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Artigos-->GAO XINGJIAN: o inferno somos nós mesmos -- 30/05/2004 - 20:15 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Um bate-papo, com o prêmio Nobel chinês Gao Xingjian, sobre o olhar frio do escritor



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Entrevista conduzida por Rüdiger Wischenbart

(Die Zeit online, 23/2004)

Trad.: ZPA

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die zeit: Recentemente houve na França uma controvérsia, se Gao Xingjian seria um escritor chinês ou francês.



Gao Xingjian: Eu continuo sendo eu mesmo. Se escrevo em chinês ou, como agora, em francês, isso não faz nenhuma diferença. Ter assumido a cidadania francesa é algo que, no máximo, pode ser do interesse de teóricos. Um escritor escreve o que ele quer. Isso é tudo.



zeit: E, mesmo assim, a cultura chinesa, sua inteira tradição, está inseparavelmente enredada com o seu trabalho como escritor e como pintor.



Gao: Minha paixão é devotada à tradição chinesa clássica, que me marcou desde muito cedo. E, dela, nós já perdemos tanto! Quem cresceu apenas sob os comunistas, não conhece outra coisa. Eu tenho a sorte de reunir, em mim mesmo, duas épocas. Pela formação que recebeu, minha mãe foi fortemente influenciada pela cultura ocidental. Já em criança eu ia com ela ao teatro e ao cinema. Com cinco anos de idade, já estava ao lado dela no palco. No meu tempo de ginásio, li os grandes autores russos, ingleses, americanos e franceses, li as tragédias gregas – a cultura ocidental não me é estranha. A repressão me levou diretamente à cultura chinesa clássica e antiga.



zeit: E essa cultura existe ainda?



Gao: Ela existe em meus livros e em minha pintura. Este é um dos lados da coisa. Por outro lado, eu estou agora na França e vivo no exílio. Em 1989, diante dos acontecimentos na Praça da Paz Celestial, para mim ficou claro que tinha de terminar rapidamente o meu romance "A Montanha das Almas". Eu sabia que não poderia retornar à China. Se quisesse escrever, precisaria permanecer no ocidente. Essa foi para mim a única saída. Assim, terminei esse romance em menos de um mês. Com ele – e com uma peça de teatro – eu queria ainda uma vez mergulhar por inteiro nessa cultura. A peça se chama "O Livro da Montanha e do Mar". O título alude a um dos livros mais antigos da China, o "Shanhaijing", que eu transformei num grande espetáculo. Até então, faltavam os meios para realizá-lo. A peça compila as mitologias da antiguidade chinesa, exatamente como aconteceu com a mitologia grega. Concluídos, então, o romance e a peça, eu disse a mim mesmo: a França e o ocidente – esta é agora a minha realidade. Um escritor não pode viver da nostalgia, seria lamentável. Por isso, desenvolvi uma fome considerável por uma outra vida. Vejo como outros escritores chineses no exílio se encerraram na esperança de um retorno à China. Já em mim, as duas culturas se uniram.



zeit: Por que o regime comunista destruiu a tradição cultural da China?



Gao: Esse é o mecanismo da revolução. A revolução tinha a utopia de fazer tabula rasa com tudo o que existia antes dela. Na realidade, isso levou a uma nova ditadura, que foi ainda pior, ainda mais dura do que todas as precedentes.



zeit: Somente na China, especialmente durante a Revolução Cultural, todos os intelectuais foram sistematicamente enviados ao campo, para reeducação. Foi mais radical do que em todos os casos comparáveis. O que fundamenta essa radicalidade chinesa?



Gao: No Partido Comunista chinês, os revolucionários eram, em sua maioria, camponeses. Os precursores intelectuais do início do século XX foram eliminados sob Mao Tse-Tung. Mao provém de uma família de camponeses e perseguiu um programa inteiramente camponês. O que fosse distinto e refinado, a nobreza, ou mesmo a formação elevada, nada disso ele conseguia permitir. Mao foi um grande tirano, e sua radicalidade tinha um fundamento camponês.



zeit: A tua decisão de ser escritor foi um protesto contra essa postura camponesa – portanto, anti-cultural?



Gao: Sim, isso tem por base a minha infância. Eu vivi uma juventude alegre. Meu ginásio, uma das escolas mais antigas na China, tinha uma história de mais de cem anos. Dela emanava uma certa liberalidade, até mesmo no início da dominação comunista, no início dos anos 1950. Os professores eram intelectuais idosos, que falavam tanto o inglês como o chinês, donos de uma boa formação e de um espírito aberto. Mas quando fui para a universidade, começava a "luta contra os desvios direitistas", e a Liga dos Estudantes Comunistas trouxe essa luta para dentro da universidade. Sequer a gente ousava mais falar sobre o amor, sobre as garotas, de tanto medo de vir a ser denunciado. Era um terror radical e eficiente. Pessoas jovens, que tinham lido alguns livros ocidentais ou que, de alguma forma, se apresentavam como liberais, simplesmente foram desaparecendo do campus. Eram enviados a campos de concentração. Era terrível. Assim, as pessoas começaram a ostentar máscaras. Meu único refúgio era a biblioteca. Fiz amizade com os bibliotecários. Eles me deixavam em paz. Meu paraíso são os livros.



zeit: Em "Livro de um Homem Solitário", percebe-se uma grande tristeza. O senhor diz ter-se voltado para si mesmo. Como o senhor se relacionou com aquela China que o rodeava?



Gao: Na época, eu tinha começado a escrever peças de teatro. Eu e alguns colegas organizamos um grupo de teatro e encenamos algumas peças, entre elas Tchecov ou Molière. Eu atuava e dirigia. E como em nosso grupo não havia nenhum membro da juventude comunista – e conseguíamos grande acorrência do público universitário –, passamos a ser alvo de suspeita. Tivemos de suspender os trabalhos. Eu conhecia alguns velhos escritores e diretores, aos quais eu mostrava minhas peças. Eles me diziam que eu iria ter dificuldades. Assim, tentei me ajustar. Mas não dava certo. Eu tentava escrever de forma mais revolucionária, mas isso tampouco funcionava. Eu até sonhava ser publicado um dia. Mas, pouco a pouco, ia comparando os meus textos com os que eram publicados, e neles, eu não via senão clichês políticos. Isso eu não podia suportar. Mesmo quando se faz literatura revolucionária, tem de ser literatura. Enfim, estava claro que escrever seria um prazer apenas para mim mesmo.



zeit: Em "Livro de um Homem Solitário", o senhor busca uma "estabilidade" da vida "entre a liberdade e os limites". O que isso significa?



Gao: No dia-a-dia, assim como na política, tínhamos de estudar as obras de Mão Tse-Tung. Cada página era retomada mil vezes. O estudo matinal de todo santo dia era estúpido. Todos tínhamos de estar presentes. Quem houvesse cometido um erro em sua vida ou em seu pensamento, fazia autocrítica. Todos seguiam as últimas diretrizes do Partido e repetiam as sempre mesmas fórmulas. Eu também. Do contrário, seria instantaneamente denunciado. Mas isso não era a minha vida. Minha vida começava depois do trabalho, de noite. Eu lia e escrevia até amanhecer. Aí, é claro, eu estava cansado. Durante as reuniões eu pegava no sono – bem escondido na última fileira, num canto escuro. Por isso, diziam que eu era um sonhador.



zeit: Então o senhor foi enviado ao campo, a uma pequena aldeia. Foi a salvação?



Gao: Sim. Ninguém compreendia o que realmente se passava comigo. Naturalmente, precisávamos cuidadosos. Mas, no campo, eu tinha um quarto pequeno. Quando eu fechava a porta atrás de mim, eu podia sacar os meus livros e até mesmo escrever. Os manuscritos, é lógico, eu tinha de escondê-los muito bem. Depois da "Escola do 7 de Maio" – era um campo de reeducação, com vigilância recíproca, em grandes dormitórios, 24 horas por dia – os cinco anos de trabalho no campo foram para mim um alívio. Era duro, mas, mesmo que só pudesse fazê-lo escondido, eu conseguia ler e escrever.



zeit: Mas essa vida na aldeia não foi, na verdade, romântica.



Gao: Foi até mesmo perigosa. Por toda parte, pululavam armadilhas, olhares que perseguiam e vigiavam. Éramos obrigados a viver com os camponeses e a falar a língua deles. Falava-se da comida e do trabalho, contavam-se piadas grosseiras. De outra forma, seria impossível sobreviver. Os camponeses nos achavam esquisitos. Era preciso conquistar-lhes a simpatia. Eu tirava fotos deles e de suas famílias. Ao recebê-las de presente, eles ficavam contentes, e isso aliviava a minha existência.



zeit: Hoje há na China uma ampla corrente literária que trata dos horrores da Revolução Cultural. O “Livro de um homem solitário” se encaixa nessa tendência?



Gao: Até hoje não existe na China um livro comparável. A "literatura das feridas", que hoje se faz na China, surge sob as condições da censura e da auto-censura. Não se tem permissão para falar abertamente. Assim, fala-se dos "anos das feridas". Sequer o nome de Mao pode ser mencionado. Assim não pode surgir nenhuma imagem clara. Por isso, perseguem-se atalhos, que vão dar em clichês políticos permitidos pelo Partido. Por exemplo, se diz que o terror teria tido como ponto de partida a Guarda Vermelha. Apresentar a história dessa maneira é infantil. Com certeza, esses jovens mataram. Mas quem foi o responsável por isso? O Partido. Mao Tse-Tung. Os da Guarda Vermelha era, eles próprios, vítimas, marionetes numa grande encenação política. Mas há ainda um aspecto que vai mais fundo: Um sistema de dominação ditatorial só pode ser instalado porque as pessoas são fracas. A literatura, por sua vez, não pode se comprazer em apresentar as causas políticas de um tal fenômeno. Um livro requer mais do que apenas criticar o Partido Comunista da China. Meu livro é anacrônico, porque eu penetro na essência do humano. Quando a literatura tem de desempenhar um papel, que ele não seja, então, apenas no sentido de uma formação política ou de uma tomada de partido. Há que tentar manter despertas as consciências das pessoas. Até o momento, eu não tenho encontrado, por exemplo, senão uns poucos livros que apresentam a ascensão dos nazistas de forma convincente. No início, um regime assim é apoiado por grandes parcelas da população. Com o tempo, os indivíduos se vêem, então, logrados.



zeit: Como compreender esse fato?



Gao: Meu pesar e meu pessimismo vieram de tais questões. Seres humanos não se deixam reeducar. Sartre já disse: "O inferno são os outros". Só não se pensa que o inferno é também a própria pessoa. O mal que há em você pode causar dano também ao outro, ele puxa outras calamidades na sua esteira. Quando tais pessoas chegam ao poder, elas se valem das fraquezas do ser humano, e o resultado são catástrofes gigantescas. Eu precisava escrever esse "Livro do Homem Solitário", sobre o indivíduo e sobre a multidão, para elaborar essa fraqueza. Uma literatura que apenas acusa, isso não basta.



zeit: Há em seu livro ainda uma outra provocação: a sexualidade.



Gao: Eu penso que a sexualidade é o que há de mais profundamente humano. Mesmo a violência e a agressão são parte da sexualidade – tanto nos homens como nas mulheres. Há que perguntar: Onde é o lugar de onde fala o escritor? Ele não fala para seus personagens. Ele é narrador – um olho imparcial, um observador frio. Ele mostra as coisas como elas são. Ele não arranja nada, não atenua nada. Ele desvela a alma humana.



zeit: Como reagiram os críticos?



Gao: Na China, não houve crítica. Nada. A censura não se volta apenas contra minha obra, mas contra o meu nome. Meu nome não aparece em nenhuma publicação oficial. Eles aprenderam direitinho a lição: Quando se critica alguém, há que citar o seu nome.



zeit: E fora da China?



Gao: Mesmo fora, não houve senão umas poucas resenhas críticas. Sou obrigado a rir. Há uma preferência muito maior por falar do romance "A Montanha das Almas" do que por comentar o "Livro de um Homem Solitário".



zeit: Não é, na verdade, a primeira vez que o senhor desencadeia mal-estar entre os críticos. Eu conferi as resenhas que se publicaram na Alemanha sobre “A Montanha das Almas”. Alguns escreveram que livro seria tão demasiadamente chinês – portanto, estranho –, que só se tornaria acessível com muita dificuldade. Na sua opinião, é um argumento admissível?



Gao: Eu não acho. Talvez esses críticos esperem uma literatura agradável. Mas para mim a literatura jamais é agradável. Um livro merece ser lido, quando toca uma essência, sem subterfúgios. O que eu escrevi foi sem subterfúgios. Eu sou um radical. E não apenas um pouco além do que é propício a certos leitores. Eu vejo o ser humano da forma como ele está encerrado em mim, e isso inclui o inferno.





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Gao Xingjian: "Das Buch eines einsamen Menschen", Roman; aus dem Chinesischen von Natascha Vittinghoff; Fischer Verlag, Frankfurt a. M. 2004; 477 S., 29,90 €

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