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cronicas-->Quando a noite vem (Islamabad-Blues) -- 03/10/2001 - 07:40 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ulrich Ladurner, correspondente do jornal DIE ZEIT online em Islamabad, capital do Paquistão, em conversa informal com o seu guia, Omar, descobre uma explicação plausível para a miséria que assola o mundo neste momento.
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Por Ulrich Ladurner (para o DIE ZEIT online, 01/10/2001)
Trad.: zé pedro antunes
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O Islamabad-Blues possui a seguinte evolução como enfermidade: de manhã, pulo da cama cheio da alegria de viver; por volta do meio dia, toma conta de mim uma pequena depressão intermediária, que se esvai pouco antes do pór-do-sol, para retornar com dobrada veemência ao irromper da escuridão - e, com muito azar, pensamentos sombrios me perseguem mesmo pelo sonho adentro. Na repetição dessas três fases, vivo em Islamabad um dia depois do outro.

É claro que empenho-me em lhes desvendar os motivos, afinal são tremendamente esgotantes esses altos e baixos. Bem poderia, e o faria de bom grado, mesmo por razões de bom-gosto, renunciar à empreitada. Ali onde supostamente a guerra mundial faz a sua ameaça, não vou querer ficar parado, com as variações do meu humor, no meio de tudo. A razão tem de permanecer fria; o coração, quente; os olhos, frios. São esses os imperativos do momento, se é que salvação haverá. Um sujeito exposto a chuvas e trovoadas, não encontra agora um lugar para seu confuso desenvolvimento.

Urge, assim, detectar as razões para o mal-estar. O método usado é o da exclusão. Ponto por ponto, volto a percorrer tudo mais uma vez: coisas, pessoas, experiências vividas. Faço-o de olhos fechados, pouco antes de adormecer, e isso me dá a sensação de estar enfrentando produtivamente a tensão, que, nesta altura dos acontecimentos, coloca sobre mim um peso insuportável. É claro que eu não consigo reter na memória todas as experiências do dia. Por isso, lentamente, inclino a cabeça de um lado para outro, como se fosse uma peneira. O que ficar merece uma observação mais atenta.

Omar foi uma das coisas que me ficou do dia. Jovem, cheio de energia, que está sempre à mão, enquanto enfrento o caos paquistanês. Algo assim como um escoteiro num país estranho, convidara-o para vir ao meu quarto. Omar aprecia uma cerveja de vez em quando. Em público, não pode beber, pois o Paquistão é uma república muçulmana. Não existe venda de bebidas alcoólicas.

Omar, sentado num sofá pequeno a meu lado, bebericava a sua cerveja. A conversa patinava. Falávamos sobre coisas sem importància. É sempre assim, quando a gente não se conhece muito bem. De repente, ele disse: "Sabe, eu nunca toquei numa mulher em toda a minha vida!"

Aquilo me pegou de surpresa, e eu não consegui trazer aos lábios mais do que um "Ah!", baixinho e encabulado. Em seguida, calamo-nos. Omar tomou mais um gole, enquanto eu me sentia na obrigação de dizer alguma coisa que fosse. Mesmo em se tratando da confissão íntima de um estranho, não poderia permanecer sem resposta. "Que idade você tem, Omar?". E ele: "29 anos!" Mais uma vez, só consegui dizer "Ah!". Novo silêncio. Não sabia o que ele esperava e aonde pretendia chegar. Não podia imaginar que tivesse dito aquilo simplesmente como, por exemplo, se diz: "Nunca estive no exterior!" ou "Não tenho carteira de motorista!". Algo ele queria ouvir de minha parte, essa era a verdade. Senti-me pressionado, e a pressão foi me subindo da barriga para cima, até agarrar-se à minha garganta. "É pena! Pena mesmo!" Claro que foi uma frase idiota. Omar continou calado. "Então você não é casado? Achei que por aqui as pessoas se casassem muito cedo?" E ele: "Não, não sou casado!" Bebeu um gole e fixou o olhar adiante. "Que pena, que pena", eu dizia. Em seguida, acrescentei: "Mas gostaria de tocar numa mulher?" E ele: "Mas claro que sim. Às vezes, não consigo pensar em absolutamente mais nada!" "Mas aqui é difícil, não é?" "Impossível! Praticamente impossível!"

Eu não quis entrar em detalhes, sobre como e onde Omar poderia entrar em contato com mulheres. Não me dizia respeito. Além disso, não tinha vontade de falar sobre o tema. Verdade é que estou aqui para escrever sobre os liames da política mundial, que no momento cruzam o Paquistão de forma inapelável. Mas o que pensar das dificuldades de Omar com o sexo oposto? Eu não conseguia juntar as duas coisas.

Omar calou-se com veemência. Olhei para o seu copo, estava quase vazio. Restava a esperança de logo poder me despedir dele. Um pensamento pouco amistoso, mas seria o caso de lhe perguntar por que não tocara ainda numa mulher? Seria o caso de lhe contar sobre como se dão as relações entre os sexos na Europa?

O copo estava vazio. Aleguei ter muito trabalho e o acompanhei até a porta. Agendamo-nos para o dia seguinte. Depois de ele ter saído, sentei-me no sofá. Lá fora, a noite descia sobre a cidade. Ouvi o vigia abrir o portal de entrada e tornar a fechá-lo. Rangia impiedosamente. Em seguida, silêncio.

Dentro do quarto, alguma coisa se espalhava. Não dava para enxergá-la, era como uma nuvem invisível, um vapor que penetrava até o último canto do aposento, a dissolver-lhe os contornos. "Eu nunca toquei numa mulher!". Com essa frase, Omar arrancara de dentro de si mesmo um tampão. Um anseio não preenchido fora libertado de seu íntimo, para ficar ali comigo, feito um gosto ruim.

Enquanto eu permanecia ali sentado e obrigado a lutar com esses pensamentos, ocorreu-me um outro Omar, o Mullah Omar, o chefe do Taleban no Afeganistão. Dele se sabe ter crescido praticamente sem mulheres, e assim a maior parte de seus sequazes. Ao conquistarem o poder no Afeganistão, impuseram um domínio que correspondia ao que até então haviam vivido: as mulheres foram eliminadas da vida pública.
Nas escolas religiosas do Taleban (Madrassas), só podia reinar mesmo tensão semelhante à que se espalhara pelo meu quarto, uma atmosfera agressiva e venenosa. E pensar que ela simplesmente tenha-se descarregado em guerra, aniquilação e terror? Era mesmo uma explicação plausível para a miséria, pensei comigo. Mas, nesse momento, o Islamabad-Blues chegara ao seu clímax. Meus sentidos haviam-se embotado.


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