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Artigos-->O VILA RICA DE CLÁUDIO MANUEL DA COSTA: O LABIRINTO E A TRAM -- 28/06/2005 - 16:51 (Jayro Luna) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O VILA RICA DE CLÁUDIO MANUEL DA COSTA: O LABIRINTO E A TRAMA.

Prof. Dr. Jayro Luna

(capítulo da dissertação de mestrado: Retórica da Poesia Épica Brasileira: De Bento Teixiera a Sousândrade. São Paulo, FFLCH/USP, 1997)

O poema épico Vila Rica de Cláudio Manuel da Costa tem passado despercebido da crítica literária em geral que dele não nos dá nada além de esparsos e ocasionais comentários nada favoráveis e curtíssimos.

José Veríssimo, por exemplo, dá-nos uma impressão de uma obra que mal vale a pena ser lida:



"Influenciado sem dúvida pelo exemplo de Basílio da Gama e de Durão, compôs Cláudio Manuel da Costa o seu poema brasileiro, senão pelo sentimento e inspiração, pelo assunto, Vila Rica. É uma obra medíocre, indigna do poeta dos Sonetos e ainda de outros versos, a qual apenas revê o apego à tradição que fazia anacronicamente viver um gênero na literatura da nossa língua."



(VERÍSSIMO,José. História da Literatura Brasileira, p.115-116)



A dureza com que Veríssimo trata o poema de Cláudio Manuel da Costa não deixa de ter suas bases sob este ponto de vista. Parece haver no poema uma constante preocupação com as normas da tradição clássica. O que talvez tenha escapado ao renomado crítico, é que nesse poema havia uma diálogo entre uma cultura colonial ainda modesta, em busca de auto-afirmação e identidade com a cultura da metrópole, de natureza clássica e secular. Sônia Salomão Khédi, em estudo crítico introdutório ao volume Cláudio Manuel da Costa, da Coleção Nossos Clássicos, assim considera o poema épico do poeta mineiro:



"O poema épico Vila Rica, que festeja a fundação da cidade, se nada acrescenta em termos qualitativos aos sonetos, diz do desejo do poeta de conhecer e expressar a realidade mineira do ciclo do ouro. Mas é um poema laudatório, conforme atesta o poeta no Prólogo e na Carta Dedicatória . (...) Subentende-se a defesa do déspota esclarecido e a identificação do poeta com a classe dirigente. Tal atitude, aqui apontada, será aquela que norteará as relações da intelectualidade brasileira com o poder oficial ao longo dos séculos."



(Nossos Clássicos,vol.110.p.19-20)



No recente volume da coleção Biblioteca Luso-brasileira da Nova Aguilar, A Poesia dos Inconfidentes: Poesias Completas de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto (1996) organizado por Domício Proença Filho, foi escolhido o ensaio de João Ribeiro, Carta ao Sr. José Veríssimo sobre a vida e as obras do poeta Cláudio Manuel da Costa (1901) para servir de introdução crítica à obra do poeta. Neste ensaio João Ribeiro assim apresenta o poema Vila Rica:



"Não é somente a monotonia e a pobreza de inspiração que nos desinteressam no poema; mas é o tom laudatório, o odor do incenso que se traem em versos, porventura menos movidos do amor da pátria que da lisonja.

O episódio do Itacolomi, inspirado com pouca originalidade no Adamastor dos Lusíadas, não tem majestade alguma e nem lembra, pelas imperfeições dagora, a severíssima musa dos Sonetos. Tudo ali é desconchavado e sem arte, sem espontaneidade, como que esculpido, se é possível, a martelo. Decerto, o virtuose que ele era não deixaria sair à luz da publicidade tão despidos esboços."



(A Poesia dos Inconfidentes, p.22)



Com esses comentários fecha-se a possibilidade de compreensão de uma obra que, talvez, apresente características para além de seu tempo, ou que passadas despercebidas de uma crítica mais atenta em julgar defeitos, não tenha sabido ver qualidades além de algumas boas intenções no autor.

Salvatore D Onofrio, p.ex., em obra que busca traçar o desenvolvimento da narrativa, partindo do épico greco-romano até a prosa contemporânea [1], no capítulo dedicado ao estudo da épica brasileira, faz somente um comentário de duas linhas sobre o poema de Cláudio Manuel da Costa: "que escrevera o fraco poema épico Vila Rica, cujo assunto é a luta dos mineiros revoltados contra a autoridade régia, imitando o estilo de O Uraguai e da Henriade, de Voltaire"(p.145).

Antônio Cândido também considera o poema "fastidioso e medíocre, abaixo de tudo quanto fez, antes e depois"(Formação da Literatura Brasileira. p.103) e aponta, como influências decisivas na composição do poema, Voltaire (Henriade) e Basílio da Gama (O Uraguai).



"Mais interessante para nós é a influência de Basílio da Gama, através de cuja obra chegou porventura até Voltaire. No Uraguai encontrou a sugestão para tratar assunto brasileiro contemporâneo, ligado à sua experiência quase imediata. Encontrou a rejeição do esquema e do próprio tom camoniano, inclusive qualquer sistema estrófico, e a descoberta de incorporar o índio como assunto, versando-o de modo mais sentimental do que heróico, tendo sido o primeiro a celebrar, embora timidamente, os amores do branco e índia - logo depois retomados por Durão."

(CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira, v.I. p.104)



É Sérgio Buarque de Hollanda quem apresenta um estudo favorável ao épico de Cláudio, em Capítulos de Literatura Colonial, em que além de apresentar um resumo do complicado enredo, traça comentários, como o que se segue:



"Em todo o poema pode dizer-se que a presença do fabulista busca suprir a mudez do lírico. A própria trama épica parece destinar-se, por momentos, a constituir um simples suporte para as diferentes criações míticas. Antecipando-se àquele tipo de brasileiro em quem, na célebre descrição de Joaquim Nabuco, a imaginação é européia, posto que já seja americano o sentimento, Cláudio Manuel da Costa não teria outro recurso mais apropriado para celebrar devidamente sua terra e seus conterrâneos. Na lírica juvenil ainda podiam falar sem percalços o desencanto e a nostalgia do degredado. Agora, porém, quando se trata expressamente de honrar o pátrio berço , importa-lhe primeiramente abolir os aspectos mais sórdidos da realidade circunstante e substituí-los por imagens forjadas segundo os padrões antigos e ilustres de que se saturara uma fantasia educada no assíduo comércio dos clássicos latinos. Em outras palavras, tirar do nada uma espécie de mitologia, por onde o seu mundo natal viesse a ganhar dignidade e decoro."

(HOLLANDA, Sérgio Buarque. Capítulos de Literatura Colonial. p.158)



É uma tarefa de complicada realização, em que pese os aspectos ideológicos e culturais, devemos tentar ver por sob essas questões que elementos nessa tarefa compõem um conjunto de valores peculiares e criativos de uma literatura em busca de afirmação.

Nesse sentido é utilíssimo o trabalho do professor Hélio Lopes, que com Introdução ao Poema Vila Rica [2], apresenta algumas qualidades encontradas no poema, qualidades essas de um ponto de vista moderno, como é o caso de uma narrativa labiríntica.

Nesse sentido o trabalho do professor Hélio Lopes sobre o poema de Cláudio Manuel da Costa é um trabalho sincrônico, para usarmos da terminologia de Roman Jakobson, pois no caso da escrita labiríntica do poema, assim coloca a sua posição:



"Acreditamos ter encontrado no Vila Rica, uma construção labiríntica. Se o lermos sob esse ângulo, muita coisa da aparência obscura, inexplicável, ilumina-se com nova luz e o poema assume aspectos de grandeza e beleza inesperados."

(LOPES, Hélio. Introdução ao Poema Vila Rica. p.172)



Essa escrita labiríntica encontra-se na poesia de vanguarda, evidentemente, que num nível lingüístico mais latente, enquanto que em Cláudio se encontra principalmente no nível do enredo, da trama. Benedito Nunes, por exemplo, assim comenta os poemas de Haroldo de Campos:



"Em seus três momentos, o percurso textual de Haroldo de Campos reabre criadoramente o processo de transformações críticas da poesia moderna, que vai da lírica estruturada pela magia verbal à proliferação labiríntica da escritura."

(COLÓQUIO/Letras, n.38, julho/77)



A estrutura labiríntica do Vila Rica, segundo Hélio Lopes, se realiza quando Albuquerque inicia sua viagem pelo interior de Minas, o herói está diante do desconhecido e tudo parece se opor à conclusão da sua jornada, mas a medida que ele vai conhecendo os segredos da terra, que em suas ações diante dos conflitos demonstra justiça e inteligência, o desconhecido vai se revelando e o herói acaba por encontra o lugar ideal para fundar sua cidade.



"Vimos a Terra, a Natureza e os Mitos criando o labirinto. O mesmo poema, no entanto, assim construído, vem a desnortear também o leitor pela construção de várias narrativas que de súbito se interrompem, depois mais adiante retomam o fio ou tomam outro aspecto como o do amor de Garcia e Aurora para, encontrado o centro , desembocar no Canto, onde apenas se acaba vendo o Itamonte, o Gênio da Terra e Albuquerque irmanados na alegria de conquistado o alvo. Esta confusa estrutura, essencial, no entanto, à obra, foi e continua o motivo para considerar o Vila Rica defeituoso, ininteligível e mal composto."

(LOPES, Hélio. Introdução ao Poema Vila Rica. p.181)



O poema de Cláudio tem um enredo que foge aos padrões clássicos exatamente por ter uma estrutura de rapsódia, onde três principais focos narrativos se cruzam. Primeiro, o drama de Garcia, em segundo, a missão pacificadora e organizadora de Albuquerque e o terceiro foco narrativo, a luta dos revoltosos. Esse cruzamento de focos narrativos é que compõe o labirinto do poema. Observa Hélio Lopes como a estrutura do poema parece confusa a uma leitura menos atenta do poema:



"A construção literária de Vila Rica desnorteia. Os cortes violentos dos episódios, justificados no desenrolar da ação, depois as retomadas do fio partido ocasionam natural perplexidade e causam no leitor a imagem de um texto caótico. Os acontecimentos caminham entre paradas súbitas e recuperam a linearidade sem aparente justificativa. Cria-se o desequilíbrio. A visível instabilidade do texto deixa, evidentemente, o leitor por sua vez jogado de um a outro ponto."

(LOPES, Hélio.Introdução ao Poema Vila Rica. p.162)



Podemos sugerir que a estrutura narrativa do poema de Cláudio parece de um hermetismo que fugia aos padrões narrativos da época e que, hoje, lembra-nos as estruturas narrativas de alguns romances modernos.



"O Labirinto é, portanto, e antes de tudo, uma punição. É a prisão simbólica da existência, a condenação a uma viagem sem horizonte. É o inferno, do qual cedo Stephen conhecerá uma aterradora descrição, e do qual Grimmelshausen, parodiando Virgílio e Dante, nos conta que, se é muito fácil de alcançar, vai ter que suar sangue e água para sair . Porque, para cada Goethe que se gaba ingenuamente de ser jovem e seguir um caminho que o tirará sem dúvida do labirinto , mil Gides nos confessam, pela boca de Teseu: Não imaginas como é complicado o labirinto. Amanhã te apresentarei a Dédalo, que te explicará. Foi quem o construiu; mas até ele não conhece mais a saída. Contar-te-á como Ícaro, seu filho, que ali se aventurou, só conseguiu sair pelos ares, usando asas. (...)

Da mesma forma que a viagem, a grande obra, a busca do Graal, o Labirinto propõe uma alegoria do destino humano. Assim ele está presente, se não diretamente, pelo menos em forma de plano, de encadeamento das peripécias, em todos os romances que, de Simplicissimus até A Montanha Mágica, de Wilhelm Meister a Retrato do Artista Quando Jovem, retraçam infâncias, progressos, a educação de um herói."

(PARIS, Jean. Joyce. p.98-99)



A criação de figuras mitológicas, que como já citamos, Sérgio Buarque de Holanda também aponta, é um dos aspectos importantes do poema. Cláudio apresenta-nos um conjunto de personagens mitológicos que parece ser fruto dos desenvolvimentos e adaptações da mitologia clássica no contato com a mitologia nativa.

Itamonte é uma figura capital no enredo do poema. O monte que deve ser conquistado e que através de poderes mágicos, como o de se personificar nos sonhos, tenta dissuadir os desbravadores de conquistarem o seu território. Porém, é um entidade mitológica ambivalente, que ao mesmo tempo que coloca obstáculos à conquista da região, concede congratulações e cooperação em momentos que os desbravadores demonstram valor. Assim, p.ex., para Garcia o personificado monte é um cooperador. Pode-se relacionar o personagem com o gigante Adamastor de Camões, mas o Itamonte é um elemento indígena, guardião da terra. O nome é híbrido: Itá, do tupi: pedra, metal; mons-tis, do latim: monte. Esta figura já aparecera na Fábula do Ribeirão do Carmo, bem como Eulina, a ninfa que encanta Garcia. Com essa recorrência, talvez busque Cláudio um afirmação literária de seus personagens mitológicos. Itamonte é irmão de Adamastor, cf. verso 146,canto II [3], e se transfere para as regiões longínquas da Serra da Mantiqueira, antes era gigante e agora por castigo de Júpiter "em duro penhasco convertido".

Observa Hélio Lopes que essa associação entre mitologia helênica e aspectos da selva brasileira dá um tom de tentativa de colocação da terra bárbara na esfera da tradição clássica, uma tentativa de valorização da terra, só que segundo os padrões clássicos vigentes:



"Quando Cláudio exila para as serranias mineiras sanguinolentos filhos da terra, sacraliza helenicamente o território onde os indígenas haviam já descoberto, nas pedras, a origem mítica daquela parte do mundo: o menino de pedra junto à mãe, mas não iam além do que os olhos pareciam mostrar."

(LOPES, Hélio. Introdução ao Poema Vila Rica. p.78- 79)





Outra figura criada por Cláudio é o Gênio da Terra, que a certa altura é nomeado como Filiponte, Philos, do grego: amigo, Pons-tis, do latim: ponte. Seu nome é assim composto só por elementos linguísticos greco-romanos. Não havendo no seu nome partícula de origem tupi, não apresentará esse personagem nenhum aspecto dúbio quanto à sua posição no poema, é um ser que trabalha pelo sucesso da expedição de Albuquerque. Efetivamente, é a figura que terá como função unir os desbravadores com a terra selvagem. Gênio da concórdia que auxilia decisivamente o herói Albuquerque na tarefa de conciliar os revoltosos e de encontrar o caminho procurado.

Outra figura mitológica e híbrida criada por Cláudio é a ninfa Eulina, que primeiramente comparecera no poema Fábula do Ribeirão do Carmo. Um aspecto identificador de sua hibridez é sua aparência, ninfa, abandonada por Apolo, tem semelhança com o mito indígena da Mãe D água, pois encanta Garcia e o leva para o fundo dos rios onde esconde seus tesouros. É a sereia indígena Ipupiara, nome aportuguesado depois para Iara.



"Ouve Garcia o canto, e não atina

De onde tanto prodígio, mas de Eulina

A delicada face está patente:

Fita os olhos, e vê desde a corrente

Lançar a mão à praia a Ninfa bela,

Toma uma areia de ouro, e já com ela

Pulveriza os cabelos: neste instante,

O sonho de Albuquerque o faz avante

Passar, os braços abre, a Ninfa chama;

Ela o vê, e não teme, e já se inflama

De amor por ele: aos braços o convida,

E abrindo o seio o rio, uma luzida

Urna de fino mármore os sepulta

Recebendo-os em si: ficou oculta

A maravilha a quantos o acompanham.

Em busca de Garcia já se entranham

Pelo matos mais densos; mas perdida

A esperança de achá-lo, e recolhida

Volta ao herói a esquadra aventureira."

(Vila Rica. Canto VII)



Essas criações mitológicas de Cláudio conferem ao poema algum brilhantismo que tem passado despercebido à crítica. Se por um lado seus mitos são uma transposição do ideal clássico sobre a terra bárbara, o que permite acusá-lo de submissão cultural aos modelos da metrópole, ao colonizador, por outro também representam uma tentativa de colocação de nossa literatura dentro do panorama da tradição épica através da criação de mitologia própria, mas aparentada com a grega e com um enredo original e de caráter moderno, associado à figura de um herói que não se destaca pelo poder bélico mas por sua capacidade administrativa.

Ora, para a época, só com essa hibridez mitológica poderia o autor aproximar do gosto árcade do leitor europeu seu poema com sabor de "esprimido licor nos fundos cobres"(Canto X)[4] , enobrecendo a terra brasileira com uma relação fraternal e cosmopolita com a mitologia greco-romana. Não foi Lisboa fundada por Ulisses, nem é Adamastor um gigante de origem helênica? Sendo nossas terras colonizadas e dominadas por Portugal seria justo que sua mitologia fosse híbrida, fruto da associação dos povos que formaram nosso povo. As figuras mitológicas de Cláudio são personagens da selva, de estirpe nobre e que auxiliam, de um modo ou de outro, o herói na sua tarefa, tendo este como principal obstáculo não o Itamonte, mas sim a desunião entre seus compatriotas.



"Estamos, disse, em uns países novos,

Onde a polícia não tem ainda entrado,

Pode o rigor deixar desconcertado

O bom prelúdio desta grande empresa.

Convém que antes que os meios da aspereza

Se tente todo o esforço de brandura.

Não é destro cultor, o que procura

Decepar aquela árvore, que pode

Sanar, cortando um ramo, si lhe acode

Com sábia mão a reparar o dano;

Para se radicar do soberano

O conceito, que pede a autoridade,

Necessária se faz uma igualdade

De razão e discurso; quem duvida,

Que de um cego furor corre impelida

A fanática idéia desta gente?

Que a todos falta um condutor prudente

Que os dirija ao acerto? Quem ignora

Que um monstruoso corpo se devora

A si mesmo, e converte em seu estrago

O que pensa e medita? Ao brando afago

Talvez venha ceder: e quando abuse

Da brandura, e obstinados se recuse

A render ao meu Rei toda a obediência,

Então porei em prática a violência;

Farei que as armas e o valor contestem

O bárbaro atentado; e que detestem

A preço do seu sangue a torpe idéia.

Disse; e deixando a todos a alma cheia

De uma nobre esperança, já passava

A saber de Garcia, nem lhe dava

Notícia dele algum dos três Pereiras."

(Vila Rica, Canto VII)



A terra a ser desbravada guarda segredos que somente os mais venturosos têm condições de revelar, de conhecer. No Vila Rica, o motivo histórico, a fundação da cidade, parece um mero pretexto para o conhecimento da nova terra. Nesse sentido soam proféticas os versos finais do poema:



"Enfim serás cantada, Vila Rica,

Teu nome impresso nas memórias fica.

Terás a glória de ter dado o berço

A quem te faz girar pelo universo."



(Canto X, v.199-202)





Comparece ainda no poema um personagem mitológico legitimamente indígena, o Curupira, que tem os pés virados pra trás. Apresentado pelo poeta como "deus destes tesouros", conforme nota 58 do poema. Este personagem falava aos desbravadores da expedição de Albuquerque que Itamonte era figura monstruosa e horrível, buscava assim dissuadi-los de sua empreitada. Com a conquista do Itamonte desfaz-se o encanto do Curupira. O personagem da mitologia indígena é um personagem a tentar impedir o domínio e o conhecimento da terra por parte do herói.



"Já desde quando no projeto vinhas

De encontrar as preciosas esmeraldas,

Eu te esperava deste monte às faldas.

O Deus destes tesouros impedia

Até aqui descobrí-los, e fingia

Meu rosto aso homens tão escuro e feio

Por que infundisse em todos o receio."

(Vila Rica. Canto VIII, v.189-195)



O poema épico de Cláudio parece que apresenta uma matéria mítica que suplanta à matéria da narrativa histórica e, de tal modo, que se não atentarmos para ela e ficarmos somente avaliando esse poema em função de características como distância histórica do fato narrado, importância do fato narrado, características do herói, ou ainda, se ficarmos a comparar a linguagem da epopéia em Cláudio com os seus versos da lírica, teremos que compactuar com a posição daqueles críticos que consideram tal obra menor, de importância apenas documental.

Podemos também dizer que o poeta perdeu uma boa oportunidade de construir um poema épico sobre os bandeirantes ao transformar o episódio de Borba Gato, p.ex.,em algo menor dentro da estrutura do poema.

Vejamos os versos do episódio no Canto VI em que o poeta exalta os bandeirantes paulistas. Notemos como o poeta, após enumerar os nomes dos bandeirantes, diz que se as ninfas do Tejo exaltam a viagem de Vasco da Gama (referência indireta aos Lusíadas), o poeta diz que dos paulistas honrará a fama, embora o Vila Rica não tenha se efetivado como um poema sobre as Bandeiras. Parece que em algum momento da composição do poema Cláudio pensou em torná-lo obra representativa, na literatura, das expedições bandeirantes, porém o poema apresenta como herói Albuquerque, enviado da corte portuguesa, e não um aventureiro paulista em busca de riquezas. Não é a corrida do ouro o seu mote, mas a fundação da cidade natal do poeta. Os bandeirantes, no poema, preenchem o episódio de Borba Gato e participam auxiliando Albuquerque na conquista das Minas.



"Levados de fervor, que o peito encerra

Vê os Paulistas, animosa gente,

Que ao Rei procuram o metal luzente

Co as próprias mãos enriquecer o erário.

Arzão é este, é este, o temerário,

Que da Casca os sertões tentou primeiro:

Vê qual despreza o nobre aventureiro,

Os laços e as traições, que lhe prepara

Do cruento gentio a fome avara.



A exemplo de um contempla iguais a todos,

E distintos ao rei por vários modos

Vê os Pires, Camargos e Pedrosos,

Alvarengas, Godóis, Cabrais, Cardosos,

Lemos, Toledos, Paes, Guerras, Furtados,

E os outros, que primeiro assinalados

Se fizeram no arrojo das conquistas,

Ó grandes sempre, ó imortais Paulistas!

Embora vós, ninfas do Tejo, embora

Cante do Lusitano a voz sonora

Os claros feitos do seu grande Gama;

Dos meus Paulistas honrarei a fama.

Eles a fome e sede vão sofrendo,

Rotos e nus os corpos vem trazendo,

Na enfermidade a cura lhes falece,

E a miséria por tudo se conhece."



(Vila Rica, Canto VI)



Notemos como o poeta usa os pronomes pessoais "meus" e "seu" ao contrapor os bandeirantes paulistas com Vasco da Gama. São versos como esses que confirmam explicitamente o sentimento nativista que já se fazia sentir no imaginário do poeta.

Parece que existe um jogo nessa obra entre o real e o imaginário, de modo que as principais ações são mediadas pelo mágico, haja visto entre tantos exemplos que podemos citar, como o momento em que os revoltosos são assombrados por terríveis figuras na noite, ou a revelação de Filiponte na gruta perante Albuquerque, ou ainda o episódio em que Eulina leva Garcia para o fundo das águas, mas pretendo destacar nesse sentido o episódio em que Argasso mata Aurora. Julgando ver no lugar de sua amada, que fora, aliás, motivo de disputa entre o índio e Garcia, uma fera, e estando em caçada, flechando o animal visto, descobre após, tratar-se de sua amada. Não podemos deixar de comparar esse episódio com o da morte de Lindóia em O Uraguai[5].



"Terifea a ocasião julga oportuna,

Põe os olhos no Céu, alta coluna

Levanta, e firma em terra; já sobre ela

se ergue e murmura e nota cada estrela

Com o dedo, depois desce e riscando

Muitas vezes em roda, vai tocando

A coluna, que treme e que se move:

Tolda-se em sombra o ar, troveja e chove:

E o tronco de entre a nuvem que o cobrira,

Sai figurando um tigre, que respira

Fogo e veneno pelos olhos; passa

Com ele ao monte, e o guia onde a caça

Se tenta e busca; aqui dormia Aurora;

Dormia; e junto aos pés branda e sonora

Fontesinha o repouso convidava;

O peito em grande parte debruçava

Sobre uma penha, e ao gesto brando e lindo

De encosto o mole braço está servindo,

Chega a Maga cruel, põe-lhe diante

A fera, que conduz, e ao mesmo instante

Se oculta em parte, onde o sucesso veja:

O cuidado de a ver, ou fosse a inveja

Aquele sítio encaminhava os passos

Do destemido Argasso; entre embaraços

De mal distintos ramos já descobre

O mosqueado tigre, ao braço nobre

O crê despojo, e de matá-lo espera,

Firme o pé desde longe aponta a fera,

E atrás puxando o braço a seta envia,

Que vai cravar no monstro a ponta fria.



Corre gritando, ó Césa, e vê passado

De Aurora o peito; em vão busca assombrado

O tigre, que não há: já desfalece

A pouco e pouco a bela: a mágoa cresce

No mísero homicida, clama e grita,

Atroa aos Céus, e contra os Céus se irrita,

Nem mais a vida, que estimara, preza;

Arroja o arco, e à infeliz beleza

Consagra de seu corpo o último resto."



(Vila Rica, Canto VI)



Nesse momento bem vemos como os segredos mágicos da terra são tais que apresentam mal fado até aos nativos, desde que imprudentes. Argasso fora enganado pelo sentido da visão.

Tal engano de Argasso ocorre devido à magia da feiticeira Terifea, que assim procede atendendo ao pedido da também pretendente ao amor de Argasso, Eulinda, que oferece à feiticeira duas crianças para que a bruxa faça com estas um ritual de antropofagia que lhe apraz. Esse motivo parece ser de uma lenda indígena que, como aponta Hélio Lopes inclusive, aparece em Macunaíma, de Mário de Andrade [6]. Nesse episódio vemos como a matéria mítica do poema fornece elementos que definem a estrutura do poema. E de tal modo há no enredo um conjunto de mitos criados pelo poeta ou de mitos retirados do fabulário nativo, que o poema parece mais uma épica em forma de rapsódia do que o poema que apenas canta a fundação de uma cidade. Propositadamente ou circunstancialmente, não vem muito ao caso, o poema de Cláudio apresenta algumas características que transgridem o modelo.



Notas:

1-D ONOFRIO, Salvatore. Da Odisséia ao Ulisses: Uma evolução do gênero narrativo.São Paulo, Duas Cidades, 1981. O Capítulo dedicado à épica brasileira vai da página 137 à 148.



2-Trata-se de uma tese apresentada à USP, e com posterior publicação por conta do próprio autor. É um trabalho interessante tanto ao nível teórico, como um bom fornecedor de informações históricas e biográficas.



3-"Eu sou dos filhos, que abortara a terra, / E fiz com meus irmãos aos deuses guerra; / (Tu, negro Adamastor, hoje em memória / Me obrigas a trazer a tua história)"



4-O verso é parte da descrição do processo de produção do açúcar.

5-Antônio Cândido assim observa: "O episódio da morte de Aurora é calcado no de Lindóia, com pequenas alterações, sendo a comparação fatal para Cláudio."(CÂNDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira, v.I. p.104)



6-Ver ANDRADE, Mário. Macunaíma, p. 17 , ou a respeito da lenda indígena CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos Mitos,p.77-83.







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