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Contos-->O jardim -- 25/10/2001 - 22:42 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Conto de Hubert Fichte, de quem traduzi o romance "Ensaio sobre a puberdade", lançado pela Brasiliense em 1985. "Etnopoesias" e "Orfanato" foram lançadas em traduções brasileiras nesse mesmo ano. Em "Hubert Fichte: emoção e cálculo", mesa-redonda promovida pelo Instituto-Goethe de São Paulo por ocasião dos três lançamentos, li pela primeira vez esta tradução de um conto que ainda pertence à primeira fase da obra desse escritor de Hamburgo, quando participava das reuniões do Grupo 47 e adotava o modelo convencional das narrativas realistas então em voga. "Orfanato" ainda participa desta tendência. Já "Ensaio sobre a puberdade" e "Etnopoesias" (uma coletânea de ensaios antropológicos sobre as religiões afro-americanas) são obras que adotam modelos narrativos pouco convencionais, mais próximas das formulações poéticas, com as frases escandidas à maneira de versos ao longo da página. Nelas, Fichte faz da justaposição (parataxe) o seu elemento.

Para a edição de "Ensaio sobre a puberdade", escrevi um posfácio que continua sendo, tantos anos depois, o texto mais completo sobre esse autor já escrito no Brasil. Parte de sua obra, falo especialmente de "Die Palette", em que descreve com riqueza de detalhes a cena noturna de Hamburgo, pode ser lida como devedora da beat-generation americana.

Quando a Brasiliense me propôs a tradução de "Versuch über die Pubertät", ela havia sido recusada por dois outros tradutores. Obra repleta de gírias e invenções vocabulares, com a descrição pormenorizada da cena teatral, dos guetos homossexual e junkie de Hamburgo, "Ensaio sobre a puberdade" foi um desafio e tanto para um aventureiro, como eu, que se arvorava em tradutor sem jamais ter traduzido uma linha. A recepção entusiasmada por parte dos resenhistas dos principais jornais do Rio e de São Paulo me garantiram uns 15 segundos de celebridade, aos quais, uff!, consegui escapar ileso. O leitor pode conferir agora, quinze anos depois, esta tradução inédita, revista e, espero, melhorada.


__________________________________________________


O jardim


"Você não pode brincar na rua!", disse o avô. "Pode soar o alarme, Detlev, de bombardeio. Aprenda isso de uma vez por todas. Você tem só oito anos. Quando for um rapaz já crescido, aí, sim, vai poder brincar na rua."

Detlev fêz uma manobra com o triciclo junto ao portão. Percorreu o caminho firme, coberto de cinza batida, atravessando a frente do jardim. À direita e à esquerda, cresciam alfaces e chicóreas. Ergueu o triciclo para transpor dois degraus e, por uma calçada de cimento, pedalou em direção à casa, passando pelas pedras, pareciam pintura, pela touceira de zimbro, pela bétula, pelas varetas douradas e pelo canteirinho de rosas. Fez a curva bem junto ao rododendro e seguiu por uma trilha de areia, parando junto à nogueira e à cerejeira. No alto, a avó batia na janela, dizendo: "Seu avô aplainou a trilha de areia agora mesmo. Trate de andar por onde já está firme!"

Detlev deu marcha a ré, contornou a casa e, com as pernas esticadas para a frente, soltou-se em rodopios pela pequena rampa junto ao terraço, aproximando-se da esporinha, do espinafre e dos morangos. Ajeitou-se no triciclo e chegou ao caramanchão, de cujo telhado às vezes pingavam gotas de alcatrão. Pedalou até a touceira de hortênsias, virando-se junto à cerca do galinheiro. Seguiu até o banheirinho, na direção do tonel de água de chuva, dos feixes de feno, dos montes de esterco. Contornou as três macieiras e passeou entre o quintal do vizinho e o do vovô, percorrendo amoras e framboesas, passando pelo galinheiro do vizinho antes de chegar ao portão.

O avô vinha atrás dele e dizia: "Acabei de lhe dizer para não fazer isso. Não pode brincar na rua. E se de repente soa o alarme?"

Detlev retornou ao caramanchão e colocou o triciclo ao lado da espreguiçadeira. Pegou o escudo e o enfeite de penas, escondeu-se atrás de um arbusto de groselha e, sozinho, pôs-se a brincar de índio.

Durante o lanche, ao anoitecer, enquanto Detlev punha o adoçante na xícara e a pastilha formava uma espuma na superfície do chá de hortelã, chegou o senhor Wiesen. O avô e o senhor Wiesen tratavam-se informalmente. O senhor Wiesen falava baixinho com a mãe, a avó e o avô. Detlev entendeu: "Fazendo ficar igualzinho ao chão. Abrigo elevado, abrigo elevado! É mais seguro!"
A mãe e a avó não disseram nada. O avô balançou a cabeça: "Não, não." O senhor Wiesen completou: "...falar com os outros vizinhos”, e saiu.

Terminado o lanche, como era verão, Detlev podia voltar ao jardim ainda uma vez. "Nada de se sujar, se é que vai querer ir depois à casa dos Schlesner!", gritou a mãe atrás dele. Detlev tirou o patinete do caramanchão, deslizou pelo caminho central e ao longo das rampas de cimento. Transpôs os dois degraus de cimento com o patinete erguido, seguiu até o portão, virou-se, deixou-se deslizar por um pequeno declive, fez a curva perto do caramanchão, dobrando a esquina.

Por trás das touceiras de uva-espim, caminhava a tia Irma. Ao lado dela, uma senhora jovem, que Detlev nunca tinha visto antes, e um marinheiro de terno azul de marinheiro, de verdade. Na cabeça, um bonezinho branco, do qual pendiam duas fitas compridas e escuras. Ao redor do pescoço, uma gola branca retangular, com listras azuis.

"Agora ponha o patinete no caramanchão!", disse o avô. "Quero trancá-lo. Vá para casa e lave as mãos!" Detlev largou o patinete caído num canto, tendo o guidão batido de encontro ao chão. “Tenha mais cuidado com as coisas! Nunca se sabe quando se vai poder comprar outro. Se estragar, fica estragado. Não vai ficar muito contente. Ande e lave as mãos. Vamos à casa dos Schlesner."

Detlev ouvia. Já lavado e penteado, a mãe apertou-o com força junto ao peito. A avó deu-lhe um beijo molhado na boca e eles saíram – o avô à frente – em direção ao caramanchão dos Schlesner.
A senhora Schlesner, o senhor Schlesner e tia Irma, sentados ao ar livre, conversavam com o marinheiro e a jovem senhora. Do caramanchão vinha um cheiro de periquitos. Gatos esfregavam as costas nas pernas da cadeira de vime.
O marinheiro levantou-se. A senhora Schlesner: "Este é o nosso sobrinho Paul. Tem a mesma idade do Ernst, nosso filho, de quem não temos notícias há uns três meses." A senhora Schlesner desandou a chorar. Detlev teve de estender a mão e fazer reverências a todos. Quando se postou diante da jovem senhora, viu que estava com a barriga muito gorda. Por último, deu a mão ao marinheiro. Fez uma reverência bem bonita e se empoleirou numa banqueta ao lado do marinheiro. Os adultos puxaram as cadeiras de vime, juntando-se, e falavam rápido e baixinho. Num dado momento, o marinheiro olhou para Detlev. Pegou o bonezinho branco com as duas fitas compridas e escuras, deu-o a Detlev e continuou conversando com os adultos sobre ataques aéreos, abrigos elevados, milhares e milhares de mortos. Detlev pôs o bonezinho na cabeça, que escorregou, cobrindo o nariz. As duas fitas compridas caíram-lhe no rosto. Os adultos não notaram. Não riram dele. Detlev tornou a tirar o bonezinho, olhando-o de todos os lados. Os adultos falavam muito alto. Detlev não os ouvia. Fazia girar no indicador o bonezinho branco de marinheiro. “Nossos porões, pequenos, já não nos dão mais proteção!”, gritou o avô. Seu rosto estava vermelho.

Detlev enrolou no pulso as fitas escuras do boné. Fez então com que ficassem bem lisinhas outra vez. Os adultos não chegavam a um acordo. “Precisamos nos reunir de novo. Temos de falar também com os outros vizinhos. É urgente!”
Apertaram-se as mãos. Detlev queria dirigir-se primeiramente ao marinheiro, mas a mãe empurrou-o na direção da senhora Schlesner. Detlev foi obrigado a fazer inúmeras reverências. Aproximando-se do marinheiro, devolveu-lhe o bonezinho branco com as fitas compridas e escuras.

No meio da noite - casacos de lã, malas de viagem e gotas de valeriana -, o avô, a avó e Detlev iam até o pequeno porão que havia embaixo da casa. O ataque aéreo logo teria passado outra vez.

No dia seguinte, Detlev atravessou o jardim, pedalando de um portão a outro e contornando o canteiro de hortênsias. Por trás dos chumaços de uva-espim, esvoaçavam de passagem as duas fitas escuras do bonezinho branco. Detlev parou o triciclo e transpôs de um salto os galhos espinhentos. Correu em direção ao marinheiro e lhe estendeu a mão.

"Mas, Detlev, devem-se cumprimentar primeiramente as damas!", disse a jovem senhora com a barriga muito gorda. Detlev estendeu-lhe a mão e fez uma reverência. "Detlev, venha cá!", gritou o avô, "você largou o triciclo no meio do caminho." "Está ouvindo, Detlev?", disse a jovem senhora. "Teu avô está te chamando", disse o marinheiro.

Detlev saltou de volta e pôs o triciclo no lugar. Depois do lanche, tornaram a se sentar todos no jardim dos Schlesner. Faltava a banqueta ao lado da cadeira de vime do marinheiro. Detlev foi procurá-la no caramanchão. Tornou a sentar-se, então, ao lado do marinheiro. Um dos adultos disse: "A cada noite temos de estar preparados para o pior!" Tornavam a falar baixinho. O marinheiro dizia: "Por aqui eu não conheço nada. Não posso dar palpite nenhum." Recuou a cadeira de vime um pouco para trás e tornou a tirar o bonezinho da cabeça. Mas Detlev não queria saber disso outra vez. "Venha até o nosso jardim, brincar comigo", ele disse. "Tenho um patinete e um triciclo, e coisas para brincar de índio."
O marinheiro disse: "Qualquer dia eu venho sim."

"Mas não se esqueça. Lá em casa tem muitas árvores cheias de frutas. Tem trilhas bem bonitas, aplainadas. Podemos brincar de empurrar o outro no triciclo, um de cada vez."

"Também podemos subir nas árvores." Detlev ergueu os olhos em direção ao avô, que segurava o rosto entre as mãos e respirava fundo. Não tinha ouvido nada.

"É. Podemos trepar em todas as árvores. Colher ameixas e construir, para nós, um baita esconderijo de ladrões na macieira. Eu vou lhe mostrar o galinheiro e os coelhinhos. Quando vier brincar comigo, soltamos as galinhas e os coelhinhos também."

"Tem cerejas?", perguntou o marinheiro.
"Bem graúdas. Vamos apanhar algumas. Vamos construir uma caverna no meio das hortênsias. Vamos espalhar montes de trufa no chão embaixo delas. Tem bastante ao lado do caramanchão. Quando a caverna estiver pronta, vamos comer cerejas, ameixas e groselha."
"É o que vamos fazer."
"Mas tem de vir cedo, e trazer também o terno de marinheiro."
"Mas faz frio de manhã cedo."
"Não faz mal. Visto o meu casaco vermelho. Assim não sinto frio."
"E quando nos encontramos?"
"No domingo. Tem de ser bem cedo."
"É, agora clareia bem cedo. Às três da manhã."
"É. Aí fazemos uma fogueira bem grande ao lado do monte de esterco e contruímos juntos uma caverna."

Toda santa noite o avô, a avó, a mãe e Detlev se escondiam no porão. Um belo dia, ao sair, da porta do porão se viam o céu escuro e o sol vermelho. Espalhadas por todo o jardim, foram encontrando telhas e vidraças. Nos canteiros de morango, havia buracos amarelos; os galhos das macieiras e cerejeiras estavam caídos ao chão. A cerca de arame do portão do jardim estava toda torta, despencada junto aos mourões. Eles partiram, para só retornar quando chegasse o inverno. A senhora Schlesner tinha os olhos ainda mais vermelhos do que antes. “Nosso sobrinho Paul, o marinheiro – tinha a mesma idade do Ernst, nosso filho, de quem há seis meses já não se tem notícia – caiu em meio a uma batalha.”

Detlev estava deitado na cama. Pensava nos véus negros que sempre se estendiam na igreja por sobre os blocos compridos, sempre, todo o tempo que passara no orfanato, quando o mandaram para longe de casa. Pensava nos caldeirões de poncho, nas mulheres com suas mantilhas negras. Pensava num rosto amarelo em meio aos maços de flores na capela do cemitério. Pensava em Gorch Fock, de quem tinha lido a história de um marinheiro que nada sozinho no mar e que desiste então de nadar, deixando-se ir ao fundo. Por último, pensava em como estaria o jardim por volta das três da manhã. Nunca o havia percorrido tão cedo. Pensava que as árvores haveriam de estar bem grandes e escuras, que uma névoa espessa, branca e fria devesse brotar das hastes, e que os pássaros haveriam de estar pousados sobre todos os galhos, a alçar de quando em quando seus vôos; já as folhas não se moveriam, só o sereno delas gotejando como se fosse chuva, por sobre a esporinha, a chalota, o espinafre, a uva-espim, as margaridas, as acácias e as rosas; os botões não estariam abertos, mas fechados, minúsculos e escuros.

Detlev, então, adormeceu - naquela casa com as paredes arrebentadas.
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