Maria estava na sala. De óculos escuros. Dona Isaura, a mãe, chorava num canto. Não estava o pai. Leonel sentava-se numa das poltronas, ao fundo. Rute acariciava os cabelos da irmã. Olhos injetados de sangue. Olheiras acentuadas.
Quando Dolores entrou, Maria levantou-se, indo ao seu encontro. Deram-se as mãos e olharam-se profundamente nos olhos. Como se tentassem medir a dor uma da outra. Abraçaram-se, por fim, reconhecendo-se unidas no sofrimento.
— Quanto deve o destino oferecer-nos de ruim, para nos aproximar! — disse Maria, soluçante.
— Querida amiga. Conte conosco, neste transe... Deus há de nos amparar, em sua infinita sabedoria.
Fernando chegou-se para perto de Maria. Ao vê-lo, estendeu-lhe o braço, tomando-o de encontro a si, junto de Dolores. Não se falaram. Mas se compreenderam. A vida selava-lhes em definitivo a fraternidade evangélica.
Maria foi quem recobrou a serenidade primeiro. Fê-los sentarem-se no sofá. Voltou para junto da irmã. Em seu embaralhar emocional, passava-lhe pela mente que alguém pudesse ficar enciumado.
Enquanto Fernando e Dolores acariciavam as mechas brancas de Dona Isaura, Leonel afastava-se para junto da janela. Olhar perdido no vácuo de sua consciência. Pranto incontido, a esparramar lágrimas surdas pelas faces macilentas. Respirava-se ali o ar das tragédias.
Havia um bule de café sobre a mesa de centro. E xícaras. Maria se pôs a servir os recém-chegados. Ninguém se atrevia a romper o longo silêncio. Como num cerimonial, aguardaram que Fernando e Dolores sorvessem até a última gota.
— Querem mais?
— Não, obrigado. Não se preocupe. Estamos bem.
— Leonel os avisou de que eu queria que viessem?
— Sim. Estamos...
— Muito obrigado, bons amigos. Compadres...
— Compadres!...
— Queria aproveitar a ausência dos meninos, para discutir os problemas que esta doença vai trazer.
— Conte conosco.
Era Fernando, instando para desfazer a má impressão anterior.
— O que estiver ao nosso alcance. E mais ainda...
Lembrava-se da ajuda espiritual, mas não se animou a mencionar.
— Leonel me contou que vocês estiveram pesquisando a respeito da possível transmissora do vírus.
— Mas não deu resultado algum. Ele não lhe disse?
— Disse, sim.
— Se Joaquim não nos enganou, não iremos alcançar nenhuma solução, nesse rumo.
Leonel resolveu ajudar:
— Consultamos também os espíritos.
Maria voltou-se para o cunhado espantada:
— Você também?
— Creia-me, Maria, que não perdi meu equilíbrio mental. Você sabe que nunca acreditei nessas coisas.
— E agora?
— Ouvi e vi fatos de espantar. As comprovações do intercâmbio entre os planos são muito fortes. Não sei como é possível. Fernando e Jeremias é que estavam tentando decifrar esse mistério da existência.
Dolores encolhia-se. Via os homens crescerem moralmente, pelo desprendimento e pela energia que depositavam nas palavras. Adquiriam convicção. Não punham em dúvida as manifestações. Estavam firmes. Parecia que a realidade das experiências era tão concreta quanto o fato de sentir o pulso ou a respiração. Viviam o que denunciavam. Era sensação muito diferente de se dizer católico, de ir à missa, de dar o óbolo, de se confessar e de comungar. Era algo íntimo, provindo da consciência. A exteriorização das idéias e dos sentimentos era forte, intensa. Dir-se-ia provinda diretamente da alma.
Um pouco dessas impressões também perpassavam pelo coração de Maria. Os dois estavam impondo-se ao respeito das mulheres. Se Timóteo estivesse presente, haveria de contrabalançar. Jeremias era bem mais discreto. O sonso preferia agir às escondidas...
— Quero que me contem o que se passou na sessão.
Maria falou de um jato, como a sacudir da memória acontecimento deprimente. Era como se a lembrança da doença acordasse para a necessidade da verdade. Perante os homens. E perante Deus.
Fernando assumiu a palavra, resumindo os acontecimentos, desde as primeiras visões e demais fenômenos que se passaram com ele. Enquanto falava, Dolores arfava o peito, na iminência de interromper, mas contendo-se, à vista do drama que ali se desenrolava. Afinal de contas, era a felicidade, a alegria, a vida de uma família, na contingência de frágil resistência a tão poderosa moléstia.
Maria ficou curiosa:
— E essas mensagens, poderíamos ler?
— Infelizmente, Dolores as destruiu.
— Por que, cara amiga?
Dolores estava com o lenço na mão e ganhou tempo enxugando as lágrimas e assoando o nariz. Deveria revelar que as comunicações estavam intactas? Deveria demonstrar a malícia para colocar o marido à prova? Deveria continuar mentindo, esperando para destruir os papéis mais tarde? Decidiu-se pela verdade:
— Eu não queimei as folhas. Estão guardadas...
— Ainda bem, querida! — apressou-se Fernando a colocar a esposa em melhor condição moral. — Ainda bem, assim poderemos estudar o verdadeiro teor das mensagens. Vocês vão ver que existem informações impossíveis de serem do conhecimento dos médiuns. Vai ser ótimo para todos nós comprovarmos que as comunicações entre vivos e mortos são possíveis. Mesmo que não se acredite que sejam os espíritos dos que partiram, podemos sempre pensar que Deus enviou seus anjos para nos ajudarem. Para o Pai, todos havemos de concordar, nada é impossível.
“Nem para o demônio.” Pensava Dolores, que não quis polemizar. “Se Timóteo estivesse presente, daria resposta cabal a essas superstições.”
Leonel tomou a dianteira:
— Já que as coisas estão nesse pé, vamos deixar para outra hora os comentários sobre as informações espirituais. Basta saber que o principal foi que disseram que tudo se resolveria naturalmente, dentro de pouco tempo. Assim, logo ficaremos sabendo quem foi a mulher...
Sentiu que o tema era sumamente desagradável. A recordação das traições do cunhado magoavam a pobre esposa.
De fato, Maria pôs-se a soluçar, quebrando aquela segurança emotiva que vinha demonstrando. A custo, retomou o uso da palavra:
— Há um problema muito sério que precisamos resolver junto aos médicos. Eles não querem reconhecer essa doença como parte do contrato do plano de saúde. Querem que o tratamento seja todo pago por fora. É caríssimo. Gostaria de não ter essa despesa, mas não estou em condições de brigar. Queria que me aconselhassem.
Leonel estava apto a colocar um ponto-final na questão:
— A lei estabelece para os planos universais que todas as moléstias, inclusive a AIDS maldita, estejam cobertas. Se os doutores julgarem que os escândalos atemorizam os doentes, podem ser surpreendidos por ação judicial em todas as instâncias. Basta contratar bons advogados. Só existe o risco de os meios de comunicação (jornais, televisão) descobrirem e colocarem a família na boca do povo. Aí, os preconceitos irão aborrecer-nos. Já vi coisas muito ruins, nesse campo.
— É verdade — acrescentou Fernando. — É preciso pensar muito. Agir com prudência. As pessoas são implacáveis, quando sentem que os outros estão inferiorizados. Principalmente quando se trata de gente abonada.
— Temo pelos meus filhos. Acho que deveríamos consultá-los sobre o que viermos a fazer. O que os coitados estão sofrendo! A vida toda eles dormiram em berço esplêndido. De repente, o mundo desaba sobre suas frágeis cabeças...
A lembrança dos rapazes comoveu a assembléia. Pesado silêncio se fez no ambiente, entrecortado apenas pelos angustiosos soluços.
— Enfim, é preciso lutar.
Maria retomava a ascendência sobre o ânimo de todos. Sentia que o clima emocional dependia exclusivamente de sua atitude. Ultimamente, resolvera assumir o controle das firmas. Estava decidida a enfrentar todos os desafios.
— Dê no que der. Vamos ver até onde os donos da empresa médica desejam enfrentar batalha judicial que pode jogar a opinião pública contra eles.
Fernando se prontificou a encontrar o melhor advogado no setor. Não antes de Maria definir o que seria feito, na unanimidade das disposições familiares.
Neste momento, Dona Isaura instou para que o marido fosse ouvido:
— Seu pai tem muito bom senso. Ele saberá recomendar a melhor decisão.
A velha estava acabada. Tinha acompanhado a filha ao consultório e sofrera lá o embate da notícia. As palavras para o amenizar das conseqüências imediatas da doença não a convenceram. Era muito experiente para saber quando se colocam panos quentes. E tinha visto muitos partirem cedo, como aquele genro, que desgraçara o lar.
— Se me permitirem, vou recolher-me ao quarto. Quero fazer companhia ao velho, que está um trapinho. Nunca vi tal fortaleza tão abalada. Com licença.
Ao sair, deixava na sala os que poderiam tomar atitudes. Levava consigo o inexorável, o irremediável, o imponderável das resoluções divinas.
Maria, como que contagiada pela dor do pai, começou a soluçar. Rute a acarinhava, quando recebeu forte repelão da irmã:
— Desgraçada que sou!
Todos acorreram. Que crise seria aquela? Que recaída moral? Rute saiu em busca de água com açúcar. Dolores acercou-se, mas não pôde tocar na amiga. Estendera o braço e escondera o rosto. Afastava qualquer auxílio. Recusou a água. Não queria a piedade de ninguém. Com extremo esforço, fez a revelação decisiva:
— Precisamos avisar Timóteo. Ele pode estar infectado.
Agora não mais podia voltar atrás. Deixou-se envolver pelos braços protetores da irmã. Dolores estava lívida. Fernando não atinara direito com a extensão do problema. Leonel permanecia perplexo.
— Que Deus nos proteja a todos! — Era Dona Isaura, que entrava, trazendo o marido pela mão.
Fernando compreendera que, sem o auxílio dos amigos da espiritualidade, algo poderia acontecer de muito ruim naquele lar esfacelado. E passou a orar em silêncio, pela misericórdia do Senhor.