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Contos-->Esperança Ainda que Além da Vida -- 17/04/2000 - 23:04 (Marilene Caon pieruccini) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
ESPERANÇA, AINDA QUE ALÉM DA VIDA

Apesar desta ser uma estranha história, é real. Aconteceu há cerca de vinte e um anos e seus principais protagonistas ainda vivem e a lembram com maravilhosa emoção.
Fora uma gravidez atribulada. A ameaça de um parto prematuro assombrara os longos meses de espera, qual cavaleiro apocalíptico, escurecendo com suas sombras nefandas o que deveria ter sido a iluminada esperança do alvorecer de uma nova vida. Travara-se uma dura batalha do tempo contra a pressa: a vitória às vezes pendendo para um lado, outras vezes para o outro, ocultando uma clara definição de quem seria o vencedor e quem seria o vencido. Luta sem tréguas, indefinida, que lentamente ia depauperando os combatentes.
Mas havia fé! Uma crença bendita, cuja chama trêmula luzia, apontando sempre para um amanhã encantado, que se mantinha distante, sendo lentamente tecido, pelos viajantes da vida e da morte, vencedores dos contratempos. Eles teciam como nova a velha colcha de retalhos, que compõe o nascimento de uma criança!
Não sabia como, mas tinha absoluta certeza de que era uma menina, a criança que em meu ventre crescia e nas páginas românticas da obra do sociólogo Darci Ribeiro “Uirá a Procura de Deus”, encontrara um nome mágico: Maíra.
Era ela quem me dava forças para continuar aquela batalha inglória, na qual os desatinos do corpo humano, muitas vezes, fortaleciam o imponderável comprometimento de uma gravidez de alto risco.
Deitada imóvel, via o tempo escorrer, gota a gota, dias que se somavam a dias, completando os meses. Cada momento ganho era um suspiro de alívio, um átimo de esperança, ainda que além da vida, pois o combate era renhido, tornando-se impossível qualquer sombra de quimérico sossego. Mas havia ela, sempre ela e por ela valia a pena todo sacrifício, toda dor, toda imobilidade, toda a espera.
A angústia superava a expectativa. Tinha medo. Sentia a morte, espreitando lúgubre, na tentativa de completar o seu trabalho inacabado. Ouvi-a gemer por entre as persianas, nunca totalmente cerradas, sempre na esperança, ainda que combalida, de outro amanhecer, o qual, ao espantar as trevas da noite, indicava mais um tempo a somar-se na vida que se desenhava por entre difíceis contratempos. Em meu coração bramavam mil temores mal disfarçados, que eu procurava abafar, ora com doce alento, ora com pranto manso, mas sempre pensando nela.
Terça-feira, seis de Março de 1979.
Sobrepondo-se a incontáveis sofrimentos, a data programada para a cesariana chegou. Fui para o hospital.
Maíra pressentira as angústias que me inundavam a alma, pois aquietara-se, parecendo ter adormecido, cálida, em seu berço morno. Porém, o seu adormecer me soube a um travo amargo, pois enquanto a sentia movimentando-se, tinha certeza da vitória, mas quando a quietude rondava meu corpo, o pavor da derrota descia seu negro manto de desespero sobre meu coração, arrefecendo-me o ânimo.
O processo cirúrgico teve início, cercado pela frieza que perpassa o aparato do instrumental usado em qualquer operação. O silêncio era rompido a todo instante pelo gélido tinir dos metais, supondo sangue, suor e angústia.
Lembro-me de ter balbuciado:
- Estou ficando tonta... Estou me sentindo muito mal... Acho que vou desmaiar.
Um médico pressionou com força meu lado direito, na altura do fígado e, então...
Pairei, apoiada contra o teto, flutuando ao sabor da aragem que purificava o ambiente, olhando, para mim mesma, deitada sobre uma fria e dura mesa, adormecida. (Não gostei do que vi. Estava amarrada e havia tubos enfiados pela garganta, agulhas pelos braços e sangue, muito sangue, jorrando de meu corpo, que ia sendo colorido por inteiro, como se estivesse sendo vestido por uma rútila mortalha carmesim, ao mesmo tempo em que o rosto esmaecia, mascarado com sombras violáceas).
O arrepio da tragédia gelou o recinto. Houve um descontrole geral entre os robotizados atores daquele espetáculo imprevisto, os quais, esquecidos de seu papel, explodiram numa tresloucada tentativa de ressuscitamento.
Vendo aquela azáfama toda, sorria compassivamente, enquanto, etérea forma, me afastava em direção ao Sol, cujo brilho lá fora atraia com irresistível apelo de luz e calor.
Achava tudo muito estranho, pois andava, mas meus pés não tocavam o chão. Eu apenas flutuava com extrema leveza, atravessando as portas sem abri-las. Podia ver as pessoas com as quais cruzava, mas percebia que elas não podiam me ver... Tocava-as, contudo meu toque passava desapercebido... A certeza de não estar sendo vista, longe de apavorar, espantou minhas atribulações e trouxe a tranqüila paz pela qual há muito eu ansiava... Pensei em como era bom partir, ainda que não soubesse para onde.
Já na rua, dirigi-me até uma parada de ônibus, pretendendo embarcar em uma viagem, que eu agora já conseguia pressentir como sem volta. Não era mais dona de mim; apenas seguia para um rumo ignorado, sem pensar em mais nada, só sentindo, como eu nunca sentira até então, a maravilhosa emoção de voar, leve e solta pelo ar. Não havia mais amores, sonhos ou anseios; não havia mais um amanhã a minha espera... Não havia mais nada... Nem mesmo a angústia do desconhecido. Só me deixava ir, como se alguma coisa maior me chamasse para além, muito além da vida!
Um veículo preto aproximou-se, estacionando devagar.
Sentada próxima a uma das janelas, minha mãe gesticulou, abanando as mãos, como se me fizesse um convite. Ao vê-la, quentes lágrimas escorreram por meu rosto, desenhando um caminho de saudade, indo salgar minha boca ressequida... Sequer estranhei como ela não saiu de seu lugar, limitando-se a convidar-me, sem muita convicção, para o embarque. Parecia triste, talvez indiferente... Logo ela, que sempre acorrera a minha mais simples indisposição, vendo-me ali descalça, coberta tão só com uma velha e puída camisola de hospital, mal e mal me acenava! E já fazia tanto tempo que ela partira!... Que não nos víamos!... Com o coração inundado da alegria de enfim revê-la, preparei-me para entrar no ônibus, a fim de ir ao seu encontro.
Estava já no primeiro degrau da escada de embarque, quando fui agarrada por um moço moreno, cujos profundos olhos escuros atravessaram-me, imobilizando todos os outros passageiros, com uma fria e muda ordem de comando...
Fui abraçada com vigor, mas com doçura.
Impedida de ir para minha mãe, tentei, inutilmente, me soltar daquele abraço sem fim. Ela ainda fez um tímido gesto de doce adeus, enquanto o carro preto partia, devagar como havia chegado, levando-a junto. Até quando ainda pude vê-la, ela me fitava com aquele ar indefinível de quem parte, com resignação, para além da vida.
Só então o moço arrefeceu a força de seus braços, soltando-me com carinho, enquanto me dizia:
- Tenha calma, muita calma. Ainda não é agora o seu tempo de viajar. Você vai voltar. Alguém muito especial precisa de você e está a sua espera. Volte, mas bem devagar e com cuidado. Há destinos que podem ser alterados pela força
do amor. O seu é um deles. Algum dia ainda compreenderá que a esperança ultrapassa a vida, transformando até a morte. Esse dia, então, estarei outra vez com você, cumprindo a tarefa de guiar e proteger seu amanhã.
...Sonolenta, consegui contudo identificar o alívio estampado nos médicos e enfermeiras que me cercavam, quando, mexendo imperceptivelmente os lábios, me queixei de estar sentindo muita dor.
Três semanas mais tarde, já recuperada, fui às compras, aflita por retomar a rotina que caracterizava minha vida, e que havia sido interrompida por tanto tempo, que já quase perdera a conta.
Estava feliz. Eu vivia. Isso era o que importava!
Entrando na loja Sebhe S. A., esbarrei, literalmente, no rapaz que me impedira de entrar no ônibus negro!!!
Assustei-me. Perdi o equilíbrio.
Apoiando-me para que não caísse, ele também me reconheceu!
Olhamo-nos com carinhosa amizade e, trêmulos de emoção, abraçamo-nos com o afeto de velhos e queridos companheiros, que dividem um amor secreto, incompreensível para os demais, porque é feito de toda a esperança que existe, ainda que além da vida.
E, desde então, até hoje, nunca mais voltamos a nos reencontrar....
Tenho saudade dele... Lembrará ele ainda de mim?

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