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Artigos-->penas perdidas -- 29/07/2004 - 11:37 (LuRomana) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Uma análise da obra "Em busca das penas perdidas", de Zaffaroni



Diante de um discurso jurídico-penal, oriundo em larga escala das teorias e estudos dos países centrais, a obra de Zaffaroni possui o grande mérito de analisar profundamente o direito penal a partir de uma perspectiva latino-americano, opondo-se à importação de modelos europeus e desprestigiando completamente o discurso penal da América Latina em razão de seus “vínculos ideológicos genocidas”, até anos recentes. Será, por certo, completamente irreal que, em vista da grande disparidade entre os controles sociais centrais e marginais do poder mundial, sejam eles cobertos por um mesmo discurso jurídico-penal, o que exigiria um elevado nível de abstração.

O título de sua obra “Em Busca das Penas Perdidas” constitui uma alusão a dois livros: “Em Busca do Tempo Perdido”, de Marcel Proust, e Penas Perdidas, de Louk Hulsman. A expressão “penas perdidas”, utilizada inicialmente por este último autor, é uma referência ao fenômeno de uma progressiva “perda” das “penas”, uma vez que estas, carentes de racionalidade, nada mais fazem que infligir sofrimentos desnecessários àqueles que caem nas teias de um sistema penal, em desacordo com a legalidade. O encarceramento constituiria nada mais que um sofrimento não criativo e desprovido de sentido, seletiva e inutilmente imposto a uma certa categoria de pessoas.

Vislumbra o Sistema Penal dos países periféricos de forma altamente pessimista, partindo da constatação de uma situação crítica, quanto à sua atual realidade. Tomará o significado do Sistema Penal num contexto amplo, que poderá abranger diversas instituições da sociedade, tais como as agências judiciais, o Ministério Público, polícia, agentes penitenciários, que não irá encerrar-se na estrutura de órgãos penais. Ele ultrapassará esses limites e atuará em cada uma das instituições de nossa sociedade, de forma a vigiar cada conduta. É exercido um controle social militarizado e verticalizado, de uso cotidiano, que muito além de ser meramente repressivo, terá um papel configurador da vida social, principalmente sobre os setores mais carentes da população, que serão submetidos a uma vigilância interiorizada da autoridade. Considera esse sistema intrinsecamente violento e classifica-o como genocida e seletivo, uma vez que, é assim planificado pela lei e por um órgão legislativo que deixa de fora amplos âmbitos de controle social punitivo. Portanto, alicerçado por um discurso jurídico-penal inegavelmente falso e perverso, esse sistema atuará unicamente na esfera dos interesses de uma minoria dominante, trabalhando no sentido de assegurar-lhes o poder, enquanto cria socialmente, uma realidade caracterizada, em suas palavras, pela “morte em massa”.

Diante dessa seletividade percebida, principalmente, na América do Sul, Zaffaroni considera que o discurso jurídico-penal encontra-se hoje completamente deslegitimado, sendo a legalidade desrespeitada na operacionalidade social de nossos sistemas penais e pelo grande número de fatos violentos e de corrupção praticados pelos órgãos do sistema penal. A partir daí, faz um apanhado das diversas correntes que estudam esse sistema e das respostas teóricas centrais apresentadas, que vão, de maneira simplificada, no sentido de: (a) sua manutenção, combatendo a idéia de sua deslegitimação e defendendo que o importante será que o sistema penal possa ser convincente. Seria essa a posição do funcionalismo, a qual Zaffaroni opõe-se por acreditar que seria impossível que isso convencesse a maioria e por considerar essa resposta à crise hoje apresentada carente de componentes éticos e antropológicos; (b) sua abolição, de forma a dar lugar a um sociedade menos complexa, na qual conciliação, mediação e reparação passassem a um primeiro plano, dando lugar a uma sociedade menos complexa e com uma solução mais simples para os conflitos. Seria esse o abolicionismo, que busca vias alternativas ao sistema legal e admite soluções informais, desinstitucionalizadas e comunitárias. Zaffaroni mostra-se simpático a essa corrente, afirmando, inclusive, que será “possível produzir um novo modelo integrado do ‘saber penal’ partindo de uma deslegitimação – inclusive admitindo a alternativa abolicionista – do sistema penal.”; (c) sua substituição, idéia que reflete as idéias dos adeptos de um direito penal mínimo, uma vez que seria indispensável para evitar males piores mesmo que numa sociedade igualitária, cujas relações de produção e de câmbio sejam democratizadas. Zaffaroni acredita que esse direito penal mínimo deverá ser apoiado, não como meta insuperável, mas como um forma de se alcançar, no futuro, o abolicionismo.

Dentre as correntes discutidas, é de relevo a referência dada ao abolicionismo. Do ponto de vista geral de seus adeptos, o Sistema Penal é inútil, servindo unicamente para agravar o problema social que apresenta-se hoje. Uma vez que consideram que a solução punitiva é apenas uma dentre as possíveis, buscarão mecanismos substitutivos e alternativos à intervenção do Direito Penal clássico e do sistema legal, que poderão ser de cunho dialógico ou reparatório. Poderão essas alternativas ser de natureza predominantemente legal, configurando-se no âmbito de outros ramos do direitos, tais como o direito civil ou administrativo, ou não-legal. Defenderão a participação da sociedade civil organizada na solução de conflitos e soluções consensuais, que coloquem, face a face, vítima e réu para discutirem sobre a questão. Estas propostas variarão, contudo, de acordo com os pressupostos filosóficos de seus defensores. Tanto é que Zaffaroni apontará as táticas de alguns de seus teóricos, tais como a visão fenomenológica de Nils Christie, o marxismo de Thomas Mathiesen, o fenomenologismo de Louk Hulsman e o estruturalismo de Michel Foucault. Destaca-se aqui a visão de Hulsman que, ao exemplificar uma situação na qual haveria a necessidade de solução de um conflito, procura demonstrar que esta poderá se dar, por outros meios além do repressivo, tais como o médico, psiquiátrico ou civilista. Devem ser buscadas soluções intermediárias ou individualizadas, que atendam às necessidades reais das pessoas envolvidas, para que possam “chegar ao próprio conflito”. A vítima deverá ser ouvida, deixando de ser considerada apenas como o “objeto” sobre o qual incidiu o crime. Procura, assim, descondicionar as pessoas da visão de que sempre deverá haver uma punição, em caso de ocorrência de um crime. Para Hulsman, será necessária a abolição do sistema penal, pois além de sumamente difícil o seu controle, este apenas gera sofrimentos desnecessários e distribuídos de forma socialmente injusta, não existindo qualquer efeito positivo sobre as pessoas envolvidas nos conflitos. Já Foucault, que considera ser o “sistema” uma ilusão provocada pelo alinhamento de micropoderes, aproxima-se das teses abolicionistas na medida em que assinala que o Estado Moderno expropriou o conflito da vítima, uma vez que não é perguntado à vítima o que ela quer ou busca. Além disso, nega o modelo de uma instância superior decisória, ou seja, em que exista uma parte superior ao litigante.

A repercussão das idéias abolicionistas foi pequena, sendo sua penetração limitada a alguns países mais desenvolvidos, dentre esses os países escandinavos e, mesmo assim, de forma tímida. Mostram-se polêmicas e insustentáveis na prática, uma vez que partem do pressuposto de uma sociedade “boa” e só poderiam ser efetivamente aplicadas nos casos de conflitos razoavelmente leves e onde houvesse um grande nível de organização da sociedade civil. Em relação aos países latino-americanos, assolados por uma grave situação de insegurança, desigualdade social, seria impossível que vigorassem tais idéias. O direito penal, mesmo que precário, é necessário, pois, atualmente, é o único meio que dispomos para oferecer garantias à população. Sua supressão atingiria severamente as classes mais desfavorecidas, justamente essas que já sofrem com o injusto exercício de poder em nossa sociedade e com o Sistema Penal, que inegavelmente possui graves problemas que necessitam ser superados. A crise que presenciamos no Sistema Penal não é isolada e sim uma das faces de um problema maior, que atinge cada uma de nossas instituições, concernente à grave situação social. A maior dificuldade encontrada é que, mesmo diante do injusto Sistema Penal, temos poucas ou nenhuma alternativas a ele. A idéia abolicionista seria uma aposta, uma vez que não há certeza se, fora desse sistema, poderíamos chegar a melhores formas do consenso. Portanto, estes conceitos não dão uma resposta viável à criminalidade violenta que temos no atual estágio evolutivo de nossa sociedade. É perceptível no atual contexto, no entanto, que há um esforço no sentido de trazer a vítima ao conflito, buscando-se ouvi-la, em algumas ocasiões. Como exemplo, podem ser citados os juizados especiais. A transação penal é apontada como uma importante forma de despenalizar na atualidade, sem descriminalizar. Procura-se construir um modelo de justiça participativa e resolutiva, que possa evitar os efeitos criminógenos da prisão. Contudo, esses esforços são tímidos e a transação penal mostra-se deficiente, diante de um legislador lacônico. Estarão, portanto, muito aquém das propostas abolicionistas. Será importante, contudo, que, pelos moldes do direito penal mínimo, busque-se impedir novas criminalizações, evitando criar novos tipos penais desnecessários, por artifício meramente político, nascidos unicamente como uma resposta às pressões da mídia ou setores da sociedade. Uma conduta somente deverá ser criminalizada, quando isto for absolutamente necessário para a proteção do bem jurídico em questão. Caso contrário, deverão ser adotadas medidas civis e administrativas. Da mesma forma, deverão ser descriminalizadas aquelas condutas que possam ser resolvidas por outros meios, sem que haja uma ofensa dos interesses da coletividade, e, ainda, dada ênfase a penas e medidas alternativas ou substitutivas, afastando-se a pena privativa de liberdade em casos em que esta não seja necessária.

Conforme visto, percebe-se que, diante da crise do Sistema Penal, este terá sua legitimidade questionada, cada um trabalhando numa lógica própria. São diversas as correntes que tentam discuti-lo e várias as vozes que se levantam em prol de uma solução à criminalidade e aos destinos do “criminoso”, que não existe por si mesmo, é criado pela lei, constituindo o crime o fruto de uma decisão política sobre qual conduta será vinculada a determinada pena. É inegável que na seleção de condutas ditas como violadoras de bens jurídicos alguns grupos sociais serão mais atingidos que outros, de forma a garantir uma determinada ordem econômica e social. No entanto, na dificuldade do atual contexto, são muito poucas as soluções viáveis apresentadas. Tanto é que, o próprio Zaffaroni, ao assumir-se abolicionista, acredita que este só será possível a longo prazo, mostrando-se utópico quanta à sua possibilidade no contexto atual, uma vez que, em nossa realidade social, inexiste um terreno propício para que as teorias dessa corrente sejam colocadas em prática. Assim, ao autor não restará mais que admitir que será necessária a manutenção do Sistema Penal dos países marginais, cujo discurso jurídico-penal classificou como perverso, uma vez que não existe uma melhor alternativa a ele.

Zaffaroni acredita estar destruída a ilusão de que, no futuro, a realidade operacional do sistema penal se adeque ao juridicamente programado. Buscará, assim, uma resposta marginal, mas não no sentido de propor uma solução ao problema. Ele não tentará construir uma teoria relegitimante do Sistema Penal, mas sim uma resposta que busque minimizar sofrimentos, de maneira a reduzir os níveis de violência e salvar vidas humanas, com a esperança de que um dia esse sistema desapareça e seja substituído por mecanismos reais e efetivos de solução de conflitos. Irá referir-se a essa resposta como realismo marginal. Irá compará-la ao direito internacional humanitário, uma vez que, estando a guerra, assim como o Sistema Penal, hoje deslegitimada, não terá a pretensão de eliminá-la e sim de reduzir o sofrimento causado por ela. Como forma de reduzir os sofrimentos trazidos pelo sistema penal ao violar princípios jurídicos fundamentais, apontará a necessidade de que as agências judiciais, sobre as quais recaem mais regras limitadoras e garantias, tragam a si atribuições e responsabilidades que atualmente não trazem, como, por exemplo, poderes de polícia, já que essa é reprodutora de sofrimento e violência. Elas deverão empregar seus esforços no sentido de decidir cada caso conforme a regra “mínima violação/máxima realização” dos princípios que servem para limitar a irracionalidade do exercício do poder do sistema penal. Uma segunda forma de reduzir sofrimentos seria trabalhar a dogmática penal de uma maneira diversa da atual, devendo-se verificar o grau de culpabilidade pela vulnerabilidade. Seria o grau de vulnerabilidade ao sistema penal que decidiria a seleção, e não o cometimento do injusto, havendo uma maior consideração na aplicação da pena, quando o indivíduo fosse mais vulnerável ao Sistema Penal. Assim, quanto maior for o grau de culpabilidade pela vulnerabilidade menor deve ser o interesse da agência judicial em limitar a pena. Tal critério teria o grande mérito de levar em consideração as carências estruturais da sociedade, as necessidades e problemas no desenvolvimento do indivíduo, que o tornam mais vulnerável à captura pelo sistema penal, consistindo numa forma de reduzir a sua seletividade. Contudo, parece improvável que seja satisfatório na prática, uma vez que demandaria um grande esforço e alto nível de subjetividade por parte do juiz, que teria a incumbência de fazer uma minuciosa e profunda análise de cada caso concreto, num lento trabalho, o que poderia trazer dificuldades ao desenvolvimento do modelo imaginado por Zaffaroni.

Num paralelo entre a obra desse autor, nossa realidade e as atuais teorias em destaque, é perceptível que não existe, em nossos dias, uma proposta estruturada e clara a um sistema penal, que atua de forma seletiva, violenta e desigual. Diante disso, ganha vulto em segmentos da doutrina a defesa do princípio da intervenção mínima do Direito Penal, que seria aplicado apenas quando esgotados outros meios extrapenais de controle social, uma vez que, em nosso contexto, não é possível abdicar desse sistema tal como desejam os abolicionistas. Seguindo essa tendência, devemos defender um direito penal subsidiário, garantias e princípios que possibilitem a limitação da violência e buscar meios alternativos e conciliatórios que, dentro do possível, reintegrem a vítima ao conflito e busquem atender aos seus reais interesses. É indispensável, contudo, tomarmos o cuidado de não nos perdermos em teorias que muito se assemelham a grande apostas, lembrando sempre que, primordialmente, precisamos zelar pela maior segurança possível de nossa sociedade.





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