máquina, o cérebro eletrônico. De certo modo, Macluhan intuíra na década de 60 do século XX a explosão da informática que domina o mundo atual. Alvin Toffler, posteriormente, vem falar que a informação se tornaria a moeda de troca na nova sociedade, suplantando a mais-valia do vil metal. Sob certo aspecto, isto é verdadeiro. Assim, as grandes corporações e instituições nacionais e internacionais desenvolvem programas e aparelhos para manter em segredo seus projetos mais valiosos. A espionagem industrial, o mercado de patentes, o novo lançamento estão a par e passo com os segredos de estado.

No âmbito dos estudos culturais, uma das questões mais debatidas é aquela que envolve o conceito de memória enquanto preservação de bens, ditos, culturais. Assim organismos estatais e, por vezes, ONGS, se regulam pelo sentido da preservação desses bens. Patrimônio Histórico, tombamento, valor histórico são termos costumeiramente usados. Mas, como observa Olga Brites Silva:



“A memória social e as tradições populares constituem experiências que não podem ser dissociadas, coisificadas ou reduzidas à condição de meros objetos de contemplação. Nesta hipótese, elas seriam (como foram muitas vezes) profundamente desvitalizadas, espoliadas da própria força que as constituiu. Ao invés de retirar este patrimônio de seu circuito próprio é fundamental respeitar e compreender seus vínculos profundos com aqueles que o produziram: trata-se de reconhecer que neste saber-fazer, preservar, difundir, aprender e refazer práticas são elementos indissociáveis” (SILVA, p.19)



Sendo assim, parece-nos que a questão da preservação não se resolve apenas enquanto ação de guardar, de garantir sua existência como peça de um museu histórico, mas sim, de revitalizar o próprio elemento dito cultural, de revinculá-lo ao processo de difusão cultural e de garantir mesmo sua evolução mediante novas situações. Assim se o boi do Bumba-meu-boi hoje tem um cd no meio dos chifres, como artefato decorativo, isso não é, como poderiam pensar alguns, uma desfiguração, mas uma refiguração, uma apropriação criativa.

Por outro lado, no âmbito da literatura, a memória envolve um subgênero – para alguns, um gênero propriamente dito – de obra. A memória – real ou ficcional – torna-se um filão rico e criativo na literatura, no caso da brasileira: Pedro Nava, Manuel Antônio de Almeida destacam-se como memorialistas. Mas, além disso, a memória como recuperação de dados históricos culturais, não propriamente como vivência pessoal, tem amplo desenvolvimento na nossa literatura, dentro desse âmbito o romance histórico tem sido habilmente explorado. E se pensamos na distinção entre narrador e autor no contexto da memória, podemos ter obras em que o personagem narrador constrói suas memórias e por sua vez, por uma série de processos literários e culturais, ligam-se no âmbito do contexto às memórias coletivas: Memórias Póstumas de Brás Cubas, Memórias Sentimentais de João Miramar são apenas alguns exemplos. O primeiro servindo de elemento para a compreensão de aspectos sociais que envolvem a política do império e o pensamento burguês nascente naquela época no Brasil; o segundo, nos mostrando no caos da sua narrativa cubo-futurista o progresso vertiginoso do cenário urbano em meio à cultura agrícola cafeeira de São Paulo e a modificação da moral e do modo de percebê-la.

Penso no caso ainda específico da literatura, e quando Ezra Pound fala em antenas da raça, lembro do conceito de “dejá vu”. Aquele sentimento de que já se presenciou ou se viu alguma coisa que, no entanto, acontece pela primeira vez no presente, sentimento que envolve um pouco de superstição para alguns, ou de complexos processos psicológicos, aliás, psicossociais. Quem viu o filme Matrix, lembra de uma referência ao “deja vu” de outra forma. Era apresentado como a falha do sistema que construía a realidade daquele mundo. É nesse contexto que penso que a memória entra como parte do processo criativo da estrutura da obra moderna. O poeta ou o escritor, em se assumindo como “antenas da raça”(humana) está consubstanciando na sua obra um dejá vu enquanto falha do sistema de organização da realidade, é o que poderia ser entendido como anti-memória, se quisermos retroagir a Benjamim. Mas não apenas enquanto memória “dos vencidos”, mas como demonstração, não científica, mas artística, das falhas do sistema de construção da realidade. Pois bem, não faz uso a psicanálise do chamado “ato falho” da memória para reconstruir e desconstruir um problema patológico da mente? De certo modo, o escritor pode representar na memória social, coletiva, aquele indivíduo cuja sensibilidade criativa permite recuperar aquele elemento da memória coletiva que aparentemente se mostra oculto, entrevisto, incompreensível à maioria, mas que quando demonstrado reinventa o real, descortina o que há por trás. Isso não é engajamento apenas, como alguns podem pensar, é antes construção criativa do mundo via literatura.

Se pensamos na linguagem cotidiana da informática, memória é um termo amplamente usado. Memória RAM, ROM... Das memórias do computador, a RAM é aquela que serve para o funcionamento imediato dos recursos do sistema, dos softwares; quanto mais memória mais ágil para ser o computador. Mas uma vez desligado, os dados se perdem se não forem salvos no HD, a memória permanente, o arquivo de dados. Pensando analogicamente com a sociedade moderna, a Memória RAM da sociedade atual perpassa o chamado mundo do mass media, do fluxo de informação contínua dos meios de comunicação de massa. Porém, aí não existe memória no sentido de guardar informações, o novo, o fato novo, o furo jornalístico, o novo escândalo social, é o que determina a dinâmica dessa memória, o que a tornaria próxima do conceito em informática, de memória RAM. Por outro lado, é preciso a existência de um HD social, e parece que o papel principal disto cabe ao estado, por meio dos ministérios da educação e da cultura, desenvolver programas e estratégias para o armazenamento e a preservação dos bens culturais. Mas, no computador existe o processador. Ele, dito na informática, “a alma do computador”, é o elemento que põe me funcionamento às memórias, que pode buscar no cluster mais escondido do HD o dado urgentemente necessário e colocá-lo diante de você. De certa forma, esse é o escritor, ele é o processador entre dois tipos de memória, aliás, vários tipos de memória: individual, coletiva, histórica, experiência vivida, imaginada, real, ficcional, e as reorganiza, fazendo de cada obra sua um novo software a demonstrar as falhas do sistema de construção da nossa realidade.

Se a linguagem moderna é um pouco fugaz e do ponto de vista subliminar, comprometida ideologicamente de forma direta. Pensemos nos antigos, na mitologia grega. Mnemosina como mãe das musas. Mnemosina representa a Memória. Suas filhas: Clio, a musa da História. Assim, já o comentamos, nos falam os antigos da ligação entre Memória e História. Mas Mnemosina não é uma mãe que elege uma filha dileta e a trata de forma privilegiada. Senão vejamos, Euterpe, a musa da música. De fato, a música é o exercício rítmico da sonoridade no tempo. E o tempo é o elemento a ser vencido pelo ritmo, que permanece na memória, conjuntamente com suas tonalidades e timbres. Euterpe vence o Tempo pelo ritmo e repetição rítmica impregna a memória de tal forma que surge a possibilidade da dança. E a dança é de Terpsícore, esta musa, converte o ritmo apreendido pela memória em gesto, em ação, e nessa conversão existe recriação e invenção. Que relação podemos estabelecer entre o toque de um instrumento segundo determinado ritmo e os passos da dançarina ou dançarino? Não podemos entender essa conversão senão pela analogia criativa. Euterpe vence o tempo ao transformar aquilo que foi ouvido em ação que determina o modo como que ainda será ouvido deverá sê-lo. Érato, a musa da elegia. Como fazer uma elegia não se sabendo o que e por que devemos fazê-la. Isso só é possível com a existência da memória. Recuperar os fatos do passado real ou imaginado e transformá-los num canto elegíaco, que apresente a grandeza do elogiado em função de seus feitos e que nos permita julgar tal grandeza não só pelo fato em si, mas pelo modo como o canto está composto. Eis o modo como Érato permanece e faz uso da memória. Urânia, a musa da astronomia. Lembremos dos marinheiros que conhecem as constelações e as estrelas e definem sua rota em função desse conhecimento. A Astronomia e também a Astrologia, fundamenta-se na recorrência do fato astronômico, o solstício é um dia previsível. O nascer de cada constelação do zodíaco, as fases da lua, eclipses, cometas, etc. A Astronomia se fundamenta numa memória de longa duração. Alguns fatos astronômicos só se repetem de séculos em séculos, às vezes, milênios. Outros são cotidianos, como o nascer e o pôr do sol. Urânia vence o tempo pela analogia com o espaço.

Melpômene, a musa da tragédia grega. A lição de que o homem não pode vencer o desígnio dos deuses, não pode modificar o destino. Lição discutível à luz do mundo moderno, mas indiscutível para o pensamento antigo. Penso que o que disso devemos apreender é que Melpômene constitui a ação da morte. A utopia iluminista de um dia vencer a morte só se realiza virtualmente, contextualmente: livros, documentos, filmes, monumentos, relatos e todas as formas de preservação de dados do passado são recursos para vencer a morte. Para que a memória dos antepassados seja lembrada apesar da ausência que a morte presentifica na tragédia de nossa existência. Tália, por outro lado, a musa da comédia. A comédia é o recurso pelo qual rimos do mundo, de nós mesmos até, e inclusive da morte. Tália vence o tempo pelo uso da memória como anti-memória: a carnavalização bakhtiniana do mundo. Calíope, a musa da poesia épica. A poesia épica – e, por conseguinte, a épica em geral, no romance, no cinema, no teatro – é o recurso pelo qual a memória se transforma em arte e não em história. Ou seja, continua viva, não que a história seja morta, embora haja quem fale na morte da história, mas, sim, que a arte inutiliza os aparelhos ideológicos do mundo em função da sua inutilidade, do prazer estético. Calíope vence o tempo ao fazer da memória, fonte de prazer, quase como a saudade, mas com pompa e dinamicidade. Polímnia a musa da poesia lírica. Aqui a memória é colocada naquele limite tênue e indefinido entre memória individual e coletiva. Polímnia vence o tempo por saber explorar esse limite, a consciência do poeta é a consciência de seu povo transformada em individualidade.

Por fim, parece-me que os estudos da Memória, em especial no âmbito das letras, deveriam privilegiar a descoberta dos processos e artifícios operacionais que fazem com que a memória permaneça na literatura: assim estilística, análise estrutural, lingüística, semiótica, literatura comparada, semântica devem fornecer um instrumental que permita compreender não só a existência da memória na literatura, mas do modo como se processa essa existência.



REFERÊNCIAS(ainda incompleta):



BENJAMIN, Walter. “O Narrador” em: Os Pensadores, ed. Abril, 1980, p. 57-74.

CASCUDO, Luís da Câmara. Tradição, Ciência do Povo. São Paulo, Perspectiva, 1971.

CHARADEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo, Contexto, 2004.

GUIMARÃENS, Ruth. Dicionário de Mitologia Grega. São Paulo, Cultrix, 1983.

HALBWACHS, Maurice. Memória Coletiva. São Paulo, Vértice, 1990.

LE GOFF, Jcques. “Memória” em: Enciclopédia ?, Lisboa, INCM, 1984, p. 11-50.

MAINGUENEAU, Dominique. O Contexto da Obra Literária. São Paulo, Martins Fontes, 2001.

SILVA, Olga Brites. “Memória, Preservação e Tradições Populares” em: O Direito à Memória. São Paulo, DPH/SMC, 1992, p. 17-20.

ZAIDAN FILHO, Michel. A Crise da Razão Histórica. Campinas, Papirus, 1989.









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