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Artigos-->A função social da poesia em Pasárgada. -- 21/05/2005 - 22:00 (Jayro Luna) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
A função social da poesia em Pasárgada:

Alguns apontamentos sobre a poética de Manuel Bandeira

Prof. Dr. Jayro Luna



A poesia de Manuel Bandeira tem sido, algumas vezes, lembrada como a do modernista que soube associar o modernismo com aspectos simbolistas, como, por exemplo, as simbologias evanescentes e implícitas da natureza ou ainda a musicalidade numa composição dominada pelos versos livres. O tema do ritmo da água(1) em Bandeira representa muito destas influências simbolistas, tanto em termos de simbologias quanto em termos de ritmo poético. Sérgio Buarque de Hollanda no prefácio que escrevera para a publicação da Obras Completas – Poesia e Prosa – de Bandeira pela Aguillar, já observava esse tema da água nos versos do poeta.

Outro tema importante e relacionado a este da água é o do céu(2) e todo o seu campo semântico, como sol, estrelas, luas, nuvens, aviões, aeromoça, anjo e a chuva (esta última palavra encontra-se num espaço de intersecção com o tema da água).

Por outro lado, o verso livre em Bandeira é o espaço da criação lírica por excelência, em que o ritmo é exercitado pelas palavras sob a batuta do poeta em ritmo dissoluto de carnaval – perdoem-me o trocadilho com os títulos de livros de Bandeira.

O lirismo em Bandeira tem sido apontado como um diferenciador de sua obra em comparação com a de Mário de Andrade e Oswald de Andrade. Em Bandeira, no dizer de José Carlos Garbuglio tem-se “com certeza, o poeta brasileiro que se encontra mais próximo da lírica portuguesa, cuja tradição ele conhecia de muito perto, desde os cancioneiros, passando pelo quinhentismo, até o Simbolismo. Deste modo, ele pode transitar pelos cantares de amor e de amigo, pelos clássicos, especialmente por Camões, pelos românticos portugueses e brasileiros, pelos simbolistas, de lá e de cá, e sentir todo o peso e a beleza dessa longa lição e rica tradição, que subjaz toda a sua poesia.” (GARBUGLIO, José Carlos. Roteiro de Leitura, p.45) .

Um poema considerado por alguns como decisivo para a compreensão dessa lírica de Bandeira é o “Vou-me-embora pra Pasárgada”, que Mário de Andrade – lembra-nos Sérgio Buarque de Hollanda – definira como sendo o melhor exemplo de “vou-me-emborismo” da poesia brasileira. Só que esse “vou-me-emborismo” de Bandeira é um pouco mais do que fuga para o locus amenus, característico de várias poesias populares. Em Bandeira o ir para Pasárgada é a transformação do tempo e do espaço presentes e reais em um mundo idealizado, reflexo em negativo das opressões que o poeta presencia e sofre em sua vida. Assim em Pasárgada o poeta andará de bicicleta, tomará banhos de mar – atividades pouco recomendadas aos tuberculosos – fará muito sexo, notadamente com prostitutas e viverá de modo nababesco graças à amizade que teria com o rei do lugar. A Pasárgada histórica – cidade de atividade religiosa no tempo da Pérsia de Ciro e de Dario – transforma-se no reino do imaginário de Bandeira em que inclusive a ciência está a serviço da vida prazerosa que o poeta pretende viver – em Pasárgada tem um processo seguro de evitar a concepção. O amor pelo prazer e não pela reprodução. O rei dessa Pasárgada seria menos Ciro ou Dario – reis persas – do que Dioniso, o mitológico deus grego das festas carnais e carnavalescas e do vinho que embriaga os sentidos.

Por outro lado, na poesia de Manuel Bandeira também tem sido apontado um viés ligado à poesia de caráter mais social, menos subjetivo e, talvez, lírico, associado à participação e engajamento nas discussões sociais. Assim poemas como “Tragédia Brasileira”, em que Misael, funcionário público de 63 anos, apaixona-se por uma prostituta, Maria Elvira, mas não consegue recuperá-la do gosto pela variedade de amantes. A lista de bairros e ruas do Rio de Janeiro colocada na parte final do poema indica o número de amantes de Maria Elvira, e num final trágico, Misael mata Maria Elvira, deixando o corpo da mulher caído e vestido de organdi azul. Ou ainda, o “Poema tirado de uma notícia de Jornal”, em que o personagem João Gostoso, após beber, cantar e dançar, atira-se na lagoa Rodrigo de Freitas e morre afogado. Esses poemas, apresentando as pequenas, mas fatais tragédias do cotidiano, do povo, inserem-se numa poesia que denunciaria o cotidiano repressivo e urbano que distancia as aspirações individuais das possibilidades reais da vida numa grande cidade brasileira. Ainda outro poema, que transcrevemos abaixo, estaria nesse âmbito:



O Bicho



Vi ontem um bicho

Na imundície do pátio

Catando comida entre os detritos.



Quando achava alguma coisa,

Não examinava nem cheirava:

Engolia com voracidade.



O bicho não era um cão,

Não era um gato,

Não era um rato.



O bicho, meu Deus, era um homem.



O poema, cuja simplicidade composicional pode ingenuamente levar a pensar numa poética sem maiores complexidades ou sem maiores preocupações do que a direta comunicação do fato cotidiano, como um extrair do dia-a-dia a poesia latente, sem “dourar a pílula” com um artefato técnico poético, na verdade é enganosa. O poema não é apenas simples, mas principalmente harmonioso. O poema é antes fruto de um contínuo pensar sobre poesia, e o resultado é mais do que o trato direto com a realidade, é a transformação dessa realidade numa outra, dita poética, e que no confronto de ambas se desvelam os recursos expressivos que transformam uma na outra, ou seja, realidade em poesia. Senão vejamos: O poema se compõe de dez versos, distribuídos em três tercetos e um verso final. O substantivo comum e concreto “bicho” aparece três vezes no poema. Na primeira estrofe se diz em que tempo e lugar o bicho foi visto, bem como que ação ele – o bicho – praticava. O tempo, colocado num passado próximo – ontem – dá à narração proposta na estrofe um caráter de comentário do cotidiano, assim como o lugar – o pátio – que se acrescenta era imundo. Por que o pátio era imundo? Um pátio com detritos, com restos de comida. Um pátio representativo de uma sociedade que desperdiça, que difere substancialmente a casa – lugar individual, de abrigo, e que, portanto, deve ser amado, limpo, organizado – com a rua – lugar coletivo, que sendo de todos não é de ninguém, que não oferece abrigo, e que por isso também é sujo, sem cuidados. Não diz o poema que o bicho catava comida na lata de lixo, mas entre os detritos do pátio, reforçando a idéia de que o pátio estava imundo. Na terceira estrofe, temos pela segunda vez a palavra “bicho”. Agora a preocupação é definir o bicho pela sua negação, isto é, antes de dizer-se qual é o bicho, se diz que bicho não é. Existe nessa estrofe uma progressão dramática. A seqüência “não cão / não gato / não rato”, além da idéia de uma cadeia alimentar – o cão caça o gato que caça o rato, refere-se mais propriamente a uma gradação dos animais que compartilham com o homem o seu habitat urbano. O primeiro – o cão – é comumente definido como “o amigo do homem”, animal que se caracteriza pela sua fidelidade ao dono, e pela expressividade desse sentimento com seus latidos característicos, seu abanar de cauda. O cão vadio, tolerado pela população, embora perseguido pelas autoridades sanitárias poderia ser o bicho, mas se voltarmos a atenção para a segunda estrofe, veremos que não. O bicho em questão não cheirava o que comia, coisa que nem o mais faminto dos cães deixaria de fazer. O olfato canino é seu principal sentido, é por ele que primeiro o animal toma contado com a realidade percebida. O segundo animal – gato – já mantém um distanciamento mais característico para com o homem. Embora definido como animal doméstico, o gato não expressa sua alegria para com o dono com a mesma intensidade que um cão. Um ou outro miado, um leve roçar de dorso nas pernas do homem e é tudo, logo ele se retira para o seu canto, ou se aninha senhor de tudo e de todas as coisas no colo, sem esquecer de prepará-lo com umas boas unhadas para amolecer o lugar – ai, ui! O gato das ruas, como o cão, tolerado pelo povo e perseguido por uns poucos abnegados funcionários da dita “carrocinha” não poderia ser o bicho do poema, não examinou a comida que estava a sua disposição. Não conheço gato que coma alguma coisa sem antes observar com todos os seus sentidos o prato, e se um só item estiver em desacordo com as expectativas, é muito mais provável deixar o alimento ali e procurar por coisa melhor. O terceiro animal, o rato, tomado como uma praga na vida do homem, que desde o início da civilização vem saqueando nossa despensa, à nossa revelia participando como penetra de nossos melhores jantares, e que em troca ainda nos presenteia com doenças terríveis como a peste bubônica, este também não era o bicho em questão. Ou seja, nesses três animais o poeta faz uma digressão, do animal mais próximo e amado pelo homem a um dos mais odiados, assim como faz uma digressão de um subjetivo índice de humanidade desses três animais .(3)

O último verso é aquele que apresenta o substantivo “bicho” pela terceira vez. O bicho é revelado, o bicho era o homem. O poeta retira de nossa imaginação o véu que encobria a possibilidade de identificarmos a fera, e para nossa surpresa a fera era um homem igual a nós. Mas não é só isso de que se compõe esse último verso. O poeta insere entre o substantivo, sujeito da oração – bicho - e o verbo de ligação – ser - um vocativo – meu Deus - vocativo, que tem tal carga expressiva que pode em determinada leitura dramática assumir às vezes de uma interjeição pelo horror que causa a revelação da espécie do bicho. E mais, o substantivo próprio e concreto – Deus – cria uma trindade no verso: deus – homem – bicho. E perguntamos a partir dessa trindade. Não olha Deus por esse homem? Será por que na sua miséria e condição social deixou de possuir algum traço de humanidade?

O poema, portanto, tem várias trindades ou tríades, a saber:



- três vezes ocorre o substantivo comum e concreto “bicho”

- três tercetos

- tríade de animais no terceiro terceto: cão-gato-rato

- trindade do último verso: deus-homem-bicho.



E a mais surpreendente delas, o poema não é em verso livre, como em geral se tem suposto, mas é na verdade um poema composto por três medidas de versos: octassílabos, pentassílabos e eneassílabos, conforme podemos notar na escansão abaixo:



O Bicho



Vi/ on/tem/ um/ bi/cho = pentassílabo

Na/ i/mun/dí/ci/e/ do /pá/tio = octassílabo

Ca/tan/do/ co/mi/da em/tre os/ de/tri/tos. = eneassílabo



Quan/do a/cha/va /al/gu/ma /coi/sa, = octassílabo

Não /e/xa/mi/na/va /nem /chei/ra/va: = eneassílabo

Em/go/lia/ com/ vo/ra/ci/da/de. = octassílabo



O/ bi/cho/ não/ e/ra/ um /cão, = octassílabo

Não/ e/ra/ um /ga/to, = pentassílabo

Não/ e/ra/ um/ ra/to. = pentassílabo



O/ bi/cho,/ meu/ Deus,/ e/ra/ um/ ho/mem.= eneassílabo



Pela divisão silábica acima o poema tem 3 pentassílabos (1.º,8.º e 9.º versos), 4 octassílabos (2.º,4.º, 6º e 7.º versos) e 3 eneassílabos (3.º, 5º e 10.º versos). Pode-se perguntar qual a origem e intenção dessa medida nos versos do poema, ou seja, em que medida essa medida auxilia na significação do poema. Ora, o estrato formal, na sua comunicabilidade subliminar reforça o aspecto da trindade colocada no último verso, trindade essa que se opõe à tríade de animais esperados que estivessem a revirar o lixo (cão, gato, rato). Ou seja, a trindade do último verso tem caráter filosófico e religioso, a tríade de animais tem caráter materialista e biológico. Pois bem, podemos ainda observar – como que para botar mais lenha na fogueira dos críticos – que as medidas utilizadas nos versos (5,8 e 9 sílabas) resultam de uma associação numérica entre os substantivos principais do poema: homem, deus, cão, gato e rato. Desse modo:



Homem: 5 letras, medida do verso: pentassílabo

Homem + cão: 8 letras, medida do verso: octassílabo

Homem + gato: 9 letras, medida do verso: eneassílabo

Homem + deus: 9 letras, medida do verso: eneassílabo



Ou seja, os números que servem de base às medidas dos verso são obtidos numa correlação entre o número de letras das combinações de homem (5 letras) com deus, cão, gato e rato. Isto é, o homem que se transforma num ser desumanizado compõe com os animais ou com Deus os números das medidas dos versos, estando aí uma analogia que compreende o número como aspecto formal do poema, mas também como número da ordem de Deus no aspecto semântico do poema.

E, ainda mais, o último verso é gramaticalmente um período simples composto por três partes: o sujeito (o bicho), o predicado nominal (era um homem) e o vocativo (meu Deus).

Uma sétima relação com o número três está no título do poema: tem três sílabas gramaticais (o/bi/cho).

Se observarmos as palavras iniciais de cada verso podemos descobrir uma oitava tríade: A das classes gramaticais das palavras iniciais dos versos. Temos a classe dos verbos, que são 3: Vi (pretérito perfeito do indicativo), Catando (gerúndio), engolia (pretérito imperfeito do indicativo); temos a classe dos modos de ocorrência (advérbios, locuções adverbiais), como é o caso de “Quando” (advérbio de tempo) e “Na imundície”, locução adverbial de lugar, e por três vezes temos o advérbio de negação “não” no início dos versos. A terceira classe gramatical que inicia os versos é a rigor o artigo masculino, singular “o” que antecede o substantivo bicho.

A última e nona relação com o número três que pretendo destacar no poema diz respeito às palavras finais dos versos e, portanto, ao conceito de rima. Aparentemente existe uma única rima no poema (gato e rato), com boa vontade podemos considerar ainda uma rima toante no primeiro terceto (bicho/detritos). Porém, se atentarmos, partindo da abertura dada pela presença dessa rima toante no poema, apenas nos sons vocálicos dessas palavras finais, veremos que a cada um dos tercetos corresponde uma rima vocálica. Assim:



Palavras Finais:

Terceto 1: Bicho / pátio / detritos (sons vocálicos: i-o/á-i-o/e-i-o), Rimas vocálicas: i-o

Terceto 2: coisa / cheirava /voracidade (sons vocálicos: o-i-a / e-i-a / o-a-i-a-e), Rimas Vocálicas: i-a

Terceto 3: cão / gato / rato (sons vocálicos: ã-o / a-o / a-o), Rimas Vocálicas: a-o



Temos, pois, três rimas vocálicas, uma para cada terceto. E notemos que o último verso do poema não tem rima vocálica como os demais. É como se o homem “não rimasse” com os animais nem com os detritos no pátio, nem com a imundície.

Ao todo, somamos, até aqui nove tríades no poema. Podem objetar alguns que se trata no fundo de uma leitura que peca pela engenhosidade, que é muito pouco provável que o poeta tivesse intenção ou consciência dessas tríades. Tal argumento, penso, não se sustenta como decisivo para a validade da presente leitura. Lembremos que a poesia comunica de modo subliminar muito de seus aspectos formais, e que a própria composição desses elementos, muitas vezes, não é em verdade fruto de uma atividade consciente do poeta, mas que estão relacionados ao processo consciente de tal modo que se apresentam como traduções de um diálogo entre o nível consciente e o inconsciente no processo de criação. E se as nove tríades parecem até aqui como um conjunto de casualidades, notemos que se pode agrupar essas nove tríades em três estratos de constituição do poema.

Primeiro é o estrato formal poético. Defino tal estrato pelos aspectos relativos à teoria do verso. Temos no poema as tríades dos tercetos, das rimas vocálicas e das medidas dos versos.

O segundo estrato é o sintático-morfológico. Temos nesse estrato a tríade das partes do período simples do último verso, a tríade das classes gramaticais das palavras inicias dos versos e a tríade das sílabas do título do poema (O/bi/cho).

O terceiro estrato semântico, e no caso do poema é o estrato de significação da palavra “homem”. Temos nesse estrato a tríade dos animais (cão, gato, rato), a tríade teológica (deus, homem, bicho) e a tríade de ocorrência da palavra “bicho”.

Creio poder concluir que os três estratos apresentam um diálogo de formas que visa a reforçar subliminarmente a harmonia do poema, que na sua aparente simplicidade apresenta-nos um desconserto, um desarranjo da ordem social, de tal forma que o homem – feito a imagem e semelhança de Deus – apresenta-se como o animal, o bicho, desprovido de razão e de alma consciente. Assim a rigorosa e complexa estrutura do poema é uma resposta da poesia a tentar recompor a ordem natural que se apresenta no nível de significação do poema e que está subvertida. E a tríade, expressão matemática da trindade é o elemento que vai representar essa busca de restauração da ordem natural. É como se o número três ao representar a trindade estivesse nas diversas ocorrências do poema tornando-se manifestação sígnica da ordem de Deus. Assim o poema, embora considerado um poema de engajamento nas questões sociais, o faz via uma aproximação com as questões católicas que determinam uma filiação de algumas alas da igreja com a participação nas questões sociais, o dito catolicismo progressista, e se atentarmos para o fato desse poema ter sido escrito dois anos após o término da segunda guerra mundial, teremos mais um elemento para corroborar nossa tese, tendo em vista o sentimento dominante naquela época em que o mundo ocidental voltava-se para a religião como resposta à atmosfera de pessimismo causada pelo maior conflito armado da humanidade.

A poesia social de Manuel Bandeira tem sido mais entendida como uma faceta de seu lirismo, do que propriamente uma fase de sua poética. Nesse sentido, sua poesia social encontra-se disseminada e ao mesmo tempo contaminada pelas características de seu lirismo. Entre essas características temos que ressaltar as reminiscências da infância. Existe toda uma série de poemas em Manuel Bandeira que desenvolvem arquétipos ligados à infância, destacando uma visão da ingenuidade do olhar da criança como arma e defesa para os obstáculos do mundo. Assim o olhar da criança como que desarma e ou desarticula os aparelhos repressivos conscientes ou inconscientes do ambiente social, de modo que deixa a mostra as contradições e incongruências desse sistema. Vista desse modo, sua poesia lírica com reminiscências da infância não é só um recordar de um tempo edênico ou de um tempo biográfico do poeta anterior aos males pelos quais viria a sofrer e marcar sua existência, é também uma poesia de compromisso com uma poética que tenha como um de seus princípios a análise e a subversão dos desarranjos do mundo e da sociedade. Leiamos, a esse respeito, o poema “Infância” do livro Belo Belo.



Infância



Corrida de ciclistas.

Só me recordo de um bambual debruçado no rio.

Três anos?

Foi em Petrópolis.



Procuro mais longe em minhas reminiscências.

Quem me dera me lembrar da teta negra de minh’ama-de-leite...

...meus olhos não conseguem romper os ruços definitivos do tempo.

Ainda em Petrópolis... um pátio de hotel... brinquedos pelo chão...



Depois a casa de São Paulo.



Miguel Guimarães, alegre, míope e mefistofélico,

Tirando reloginhos de plaquê da concha de minha orelha.

O urubu pousado no muro do quintal.

Fabrico uma trombeta de papel.

Comando...

O urubu obedece.

Fujo aterrado do meu primeiro gesto de magia.



Depois... a praia de Santos...

Corridas em círculos riscados na areia...

Outra vez Miguel Guimarães,juiz de chegada,com os seus presentinhos.

A ratazana enorme apanhada na ratoeira.

Outro bambual...

O que inspirou a meu irmão o seu único poema:



Eu ia por um caminho,

Encontrei um maracatu.

O qual vinha direitinho

Pelas flechas de um bambu.



As marés do equinócio.

O jardim submerso...

Meu tio Cláudio erguendo do chão uma ponta de mastro destroçado.



Poesia de naufrágios!



Depois Petrópolis novamente.

Eu, junto do tanque, de linha amarrada no incisivo de leite, sem

[coragem de puxar.

Véspera de Natal... Os chinelinhos atrás da porta...

E a manhã seguinte, na cama, deslumbrado com os brinquedos

[trazidos pela fada.



E a chácara da Gávea?

E a casa da Rua Don’Ana?



Boy, o primeiro cachorro.

Não haveria outro nome depois

(Em casa até as cadelas se chamavam Boy).



Medo de gatunos...

Para mim eram homens com cara de pau.



A volta a Pernambuco!

Descoberta dos casarões de telha-vã.

Meu avô materno – um santo...

Minha avó batalhadora.



A casa da Rua da União.

O pátio – núcleo de poesia.

O banheiro – núcleo de poesia.

O cambrone – núcleo de poesia (la fraicheur des latrines!)

A alcova de música – núcleo de mistério.

Tapetinhos de peles de animais.

Ninguém nunca ia lá... Silêncio... Obscuridade...

O piano de armário, teclas amarelecidas, cordas desafinadas.



Descoberta da rua!

Os vendedores a domicílio.

Ai mundo dos papagaios de papel, dos piões, da amarelinha!

Uma noite a menina me tirou da roda de coelho-sai, me levou

[imperiosa e ofegante, para um desvão da casa

[de Dona Aninha Viegas, levantou a

[sainha e disse mete.

Depois meu avô... Descoberta da morte!



Com dez anos vim para o Rio.

Conhecia a vida em suas verdades essenciais.

Estava maduro para o sofrimento

E para a poesia!



O poema, que é o último do livro, costumeiramente tem sido interpretado como uma tentativa itinerária e rotineira de organizar as lembranças da infância segundo uma certa seqüência temporal com o fim de apresenta-la como matéria poética. Para José Carlos Garbuglio o poema é um dos mais adequados para o entendimento da importância do tema da infância na poesia de Manuel Bandeira. Reproduzo abaixo os três parágrafos da análise do texto pelo excelente professor e crítico de literatura brasileira:



“A partir de uma visão geral, pode-se dizer que é um poema articulado em torno dos atos de iniciação, com aproveitamento dos ritos de passagem próprios da idade: começa pela nutrição da primeira infância, passa pelos sustos da descoberta do mistério, embutido nas mágicas intempestivas, entra pela descoberta da rua com seus brinquedos e pregões, passa pela experiência sexual e pelo descortínio da morte e, assim, se ligam os dois pólos da vida. As experiências que se vão relatando ao longo do poema ganham substância e emoção no balanceado dos versos curtos e longos que se alternam para traçar o roteiro percorrido e oferecer a idéia de mobilidade e riqueza desses anos tão cheios de surpresas e alegrias. Por esses caminhos se chega ao descortínio do mundo e se acompanha o processo de amadurecimento e a transformação da criança em adulto, como faz ver ao final o poeta (...)

A escritura do poema mostra um esforço extremo de memória na busca de registros que deixaram marcas mais decisivas em sua experiência. Nesta direção, o passado almejado ganha contornos singulares e se projeta como um espaço-tempo propício à geração de sua particular mitologia por ser um momento de dimensões especiais: um tempo-forte. A atitude de cavar fundo para alcançar o ponto mais distante da vida leva à ressurreição dos atos que preencheram este passado, ao mesmo tempo em que se vai construindo o poema, substância maior da vida presente. Se a palavra foi o veículo que permitiu a aproximação, a ponte entre os dois tempos foi também a responsável pela cristalização dos acontecimentos, que se banham agora numa aura de sacralidade.

Na verdade, são acontecimentos que estabelecem um espaço-tempo exemplar, diferente daquele normal, profano. Espaço-tempo inaugurador que dá aos acontecimentos estatuto de rito, põe o homem diante do desconhecido, até chegar ao amadurecimento e ao conhecimento. Assim, chega-se a uma nova dimensão do mundo, assiste-se ao surgimento de um novo homem, ciente daqueles valores, ansioso por guardar e proteger aquela realidade que, congelada na poesia, torna-se susceptível de repetição, pois possibilita a reatualização do gesto e momento inicial.”

(GARBUGLIO, José Carlos. Roteiro de Leitura: Poesia de Manuel Bandeira. p.100-101)



A leitura do poema, pertinente e com a qual nada tenho a discordar, permite também que se queira voltar ao texto e observar mais alguns aspectos. Afinal, se o poeta faz um grande esforço num duro exercício de memória para resgatar momentos distantes no tempo, e ainda, por cima, se deu ao trabalho de organiza-los de uma forma diacrônica, e se como diz Garbuglio, o poeta apresenta-nos essas lembranças como se fossem partes de um rito, um rito de passagem; convém observar como esse rito torna-se matéria poética e se nessa transformação não ouve uma preparação do discurso de modo a que as reminiscências da infância se transmutassem num discurso poético que respondesse às exigências presentes de seu projeto poético. Sabemos, pela leitura do Itinerário de Pasárgada que Manuel Bandeira, embora possa dar-nos a impressão de que preferia que o poema se lhe apresentasse por completo no momento da escritura, procurando evitar o domínio pleno de uma racionalidade construtiva que exercesse um poder metódico verso a verso, palavra a palavra, e de tal modo que Bandeira se diz poeticamente estar numa posição de quem escreve oposta à de Paul Valéry; sabemos também que Manuel Bandeira, por outro lado, era rigoroso com aspectos rítmicos e expressivos de seu poema, e que entendia, por exemplo, que o domínio pleno da técnica do verso livre deveria passar antes por um conhecimento técnico e prático do verso medido (4). Na abertura do texto de Itinerário de Pasárgada, Bandeira escreve sobre o poema “Infância”:



“Sou natural do Recife, mas na verdade nasci para vida consciente em Petrópolis, pois de Petrópolis datam as minhas mais velhas reminiscências. Procurei fixa-las no poema ‘Infância’: uma corrida de ciclistas, um bambual debruçado no rio (imagino que era o fundo do Palácio de Cristal), o pátio do antigo Hotel Orleans, hoje Palace Hotel...Devia ter eu então uns três anos. O que há de especial nessas reminiscências (e em outras dos anos seguintes, reminiscências do Rio e de São Paulo, até 1892, quando voltei a Pernambuco, onde fiquei até os dez anos) é que, não obstante serem tão vagas, encerram para mim um conteúdo inesgotável de emoção. A certa altura da vida vim a identificar essa emoção particular com outra – a de natureza artística. Desde esse momento, posso dizer que havia descoberto o segredo da poesia, o segredo do meu itinerário em poesia. Verifiquei ainda que o conteúdo emocional daquelas reminiscências da primeira meninice era o mesmo de certos raros momentos em minha vida de adulto: num e noutro caso alguma coisa que resiste à análise da inteligência e da memória consciente, e que me enche de sobressalto ou me força a uma atitude de apaixonada escuta.”

(BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada, p.17)



Bandeira afirma que as lembranças que ele tem da infância começam por Petrópolis, um enevoado quadro com corrida de ciclistas e um bambual. Mas o que se diz no poema é que a corrida de ciclistas não chamou a atenção do pequeno de três anos, mas sim o bambual, é dele que o poeta afirma que só se lembra. Na estrofe seguinte o poeta tenta recuar mais no tempo, anterior a esse acontecimento, o tempo do Recife, de seu nascimento, mas não consegue. Os fatos e personagens citados são de seu conhecimento por tê-los apreendidos por meio da fala dos adultos, ele mesmo não os recorda: “meus olhos não conseguem rompes os ruços definitivos do tempo”. Observemos que o poeta fala do sentido da visão, mas evidentemente não é a visão propriamente dita a que se refere o poeta, mas sim um sentido conotativo de visão que compreende a recuperação de imagens mentais por meio da memória. Nos verso seguinte reforça-se de modo expressivo um recurso de pontuação que já vinha se delineando sutilmente: as reticências. No poema “Inspiração”, Mário de Andrade já se utilizara drasticamente deste recurso, lá, porém, as reticências tinham um sentido de referenciar o processo mental do adulto de associar lembranças de modo, às vezes, casual ou sob a égide de um processo inconsciente. Aqui, em Bandeira, não é tanto isso, mas mais a demonstração lacunar e sob o domínio da elipse em que ocorre a recuperação das reminiscências de infância.



“Ainda em Petrópolis... um pátio de hotel... brinquedos pelo chão...”



A seguir, as lembranças de São Paulo já apresentam acontecimentos mais completos, o amigo da família, Miguel Guimarães faz alguma mágica de salão que impressiona o menino e reafirma-lhe a impressão de que o mundo infantil é mágico. Depois, o episódio em que o pequeno toma um acontecimento envolvendo um urubu como prova de seu poder sobre a natureza. Esses versos, podem também, ser lidos num sentido metapoético. O fabricar de um trombeta de papel (o ofício poético, destacando-se nesse ofício o poder comunicativo, revelador, profético e social da poesia) como maneira do poeta estar na atividade plena de expressão diante da sociedade (“Comando...”). A natureza representada pelo “urubu”, ave que conota mal-agouro, azar, e que por outro lado, é o lixeiro dos campos, aparentemente “obedece”. O pequeno “foge, aterrado”. O urubu representaria o anti-estético, o antipoético, o anti-artístico, mas que se demonstrou sujeito ao domínio do poeta. O medo surge do poder insuspeitado que tinha a “trombeta de papel”.

A seguir, o poeta fala-nos de Santos, e destaca-se o contato com a Natureza outra vez: “a praia de Santos... / Corridas em círculos riscados na areia...”. Aqui podemos antepor o riscar na areia à trombeta de papel. Esta apresentou-se como dotada de poder insuspeitado, a outra – o riscar na areia – conota sua efemeridade relativa eternizada pela lembrança, isto é, os riscos na areia logo apagam-se mas permaneceram riscados na mente do menino. Dois elementos se reprisam, como que a reforçar pela recorrência sua permanência nas lembranças, a saber: Miguel Guimarães e o bambual. Desta vez, Miguel Guimarães não é o mágico, mas é o juiz. O personagem deixa de representar a possibilidade mágica do tempo infantil, para anunciar a chegada da época do juízo, do julgamento sobre a realidade e a imaginação. O bambual, lembrança embaçada das primeiras reminiscências, é agora o motivo para o primeiro e único poema escrito pelo irmão. A quadrinha exposta dos versos do irmão é de absoluto non-sense, destacando-se apenas o exercício formal de medir e rimar os versos, como se quisesse demonstrar que o irmão não ousou ir além de um exercício efêmero e ingênuo de linguagem poética. Ainda, nessa parte do poema, aliás, um pouquinho antes, existe a lembrança de uma “ratazana enorme apanhada na ratoeira”. Notemos que ratazana e urubu são os dois animais aqui lembrados. Animais tomados por asquerosos, nefastos. A ratazana, vítima de um engenho artificial, que apesar do animal ser enorme é dominado e vencido pelo engenho. A ratazana dominada é o roedor das reminiscências perdidas no tempo que à medida que se aproximam no tempo vão se tornando mais claras e passíveis de melhor domínio pela mente consciente.

Na estrofe seguinte temos “a poesia dos naufrágios”. Constituída por dois elementos da natureza: a maré de equinócio e o jardim submerso. A imagem do “tio Cláudio erguendo do chão uma ponta de mastro destroçado” demonstra agora a derrota do homem diante das forças maiores da natureza. Se antes, o poeta dominara o urubu e vira a morte da ratazana, agora conhecia o poder da natureza. A poesia é sempre a poesia dos naufrágios, a luta sempre vencida pelo tempo de se tentar apreender a realidade pela memória.

No trecho seguinte, da volta a Petrópolis, que já fora o lugar das primeiras lembranças conscientes, agora é o lugar da descoberta do medo da dor. Sem coragem de puxar a linha amarrada no dente de leite.

Na véspera de Natal um acontecimento que recuperaria a imagem do mundo mágico que aos poucos desvanecia. A fada que trouxera os presentes durante a noite. A fada representa a descoberta do poder do mito. De como por meio deles se mantém uma relação mágica com a realidade, o mundo, a natureza.

Nos dois versos seguintes o poeta faz duas perguntas: “E a chácara da Gávea? / E a casa da Rua Don’Ana?” Para quem o poeta faz essas perguntas? Ele as faz para si mesmo, para sua mente, está diante do arquivo das reminiscências tentando encontrar esses assuntos determinados. Não sabemos se ele os recuperou na lembrança, uma vez que o poema apresenta somente as perguntas, o mais que se faz é na base das conjecturas.

Surge, então no poema, o terceiro animal. Depois do urubu e da ratazana, vem “Boy”, o cachorro doméstico e amigo. O diálogo possível entre o menino e um cão, entre a mente humana e a mente instintiva da natureza. Boy permanece no nome que é repassado aos outros cães que a família tivera, ainda que fossem cadelas. “Boy” passou a significar a espécie e não somente um cão. É o ato da nomeação, processo de conhecimento e determinação da realidade pela linguagem. Nos versos seguintes, o menino pensava no significado da palavra “gatuno”, que seriam homens com cara de pau, como os bonecos de um mamulengo nefasto. A seguir, o poema trata da volta a Pernambuco. Lembremos que a volta não implica num reconhecimento, uma vez que o poeta não tinha lembranças conscientes de sua primeira infância no Recife, seu ponto de partida é já os três anos em Petrópolis. Assim esse voltar é de como se nunca tivesse estado lá. O mais que o poeta pode fazer é comparar esse volta a Pernambuco com as informações que lhe foram sendo passadas sobre seus dois primeiros anos de vida. Desse modo é que o poeta destaca na estrofe o verbo descobrir (“Descoberta dos casarões de telha-vã”), e aí o verbo descobrir ganha em ambigüidade, pois mais do que descobrir a existência desses casarões com tais telhados é descobrir o que eles velavam e que seus telhados inutilmente tentaram ocultar da percepção do poeta. O avô materno – “um santo...”, que no final do poema é quem vai dar ao poeta a possibilidade da descoberta da morte. Notemos então o sentido ambíguo do nome da rua – Rua da Casa União – ao passo que o avô representou a separação entre vida e morte. Por outro lado, se observarmos a utilização de travessões nos versos dessa estrofe, não podemos deixar de lembrar de estrutura semelhante nos versos de Casimiro de Abreu em “Meus Oito Anos”. Comparemos os dois trechos dos poemas:



“Como são belos os dias

do despontar da existência!

-Respira a alma inocência

Como perfumes a flor;

O mar é – lago sereno,

O céu – um manto azulado,

O mundo – um sonho dourado,

A vida – um hino d’amor!”

(ABREU, Casimiro de. Fragmento de “Meus Oito Anos”)



“Meu avô mateno – um santo...

Minha avó batalhadora.



A casa da Rua União.

O pátio – núcleo de poesia.

O banheiro – núcleo de poesia.

O cambrone – núcleo de poesia (‘la fraicheur des latrines!’)”

(BANDEIRA, Manuel. Fragmento de “Infância”)



Tanto em Casimiro de Abreu como em Manuel Bandeira o travessão indica a elipse do verbo de ligação “ser”, só que em Casimiro os núcleos dos predicativos (manto, sonho, hino) são elementos de tradição lírica ligados ao sujeito, este sempre destacando-se como elemento da natureza (mar, céu, mundo, vida), e ainda, tais núcleos de predicativos são acompanhados de adjetivos liricamente consagrados (azulado, dourado e de amor). Em Bandeira o sujeito é um conjunto de coisas do homem (partes da casa: pátio e banheiro – uma, pública e aglutinadora de conversas, outra privativa e separadora; e a latrina – objeto que conota uma asquerosidade, e que no caso da vida de Bandeira terá papel significativo, haja vista o mal de que viria a sofrer na vida). Tais sujeitos têm como predicativo uma expressão de caráter metalingüístico, irônico e metapoético (“núcleo da poesia”). A poesia surgiria para Bandeira dessa outra forma de imitar a natureza. A casa, no poema, é a imitação da natureza, nos seus cômodos a criança constrói seu mundo, seus castelos, seus planetas mágicos. Os odores da casa revelam um significado para os sentidos. Assim a latrina corrompe a poesia que não pensa nos humores e líquidos segregados pelo corpo. A estrofe seguinte ainda apresenta um verso com travessão: “A alcova de música – núcleo de mistério.” Aqui, determinemos, ainda que provisoriamente o sentido de “alcova” e de “mistério” e associemos isto a música, arte que mais toca os sentidos e mais foge do domínio da razão.

Nessa estrofe marca a volta das reticências em substituição ao domínio dos travessões na estrofe acima citada. O verso terceiro desse trecho diz: “Ninguém nunca ia lá... Silêncio... Obscuridade...” referindo-se à “alcova de música”. Notemos na pausa da primeira ocorrência de reticências as notas musicais “lá” e “si”, a 6.ª e a 7.ª na escala de dó maior, ou seja, as duas últimas das sete notas. Depois das notas o silêncio, a obscuridade dos sentidos tentando ligar imagens mentais a sons. Daí a imagem do piano com suas teclas amarelecidas e cordas desafinadas. Aqui termina a infância na casa, as diversas casas por que passara, em Petrópolis, São Paulo, Santos, Rio de Janeiro, Recife. Descobre-se a rua, o mundo expande-se, a criança avança os limites do mundo para além da magia dos cômodos, das janelas, dos mistérios próximos. Os vendedores a domicílio são os homens da rua que surgem com coisas vindas do mundo lá fora, indiciando a enormidade do mundo. Os papagaios de papel anunciam a conquista do céu, antes apenas lembrada pelo vôo fugitivo do urubu. Os piões girando no chão do mundo que também gira. O girar lúdico que metaforiza a passagem do tempo e a chegada do fim da infância, a amarelinha. A cor amarela surge primeiro nas teclas velhas do piano, conotando o fim de um ciclo, e agora o nome da brincadeira de criança, aquela brincadeira em que ao marcar o tabuleiro no chão, mostra-se o domínio da visão geométrica sobre a superfície livre da natureza, marca-se quadrados livres para pisar em oposição às áreas que não se pode pisar, bem como o domínio do ritmo dos passos elevado ao seu limite, pisar com um ou dois pés é a solução para o problema dos territórios demarcados. A casca de fruta jogada ao chão para marcar o ponto de chegada de modo que as tarefas de determinação da rota e seu respectivo planejamento envolvem uma capacidade de abstração própria de uma nova fase na infância. A seguir, a descoberta da diferença do sexo, e seu valor de pecado, de proibido. A menina que tira o menino-poeta da brincadeira de “coelho-sai” e o leva para um lugar escondido, “um desvão da casa”. Desse modo, a casa ressurge para mostrar-se não mais como o limite do mundo da criança que não conhece a rua, mas agora como abrigo, como lugar para esconder-se, para praticar o proibido. Notemos também o nome da brincadeira, agora com um sentido ambíguo, o coelho que saiu da toca foi Bandeira ao descobrir a rua, foi também o momento da descoberta do sexo, o tirar o pênis para fora – sair da toca, e ao mesmo tempo ter que mete-lo, esconde-lo de novo, no mais proibido dos lugares.

Chegamos a última estrofe, a chegada ao Rio de Janeiro, o poeta já estava a perder muito da ingenuidade que caracteriza a infância. Conhecera a morte e a santidade com o avô, o sexo com a menina de nome não revelado, as relações conflitantes com a natureza com os animais, o papagaio de papel, a passagem do tempo, o lúdico dos jogos e das relações humanas. Estava pronto para a poesia, que já se insinuara em estado latente nos núcleos de poesia das casas de sua infância.

Penso, portanto, que esse poema é, além de um conjunto de reminiscências da infância, tratadas de forma poética, é já uma espécie de poética, em estado nuclear, que determina a natureza das relações do poeta Manuel Bandeira como o mundo, a sociedade, a vida enfim.

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Noutro poema, “Nova Poética”, Manuel Bandeira vai desenvolver a questão da poética moderna. Aliás, “Nova Poética” é um poema que parece, à primeira vista, um segundo comentário ao poema “Poética”. Este, mais extenso, desenvolve de modo mais direto e explícito as oposições entre o lirismo antiacadêmico dos modernistas e o lirismo calcado na tradição do culto da forma clássica desenvolvida pelo parnasianismo:



“Estou farto do lirismo comedido

do lirismo bem comportado

do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor.”

(BANDEIRA, Manuel. “Poética”).



Jorge Koshiyama no artigo “O lirismo em si mesmo: leitura de ‘Poética’ de Manuel Bandeira” vai desenvolvendo uma leitura interpretativa desse poema de modo a destacar as implicações dos conceitos modernos de lirismo e poética com a origem desses termos na tradição clássica e daí destacando o efeito dinamizador do modernismo no sentido de recuperar uma liberdade criativa que estava podada e/ou cerceada pelo domínio das regras de composição rítmicas do verso.

Mas quero deter-me mais é no poema “Nova Poética”, aquele que por ser menor, menos claro, mais comentador do cotidiano, parece um comentário subseqüente ao “Poética”. Leiamos o poema:



Nova Poética



Vou lançar a teoria do poeta sórdido

Poeta sórdido:

Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.

Vai um sujeito.

Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco muito bem

[engomada, e na primeira esquina passa um

[caminhão, salpica-lhe o paletó ou a calça

[de uma nódoa de lama:



É a vida.



O poema deve ser como a nódoa do brim:

Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.

Sei que a poesia é também orvalho.

Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as virgens cem

[por cento e as amadas que envelheceram

[sem maldade.





Bandeira, ironicamente, insinua a criação de uma poética do sórdido. E a imundície propalada por esta sordidez vai se realizar na roupa branca que se suja pela lama lançada por um caminhão que passa. Podemos ver aí, a quebra da aura do objeto artístico, marcada agora pelo presente (“a marca suja da vida”). Mas este apelo ao presente e à realidade não é idêntico ao que em geral se entende por participação, ou por engajamento. O que Bandeira propõe na sua sordidez é a análise do presente com vistas a podemos perceber no que ele difere do idealizado, do sonho. As diferenças serão suficientes para compor o itinerário de Pasárgada. Portanto, os poemas que em Bandeira abrem para o social, não conduzem propriamente a colocar o poeta como engajado ou participativo, no sentido de que esses termos filiam o poeta a uma proposta de análise da realidade que acaba por submeter a própria arte à esta análise, como acredita ser o caminho certo, Ferreira Gullar:



“Revelar a atualidade do atual é função primeira da poesia, função essa que a formulação idealista do fenômeno poético procura identificar com a experiência ontológica metafísica. Quando se atribui ao poeta a missão órfica de ‘nomear as coisas’ não se está dizendo, na verdade, senão que ele, ao falar delas, revela-lhes a atualidade, a condição histórica: tira-as da sombra, do limbo, para mostra-las, reais, concretas, aos homens. Essa é a razão por que o discurso que não carrega em seu cerne uma experiência concreta a comunicar, nada revela, não é poesia, e, a rigor, é um falso discurso. O poeta, portanto, não cria, não inventa, mas apenas diz, mostra o existente existindo, e isso só o consegue por revelar, simultaneamente, o que existe enquanto experiência particular e enquanto experiência geral do homem.”

(GULLAR, Ferreira. Vanguarda e Subdesenvolvimento, p. 97)



Se assim é, então Bandeira não foi poeta, nem ele, nem Drummond, nem muitos outros, ou melhor, nem ninguém, nem mesmo o autor do “Poema Sujo”. Acaso teria existido algum poeta? Pois se a função primeira e principal da poesia é essa revelação do presente, devemos lembrar que o presente é inacessível por meio do discurso, qualquer ele, seja poético, seja um relatório de caráter referencial. A mente humana ao observar o presente e, portanto, a realidade à sua volta, já faz uma operação de seleção. Baudelaire já sabia disso por meio de suas experiências com ópio. Aldous Huxley, no antológico Portas da Percepção, demonstra esse aspecto da seleção que o cérebro faz dos estímulos que chegam por todos os sentidos. Assim, revelar a “atualidade do atual” é já uma “experiência ontológica metafísica”, e mais, encerra em seu bojo uma visão subjetiva dessa realidade, e o que se comunica, no texto nem é mais o que se percebeu, mas um discurso preparado segundo vários processos mentais de organização e utilização dessa linguagem. A psicanálise, desde os tempos de Freud sabe isso. O sonho e o discurso do sonho são coisas diferentes, do mesmo modo, a realidade e o que dela falamos são coisas diferentes ligadas tão somente por processos perceptivos de um lado e articulatórios da linguagem por outro.

Ao afirmar que “o poeta não cria” mas apenas comunica o existente, Gullar está colocando no poeta um poder que ele nem nenhum ser humano tem, o de perceber o existente numa dimensão unívoca e absoluta. Cada ser humano perceberá o mesmo objeto, a mesma coisa, o mesmo elemento de formas diferentes, nunca em acordo absoluto. O branco para o esquimó é um conceito geral e por demais complexo, ao se falar de cor, eles possuem muitas palavras para se referir ao branco, pois identificam muitas diferenças de tonalidade na paisagem, para nós, uniforme e monótona do horizonte polar. Essa realidade que nos provoca pelos sentidos, mas ao mesmo tempo foge de nós, escorrega pelos dedos de nossas mãos como o mais puro e cristalino líquido é dinâmica, multívoca, plural e a física moderna sabe disso. O que dizer de um elétron que é ao mesmo tempo onda e partícula, e de dois elétrons, num par relacionado, que na distância interage instantaneamente apesar dessa mesma distância, subvertendo todo o nosso senso comum acerca de tempo e espaço? Assim, também, os processos mentais que produzem, desenvolvem e articulam nossos pensamentos em linguagens encerram mistérios que ainda não compreendemos; sabemos apenas que o que chamamos de realidade é só uma possibilidade apenas, existem outras. O poeta ao apresentar a sua visão da “atualidade do atual” está criando uma realidade. Realidade essa dominada pela capacidade de utilização da linguagem e pela particularidade expressiva dessa mesma capacidade. Daí que, se lembrarmos dos versos de “Nova Poética” de Manuel Bandeira: “O poema deve ser como a nódoa do brim: / Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.” O leitor satisfeito de si é aquele que acredita que o que percebe da realidade é a própria realidade, e que em sendo essa visão suficiente e que por si mesma se basta para que o leitor se sinta satisfeito com seu mundo. O leitor, em questão, não desconfia nem procura pela possibilidade de essa mesma realidade ser entendida de outro modo, talvez, até de um modo que desarrume todos os conceitos e objetos que compreendem a visão de tal realidade. O poeta sórdido desarruma. O leitor é levado ao desespero, sua realidade se desestrutura. A sacralidade se blasfemiza, a santidade se heregiza, o presente se distancia, o passado confunde e o futuro torna-se profético e indecifrável ao mesmo tempo. Impérios, realidades opressivas, guerras, pobreza, fome, misturam-se às esperanças, à fé, às saudades edênicas num discurso epifânico do mundo. A mudança e a incerteza tornam-se na poesia os elementos dominantes, elementos esses sutilmente costurados pela forma poética, mas uma costura muito mais musical do que têxtil. Tem apenas função de enleio, de abrir as portas da percepção para a natureza que a todo momento subjaz nossa falsa independência dela. Assim a percepção do orvalho, conforme está no poema de Bandeira, é apenas um modo de perceber a realidade e a natureza. A gota de orvalho, na sua cristalinidade e transparência, conota um tipo de visão que faz o leitor satisfeito de si mesmo continuar satisfeito. A nódoa de lama no brim branco é também líquida, mas opaca, gosmenta, fedorenta traz à percepção de que existe um outro lado na liquidez das percepções. Gullar acredita estar defendo com seu ensaio a poesia da nódoa suja no brim, mas não está mais do que querendo colocar a gota de orvalho no lugar da gota de lama, tornando-a absoluta. É preciso ter consciência da pluralidade e instabilidade das coisas, essa a única coisa que pode tornar a poesia eterna. A poesia pode a partir daí buscar uma universalidade, algo que supera a transitoriedade, mas tal superação só é possível pelo conhecimento dessa efemeridade.

Na poesia de Manuel Bandeira, temos as reminiscências da infância, não como recordações da infância simplesmente articuladas pelo fazer poético, mas são conflitantes momentos de presente e passado que se debatem para produzir esse fazer poético. Do mesmo modo, quando o poeta erige sua Pasárgada e transforma-se num comprometido amigo do rei está mais do que fugindo para um mundo de lirismo confortável. Esta se opondo à realidade opressiva que o cerca, que o cerceia e impede a realização dos seus desejos. E, por fim, quando o poeta discute essa realidade de um modo que a objetividade marxista se sinta descontente, está não só apresentando a atualidade do atual, mas deve estar mostrando as contradições físicas, espirituais, políticas e filosóficas dessa realidade percebida. A função social da poesia tem muito mais do que mero engajamento, propaganda, defesa de ideais sócio-políticos. A função social da poesia é desmascarar nossa humanidade e demonstrar que possuímos outras faces, que o cerne de nossa humanidade e civilização passam pela compreensão de nossos medos, limitações, desejos, necessidades, enfim as coisas que moldaram nossa humanidade e civilização.

Bandeira propõe-nos um itinerário para Pasárgada sem deixar de confrontar essa rota de fuga com a realidade opressiva, nosso Haiti de feiticeiros, de vodus, que tentam subverter a morte que ronda a todos, mas se presentifica a todo instante na pobreza, na fome, na exploração. Assim faz Bandeira em poemas como “O Bicho”, “Poema tirado de uma Notícia de Jornal”, “Tragédia Brasileira”, “Balõezinhos”, entre outros. Infância, lirismo, idealização não se dissociam de participação, presente e realidade. O poeta pode ser assim um ser social, participativo e sonhador. Simples na complexidade de seu fazer poético, e complexo na simplicidade com que expõe as realidades, não só as que observa, mas também as que cria.





Notas:

1: O tema da água surge em poemas como “À Beira d’Água”( “D’Água o fluido lençol, onde em áscuas cintila”), “Enquanto a Chuva cai”, “Murmúrio d’Água”, “Cantiga” (“Nas ondas da praia”), “Noturno da Mosela”, “Peregrinação” (“O Córrego é o mesmo”), “Desafio” (“Não sou barqueiro de vela, / Mas sou bom remador”), “Cossante” (“Ondas na praia onde vos vi”), “Berimbau” (“Os aguapés dos aguaçais / nos igapós dos Japurás / bolem, bolem bolem”), “O Rio” (“Ser como o rio que deflui / silencioso dentro da noite”), “Contrição” (“Quero banhar-me nas águas límpidas’), “Embalo” (“Ao embalo das águas / ao trepido pulsa”), “Variações sérias em forma de Soneto” (“Vejo mares tranqüilos, que repousam, / Atrás dos olhos das meninas sérias”), “A Sereia de Lenau” (“Quando na grave solidão do Atlântico”), “D. Janaína” (“D.Janaína / Sereia do mar / (...) / de maillot encarnado / (...) / Vai se banhar”), “Oceano”, “Boi Morto” (“Como em turvas águas de enchente / me sinto a meio submergido / entre destroços do presente / dividido, subdividido”), além do concreto “A Onda” (A onda / a onda anda / aonde anda / a onda?”)

2: Poemas como “Discurso em louvor da Aeromoça” (“Aeromoças, aeromoças / que pisais o chão / com donaire novo”), “A Estrela”, “A Estrela e o Anjo”, “O Descante de Arlequim” (“A Lua ainda não nasceu”), “Madrigal” (“A luz do sol bate na lua... / Bate na lua, cai no mar...”), “Andorinha” (“Andorinha lá fora está dizendo”), “Paulo Gomide” (“A poesia é o teu vôo / Repletando a tua alma de alegrias”), “O Amor, A Poesia, As Viagens” (“Atirei um céu aberto / Na janela do meu bem: / Caí na Lapa – um deserto... / -Pará, capital Belém!...”), “Balõezinhos” (“Na feira livre do arrabaldezinho”), “Na Rua do Sabão” (“Cai cai balão / cai cai balão / na rua do sabão! / O que custou arranjar aquele balãozinho de papel!”), “Cotovia” (“Alô cotovia! / Aonde voaste, / por onde andaste, / que tantas saudades me deixaste/”), “Elegia de Verão” (“O Sol é grande. Ó coisas / todas vãs, todas mudáveis! / (Como esse “mudaves”, / que hoje é “mudáveis” / E já não rima com “aves””), “Chanson des petits esclaves” (“Constellations”), “Estrela da Manhã”, “Irene no Céu”, “Lua”, “Lua Nova”, “Mozart no Céu” (“No dia 5 de dezembro de 1791 Wolfgang Amadeus Mozart entrou no céu, como um artista de circo, fazendo piruetas extraordinárias sobre um mirabolante cavalo branco” – um extenso, prosódico e moderno verso bárbaro), “Oração Para Aviadores” (“Santa Clara, clareai / estes ares.”), “Cantilena” (“O céu parece de algodão.”), “O Inútil Luar”, “Satélite” (-não esqueçamos o aspecto paródico deste poema em relação a “Plenilúnio” de Raimundo Correia-), “Sob o céu estrelado” (“As estrelas, no céu muito límpido, divinamente distantes.”), “Outra Trova” (“Sombra da nuvem no monte / Sombra do monte no mar. / Água do mar em teus olhos / Tão cansados de chorar” – trova exemplar para demonstrar os temas aqui abordados da poética de Bandeira.), “Poema encontrado por Thiago de Mello no Itinerário de Pasárgada” (“Vênus luzia sobre nós tão grande / tão intensa.”).

3: Apesar de que no comics americanos o rato é considerado como mais humano do que o cão: Mickey Mouse, Ligeirinho, Jerry são alguns exemplos.

4:“Ora, no verso-livre autêntico o metro deve estar de tal modo esquecido que o alexandrino mais ortodoxo funcione dentre dele sem virtude de verso medido. Como em ‘Mulheres’ o alexandrino ‘O meu amor porém não tem bondade alguma’. Só em 1921, com ‘A Estrada’, ‘Meninos Carvoeiros’, ‘Noturno do Mosela’ etc. fui conseguindo libertar-me da força do hábito. Mas não sei se não ficou sempre como uma saudade a repontar aqui e ali... Não me lembro de problemas dentro da metrificação, que eu não tivesse resolvido prontamente.” (BANDEIRA, Manu



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