Se a distinção entre literatura, jornalismo e teoria não faz mais sentido nesta época em que a ciência busca sentido na política, a política na filosofia, a filosofia na arte e a arte na descrença, então pode-se afirmar, sim, que Luiz Eduardo Soares, Mv Bill e Celso Athayde fazem, sim, literatura no recém-lançado "Cabeça de Porco", relato tripartite em meio a andanças entre a pobreza juvenil brasileira loteada pelo crime.
Mas "Cabeça de Porco" não é simples literatura. Assim como não é fazer simples filosofia dispor-se a romper os clubes de especialistas hegelianos, kantianos ou nietzscheanos em nome de algo mais próximo a poesia, arte ou descrença. "Cabeça de Porco" é tanto literatura quanto Ana Cristina César é sociologia, Carpinejar música e Chico Buarque filosofia. Mais que fruto do movimento rap com motivação social e política, "Cabeça de Porco" representa - por enquanto - a mais promissora iniciativa surgida na sociedade brasileira nos últimos anos de se tentar fazer com que a palavra – falada e escrita – não tenha mais vergonha de si mesma. Pois, em todos os outros setores, a palavra capenga: no ensino, com professores descrentes de si e de seus ideais; na política, com representantes em fuga do que não mais representam; na poesia, com formas sem conteúdo e palavras sem sujeito; e na literatura, em tramas sem rumo pois afastadas do sangue que escorre nas ruas.
Por menor mérito literário que possua, “Cabeça de Porco” não se limita a relatar o efeito do crime da droga na sociedade invisível que, para espanto dos grupos pensantes, teima em viver. “Cabeça de Porco” escancara a que ponto pode chegar o fim da palavra, e usa a palavra para fazê-lo.
Rodrigo Contrera, 2005. |