Usina de Letras
Usina de Letras
160 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62214 )

Cartas ( 21334)

Contos (13261)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10357)

Erótico (13569)

Frases (50609)

Humor (20029)

Infantil (5429)

Infanto Juvenil (4764)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140799)

Redação (3303)

Roteiro de Filme ou Novela (1063)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6187)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
cronicas-->DEUS NEON (ou: como depois de uma revolução) -- 12/11/2001 - 21:49 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
"Sem neon, o Paquistão seria um país melhor", é a tese defendida por Ulrich Ladurner, no vigésimo texto desta série que envia do Paquistão para o DIE ZEIT online, de Hamburgo. Da mesma série, neste site, você pode ler as minhas traduções para "Islamabad-Blues (quando a noite vem)", "O amor em tempos de guerra", "A chave (ou: Para se compreender o Paquistão)" e "A guerrilha dos dólares"..

_______________________

por Ulrich Ladurner
trad.: zé pedro antunes
_______________________


No Paquistão, quando escurece, chega o deus Neon. Em outros países, quando a noite desce, vagueiam os espíritos, uivam os lobos, gargalham as hienas, rosnam os tigres; ou pode bem ser que apenas façam farfalhar touceiras alguns animais inofensivos, seus vóos que dobram esquinas, para desaparecer em canais de esgoto; há estalos em porões, sótãos e depósitos de coisas velhas. Tudo isso se dá em outras regiões do mundo quando escurece. No Paquistão, é Neon quem exerce domínio sobre a noite.

O leitor sabe o leitor do que estou falando? Falo desses cilindros de vidro, longos e arredondados, que, pouco antes de a energia fluir para dentro de seus corpos, produzem um ruído, pouco antes de terem realizado a sua obra destrutiva e lançado a luz que se estende, feito uma mortalha, por um raio de vários metros. Falo desses objetos infames.

Sem neon, o Paquistão seria um país melhor. Disso estou plenamente convencido. Não haveria ditadura militar, nem fanáticos religiosos. Em tudo, mais otimismo, bem-estar e liberdade. O leitor pensará: Ele agora enlouqueceu! Mas eu posso apresentar a comprovação empírica desta minha tese literalmente revolucionária.

Diante da minha janela, na parede da casa vizinha, foi pendurado um desses cilindros luminosos. Já aos primeiros sinais do crepúsculo, começa o seu regime de terror. Hesitantemente, enche-se de luz. Por instantes, ofusca o pór-do-sol e me destitui de uma atividade interior: observar o dia que caminha para o seu final. Não, não é um hobby, é uma necessidade existencial. Eu ali sentado, o céu se tingindo de vermelho, e eu sabendo que tudo isso um dia vai ter fim. Esta certeza comanda a minha vida.

A luz de neon à frente da minha janela roubou-me esta certeza. É um monstro maniqueísta. Só concede existência a dois mundos: um mundo sem neon e um mundo com neon. Tudo é preto ou é branco, dia ou neon. O leitor gostaria de me contradizer, se digo que isto faz moldar uma sociedade inteira? Se a resposta for afirmativa, convém deixarmos por um instante de lado o cilindro de neon que vejo da minha janela. Pode ser que tenha-me cozinhado o cérebro esse seu luzir constante.

Vamos falar das outras centenas de milhares de luzes de neon espalhadas pelo Paquistão. Elas que, em todos os estabelecimentos comerciais, em todas as casas de chá, em todos os escritórios, em todas as ruas e praças do Paquistão, perpetram seu artesanato maléfico.

Atravessemos a escuridão das ruas das cidades e lancemos um olhar em direção aos bazares esfumaçados. Não nos será dado ver seres humanos, mas existências indefiníveis, destituídas de contornos. Caminham, gritam e conversam; barganham, pechincham e mendigam; mas todo e qualquer sinal de vida foi delas apagado, sugado por cilindros de neon que, satisfeitos, zunem sobre suas cabeças. Não passam de fantasmas. Fantasmas de neon.

Sigamos adiante. Num edifício de escritórios, onde se administra, organiza e planeja, muitos fios correm juntos. Mas não reina a atividade comercial. Apenas o silêncio pesa sobre os ombros dos funcionários e empregados. Ei-los, pálidos e exaustos, atrás de suas escrivaninhas. São incapazes sequer de se levantar. Suas energias alcançam tão-somente para ali estar. As persianas, baixas. O sol, impedido de entrar. Dia, anoitecer e madrugada adentro, murmurante, a luz de neon desce sobre os funcionários. Aqui, o deus Neon pode exercer seu domínio como bem lhe apraz. Aqui, com persistência e precisão, o deus Neon consuma a sua obra deletéria.

Pelas estradas, as artérias vitais do país, o deus Neon vive uma situação difícil. Não pode estar em toda parte. Mas ele é malicioso. Como um salteador, concentra-se sobre alguns poucos pontos estratégicos. Insidioso, age sobre os viajores nas estalagens. Nelas, ele se deixa pendurar em árvores e, com a palidez dos defuntos, faz da noite uma imitação do dia. No caso, já lhe ocorreram novas idéias. Não é apenas de branco que ilumina, mas de verde tóxico, rosa e azul. Atraídos pela novidade, muitos se detêm e, estacionados os seus veículos, caminham para a armadilha. Pois não é a cor que constitui o núcleo do deus Neon, é sua natureza ditatorial. Força todo aquele que dele se aproxima a ocupar um lugar sob o seu jugo. E ei-los que se encontram sentados, viajantes, motoristas de ónibus, excursionistas. Comem, bebem, riem e cintilam em todas as cores tóxicas deste mundo. Ei-los que permanecem agachados e definham interiormente.

Perguntar-se-á, então, o leitor: O que é que deu nele? Não sabe que a luz de neon é barata e que o Paquistão é um país pobre? Não sabe que, por isso mesmo, em muitos países ao sul a luz é de neon? Só pode ter enlouquecido!

Tudo pode ser. Lamento não tê-los convencido. Hoje, em todo caso, comprei um estilingue pequeno. À noite, estarei alvejando o deus Neon que vejo da minha janela. Tratarei de desligá-lo. E será uma sensação de, com as próprias mãos, ter decapitado o rei da França. Hei de me sentir liberto - como depois de uma revolução.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui