O GOLPE DA RAPINA(GABRIEL NASCENTE)
Gabriel Nascente é jornalista e escritor.
(gabrielnascente@yahoo.com.br)
Andava eu enluarado, naqueles anos de doidice da juventude; a cabeça nas neves de Kilimanjaro e os pés no Bairro Popular, em adejos no infinito. De um lado, a poesia e o sonho; e do outro, a dureza da vida e o feijão. E dali eu me vinha -moço, desempregado- galgando a escadaria do destino, no limiar da década de 70. Ruidoso e inquieto, no chalrar das minhas quimeras. Pois que a poesia já assinalava, em mim, o plectro de Apolo. E doido, apaixonado, eu me inflava de sonhos, essas ilusões que adormecem a alma, e não duram mais que o piscar de um olho. Até ali os meus únicos feitos tinham sido: obter o diploma do Ginásio Industrial da ETFG; ter publicado Os Gatos- que marcou a minha estréia nas letras, e ainda aprendido algumas noções de jornalismo, na redação do Cinco de Março, onde conheci a linotipo e o clichê.
Administrava Goiânia, na época, o prefeito doutor Manuel dos Reis. E era o seu porta-voz o jornalista Alírio Afonso de Oliveira(cuja irmã, a Zica, fora minha aia, na infância). E ambos- o alcaide e o jornalista- foram de uma infinita bondade comigo, no que tangia à minha dramática falta de emprego. E me levaram para trabalhar na Assessoria de Imprensa do Palácio das Campinas, da Praça Cívica. Ali, sim, ao lado do grande Alírio, boêmio e criador de coelhos, aprendi a redigir notícias. Ele me punha, de madrugada, a inspecionar obras, com o doutor Manuel dos Reis, nos bairros, de papel e caneta na mão. A gente partia para as reportagens a bordo da velha Kombi do seu Pimentel, que fedia pinga e bosta de coelhos. Era o único veículo da imprensa do Palácio das Campinas, na época. E cobria todos os eventos da municipalidade com repórteres a bordo. O sujeito pegava a notícia e voltava correndo para fazer a matéria, veiculada em seguida no famoso Boletim/Informe da Prefeitura.
A poesia da vida pululava ali. Trabalhávamos com dedicação e amor. Ademais, ostentar o título de repórter palaciano, na época, era motivo de muitíssima jactância, e o ego ficava assoberbado de orgulhoso. A gente- um humilde manga-de-alparca do municipio- ficava todo importante, serelepe, homem do poder, esses delírios de nuvens, bazófia. O tempo indo, eu me casei, etc.
Um belo dia, me apareceu lá na Assessoria de Imprensa um japonezinho, todo bem vestido, de terno, e de pasta preta na mão. Queria falar comigo. Recebi-o. Ele vendia seguro de vida, da Capemi. Depois de muita solércia- lábia boa e convincente ele tinha- o dito nipônico, com aquela sua carinha de plush, acabou me convencendo. E eu aí caí-me no conto: comprei um seguro de vida ou um golpe de rapina? Empulhação pura. Tão bem-feita a perfídia que, a partir daquele instante, o pagamento sangrava o meu salário, mensalmente, na fonte. E os anos foram passando, passando: cinco, dez, 15, 20, 25; até que um dia os laços matrimoniais do meu himeneu desataram-se em cinzas; enchi o saco e fui atrás do filho-da-puta do japonezinho, lá no escritório central da Capemi, Rua 16, Centro; acertar a minha vida e reinvindicar a minha aposentadoria compulsória, já que eu somava quase 30(trinta) anos de contribuição. Que nada. Tudo mentira. A tesouraria da empresa levou uns três meses calculando o referido acerto, resposta inclusive que dependia da matriz- a Capemi do Rio de Janeiro.
Finalmente, a papelada chegou, e me mandaram diretamente para um banco ali na avenida Goiás, com a 3. Fui. E pasmem só. O caixa pediu a minha identidade e me disse: “O SENHOR TEM EXATAMENTE R$ 0, 47(quarenta e sete centavos) para receber da CAPEMI. E ASSINE AQUI”. – Não pode- murmurei, aflito- esses ladrões me pagam! Deu caganeira em mim.(O POPULAR, GOIÂNIA, Quarta-feira, 05.01.2005).
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