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Contos-->O MEU IRMÃO FLÁVIO -- 09/12/2001 - 19:00 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Olho o espelho pela primeira vez desde que saí do hospital. Como esperava, estou irreconhecível. Cara manchada e pele arrepanhada. O tronco também não está famoso, mas posso-o esconder com a roupa. As mãos – essas – há muito que eu as via anquilosadas, como se sofresse de artrose. Faço caretas para o espelho, para ver qual a maleabilidade da minha cara, da minha boca. Agora percebo porque todos me olhavam de soslaio, num misto de pena, de curiosidade, talvez mesmo de repugnância. As crianças quase fogem quando passam por mim e quanto eu gostaria de as acarinhar. Uma lágrima furtiva escorre-me pelas vias rugosas da minha cara. E no entanto, acho que valeu a pena. Tornaria a agir da mesma maneira se fosse hoje, mesmo se soubesse o que me ia acontecer.
Relembro aquele dia tórrido de Agosto. As cidades, os lugares, despovoaram-se. As praias deviam estar cheias. Corpos a bronzear-se ao sol. Outros a mergulhar na frescura das ondas. Cansado de uma semana de trabalho, não me apetecera sair. Levantei-me mais tarde, gozando a frescura do meu quarto. À tarde seria diferente, pois o sol bate de chapa.
Tomei um duche e vim até à janela. Respirei fundo. Senti aquele perfume do campo, mescla de cheiros de eucaliptos, de pinheiros e de flores bravias. Calor de arrasar. Lá ao fundo, para o lado de um acampamento de ciganos, vi uma colunazita de fumo a que não dei grande importância. Era costume: ou uma queimada de lixo ou a preparação de um pitéu para o almoço. Sardinhas ou febras, quem sabe ? O vento soprava docemente em sentido contrário. Felizmente, porque odeio o cheiro a coisas queimadas. Já me basta os incêndios a que tenho de acudir quando são chamados os «voluntários» lá da vila.
Em breve, porém, o fumo começou a engrossar e a escurecer. Vi saindo dele, como que línguas de fogo de um arco íris restrito, mas que continha contudo todos os tons do amarelo, do laranja e do vermelho. Devia ser um incêndio mesmo. Peguei no telemóvel e disquei o número dos bombeiros. Identifiquei-me e indiquei o local. Depois saí correndo porta fora. Nem vivalma. Seguramente tinham ido todos para a feira, junto à praia, vender os seus artigos. Muitos banhistas e domingo é sinal de muita clientela e pouca polícia municipal. Ouvi um cão a ladrar. Estava amarrado a uma espécie de roulotte. Corri e cortei-lhe a corda que o ligava à coleira. Desapareceu num ápice. Tudo sossegado. Não havia mais ninguém. Mas, apurando o ouvido, pareceu-me ouvir o choro de uma criança. Duvidei. O choro parecia vir justamente do sítio onde as chamas se desenvolviam com maior rapidez. Apesar de habituado a situações destas, comecei a tossir e a sentir a garganta e os olhos a arder. O calor abrasava e eu de novo ouvi o choro. Não tive dúvidas desta vez. Corri, cambaleando. O terreno também não ajudava pois era muito irregular. Ouvi o estrondo característico de uma bilha de gás a rebentar algures. Deitei-me no chão e esperei alguns segundos. O choro, convulsivo agora, voltava-se a fazer ouvir. Entre mim e aquela vózita, havia já uma parede de fogo bastante larga e espessa. Nenhum ponto de água à vista. Corri e atravessei o inferno. As chamas dançavam ao redor de uma cama tosca, onde se agitava o corpito de uma criança muito pequena. Agarrei-a, protegendo-a das chamas com o meu próprio corpo . Voltei para trás. Novamente um inferno a atravessar e uma vida a proteger. Cheguei cá fora já no limite da minha resistência e julgo que desmaiei pois não me lembro de mais nada. Os meus companheiros, chegaram entretanto para combater o incêndio, que se propagara a todo o acampamento e arredores.
A notícia correria célere e em breve os ciganos regressaram ao acampamento para ver o que restava dos seus haveres. Ouviam-se correrias e gritos. A mãe da criança - essa – sem palavras olhava sem compreender o que via . Que interessavam os seus haveres ? O que ela queria era o seu menino. Explicaram-lhe então que um bombeiro o salvara e que tinham sido transportados os dois para o hospital.
Estive entre a vida e a morte longos dias. Várias operações, muitos transplantes, muitas dores ... Ainda hoje as sinto porque são dores que ficam entranhadas no corpo e nunca mais saem. Salvei-me, mas nunca mais fui o mesmo. Isolei-me. Não queria sair à rua. Só convivia com os meus pais e irmão. Eles ajudavam-me a sobreviver.
Com o fim do verão os ciganos tinham abalado. Construíram certamente outro acampamento, talvez noutro extremo do País. E a criança ? Que lhe teria acontecido ? – Disseram-me que tinha saído boa do hospital. Sinceramente não acreditei.
Certo dia, uma cigana bateu-me à porta perguntado por mim. Sem abrir, disse-lhe que a pessoa que ela procurava não estava. Insistiu. Tive um pressentimento. Abri a porta. Ela deu dois passos e caiu-me nos braços. Beijou-me. Sensação estranha que não sentia há tanto tempo. A minha face rugosa, arrepanhada e feia a ser beijada com ternura.
Mais calmos, enxugando-nos mutuamente as lágrimas, conversámos então um pouco.(Eu, qual bicho do mato, que se desabituara de falar com alguém). Contou-me que Flávio (assim se chamava a criança que eu salvara) ficara completamente bom, sem uma beliscadura. Foi educado no culto de que um bombeiro era seu irmão. A seu pedido me tinham procurado várias vezes e finalmente batera à porta certa. – Mas então ele, o Flávio, onde está ? –Está lá em baixo na carroça. - Quero vê-lo. Não, não quero. Ele vai ter medo de mim. – Venha que os ciganos são diferentes. Conseguem olhar para os corações. Por isso era costume lerem a sina. Vai ver !
Saí e percorri a calçada. Tive receio de uma desilusão. Já o miúdo descia da carroça e corria de braços abertos para mim. Abraçou-me, beijou-me a cara e as mãos, acariciou-me, chamou-me irmão . Naquele momento, eu que nunca tivera dúvidas, senti mais do que certezas. Tinha valido a pena.
Eu próprio esqueci, naquele momento sublime, a minha aparência exterior e, perdoe-se-me a imodéstia, achei-me bonito por dentro.
Foi um choque psicológico que me veio afectar, e muito, mas no bom sentido. Passei a sair, arranjei um emprego e inscrevi-me novamente nos bombeiros voluntários lá da vila. A minha vida mudou completamente. Claro que continuo a sentir sempre o ar envergonhado e perplexo com que olham para a minha cara. No entanto, eles olham mas não podem ver. Esta cara arrepanhada e incapaz de sorrir significa para mim a melhor medalha que alguém poderá ganhar. Medalha de ouro por ter salvo uma vida. Medalha de ouro por ter ganho um irmão.
Graças ao que nos aconteceu naquele dia tórrido de Agosto, Flávio está vivo, é perfeito, gosta de mim. Chama-me irmão. A sua família trata-me como se eu fosse também cigano. Basta-me isto, para esquecer os tormentos porque passei e achar que tudo valeu a pena.


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NB : 1º lugar ( prémio «Câmara Municipal de Alcácer do Sal» ) nos XV Jogos Florais da AURPICAS (Associação Unitária de Reformados, Pensionistas e Idosos do Concelho de Alcácer do Sal ).
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