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Artigos-->BATUCADA DA VIDA - final -- 22/07/2004 - 10:26 (Marco Antonio Cardoso) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Somente Anja acompanhou o velho Torca até sua última morada.

Era uma tarde de quarta-feira, de Cinzas. Uma tarde estranhamente cinzenta para a época do ano. O céu se fechara de vez para aquela criatura. No ar um forte odor de ossos queimados, que vinha da fornalha do cemitério. Anja seguiu meio sem querer para o boteco, seu lar. Não sabia direito o que fazer. Não sabia ler ou escrever, não poderia levar o negócio adiante, achava que se daria mal.

Pensou em Tico, que horas antes dos terríveis acontecimentos que lhe mudaram o destino, lhe acenara com uma possível felicidade. Pequena e acanhada felicidade, mas ainda assim seria uma.

Chegou no bar quando já estava tudo escuro. Percebeu que deixara a porta aberta, e que fora irremediavelmente roubada. Tudo estava revirado. Ainda encontrou alguma coisa para comer, num armário escondido nos fundos. Apanhou uma garrafa de cachaça e bebeu, no gargalo, até secar.

Dormiu no chão, depois de se embriagar.

Quando o dia amanheceu, acordou com o barulho da rua, dia de trabalho, o carnaval já acabara.

Tentou arrumar as coisas, mas não havia muito o que arrumar.

Saiu rumo ao Terreiro de Jesus, tentando encontrar Tico, mas nada. Encontrou numa esquina algumas moças que se prostituíam, velhas conhecidas. Perguntou pelo rapaz, mas ninguém sabia dele.

Mais um dia se passara e ela já não tinha nada para comer, mas a fome apertava. Ela que tentara não se prostituir em meio a dezenas de casas de tolerância, não via agora outra saída. Enquanto contara com a proteção de Torquato, parecia que se livraria desta triste sina, mas agora estava só, sem qualquer perspectiva para ganhar a vida, senão vender o corpo para comer um pf qualquer, por aí.

Lutamos tanto para alcançar o mais alto que podemos em nossas vidas, mas qualquer revés da sorte nos leva de vez para o fundo, como uma pedra atirada num lago, sem possibilidade de retorno.

Pensamentos deste tipo assaltavam a moça, assustada mas resignada.

Arranjara uma roupa mais adequada com uma de suas amigas, pintara na cara uma maquiagem carregada, e se dispusera a oferecer seus préstimos numa esquina qualquer.

Levou seu primeiro freguês para o boteco semi-abandonado, pedindo perdão à alma de Torquato pelo uso que faria da casa a partir daquele momento.

Quando chegou o sábado ela acordou diferente. Naquele dia Anselmo se casaria.

Mesmo sabendo que ele fora o responsável pela morte de Torquato, sabia que a situação em que tudo aconteceu não o tornava totalmente responsável pelo crime, mas ela também era culpada, porque desobedecera ao "padrinho", e sua desobediência fora a causa primeira da morte dele.

Tentou passar o dia cuidando de seus afazeres.

Estava preste a alugar um dos quartos para duas moças que queriam ficar independentes de uma cafetina do Maciel, e desta forma poderia ter mais uma fonte de renda, além do sexo.

Mas quando já estava próximo o horário do casamento, ela se arrumou o melhor que pode e saiu rumo à igreja da Saúde, para olhar o casamento que poderia ser o seu.

Chegou cedo, e se pôs a esperar na esquina da igreja, que já começava a receber os primeiros convidados. Estava toda florida, flores brancas, cor da pureza, pureza que ela não tinha, nunca teve.

Roubou uma flor quando ninguém olhava, e assim que desceu as escadas da igreja, bateu de frente com Anselmo, elegantemente trajado para a cerimônia.

Ele fechou a cara e falou ríspido:

- O que você quer aqui. Suma daqui e não me procure mais.

- Eu apenas queria ver como você estava, depois de tudo que aconteceu.

- Não aconteceu nada. Foi um acidente e você viu tudo.

- Não estou querendo te culpar, mesmo tendo perdido a pessoa que mais me ajudou na vida, não consigo te culpar, porque acho que amo você.

- Vamos sair daqui antes que alguém nos veja.

E arrastando-a pelo braço, dobrou a esquina e desceu a ladeira que dava na Baixa dos Sapateiros.

Num beco escondido empurrou-a e depois começou a bater nela, dando-lhe chutes e socos, até deixa-la mole, estendida perto de uma lixeira.

- Não me apareça mais, não me procure, ou será pior para você. Se me procurar de novo, te mato.

Anselmo subiu a ladeira de volta à igreja, arrumando o terno machucado, desculpando-se com os convidados e sua noiva, afirmando ter sido vítima de uma tentativa de assalto, da qual ele se livrara, aplicando uma surra nos dois malfeitores que o haviam atacado.

Quando a noite chegou, Anja por fim se levantou, vagarosamente, e arrastou-se até o velho boteco.

Algumas lágrimas ela ainda vertera, enquanto pensava em tudo que havia passado, mas por fim decidiu não chorar mais.

No Terreiro de Jesus estavam fazendo uma festa, uma batucada relembrava os momentos mais entusiásticos do carnaval que havia acabado há poucos dias.

Ela arrumou os cabelos, ajeitou o vestido roto pela surra, e aproximou-se do povo que dançava e cantava, entre eles muitas de suas amigas putas e pivetes da área.

Era um carnaval para os deserdados, um bloco de tristes alegrias, farrapos de roupas e de almas.

Ela que nunca tivera grandes afinidades com aquela alegria estranha, tentava remexer os quadris e assumir uma nova identidade, mais precavida contra as porradas da vida. Seus ossos doíam, estava cheia de hematomas e tinha os olhos roxos dos vários socos que recebera de Anselmo. Estava deformada, mas ninguém ligava para isso naquele meio, onde todos, de uma forma ou de outra, tinha também suas deformações, e procuravam não se aperceber delas, tanto em si quanto nos outros.

Um homem que ela nem viu bem a agarrou pela cintura e deu voltas com ela no meio da roda, enquanto os demais batiam animadas palmas.

O batuque prosseguia animado, regado a cachaça e cerveja, com uns churrasquinhos de gato para disfarçar as barrigas vazias.

De vez em quando uma dupla de policiais passava ao largo, mas nem se dava ao trabalho de encostar. Alguns até que desejavam estar ali, naquela festa, mas tinham um dever a cumprir.

Os carinhos de última hora do tal homem terminaram em uma transa rápida num canto externo da igreja de São Domingos.

- Você pode ir em minha casa de vez em quando.

Anja estava anestesiada, e tentava se prender em qualquer demonstração fugas de carinho que lhe surgisse.

Bebeu até quase cair.

Uma de suas inquilinas a levou para casa, que rapidamente se transformou em brega, mesmo pequeno, mas o suficiente para que as moças ali residentes pudessem levar a vida que a sorte lhes destinara.

De vez em quando uma batida policial tirava o sossego da área, cada vez mais infiltrada de traficantes.

Anja olhava o tempo passar sem se preocupar com nada que lhe acontecesse.

Parecia que olhava somente para o fim, como alguém que, do alto de uma montanha, avista seu destino, sem se importar com a jornada, por vezes penosa, que terá até alcança-lo.

Para ela só havia um destino, a morte.

Então pouco importava se estivesse sempre bêbada ou até dopada, pois muitas vezes seus fregueses a forçavam a cheirar cocaína. Cigarros baseados de maconha eram comuns ao seu dia-a-dia, e serviam para ver o mundo à sua volta de uma maneira mais alegre e festiva.

De resto, era seguir em frente, nos caminhos que conhecia, até o dia que Deus quisesse.



FIM!



meu e-mail: maanmabe@pop.com.br
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