Um texto do escritor Eduardo Galeano, publicado no dia 30 de julho de 2001 (Bech).
Trad.: zé pedro antunes (na expectativa de alguma ressalva ou correção do Bruno Freitas ou de qualquer outro hispanohablante.
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Segundo o dicionário da Real Academia Española, as frases escritas por mãos anônimas nas paredes das cidades se chamam “grafitos” [grafites] e “son de carácter popular y ocasional, sin trascendencia”.
Alguma transcendência reconheceu neles, ao contrário, Rudolph Giuliani. Nos últimos anos, quando empreendeu sua cruzada contra o crime em Nova Iorque, o prefeito condenou os perigosos autores de palavras e rabiscos, porque “sujando as paredes revelam uma conduta proto-criminosa”. Em oposição, supõe-se que revelam uma conduta irrepreensível as empresas que cobrem as cidades com anúncios de publicidade descaradamente mentirosos.
As paredes, me parece, têm opinião distinta. Nem sempre se sentem violadas pelas mãos que as recobrem com palavras e desenhos. Em muitos casos, ficam agradecidas. Graças a essas mensagens, falam e se divertem. Bocejam de aborrecimento as cidades intactas, que não foram rabiscadas por ninguém nos mínimos espaços não usurpados pelas ofertas comerciais.
Somos muitos, os leitores de passagem. E diga o que disser a respeitável Academia, somos muitos a comprovar, todos os dias, que as inscrições anônimas transcendem seus autores. Alguém, alguém saberá quem?, desafoga sua bronca pessoal, ou transmite uma idéia que lhe veio à cabeça, ou então lhe dá ganas de sacanear a si próprio ou de tirar um sarro com a cara dos demais: às vezes, esse alguém está sendo a mão de muitos. Às vezes, esse alguém está funcionando como intérprete dos sentimentos coletivos, ainda que não o saiba ou deseje.
Aqui vai um breve apanhado, dividido por temas, de algumas frases que tenho lido ultimamente em diversas cidades: pelas paredes, que vêm a ser como que orgãos de imprensa, os mais democráticos de todos.
TEMPOS MODERNOS
Se o cárcere está cheio de inocentes, onde estão os delinqüentes?
Minha mãe eu não vendo. Ela já foi vendida por meu pai.
Escondi tão bem o que pensava, que já não me lembro.
Tanta chuva e tão pouco arco-íris.
E se houver guerra e ninguém for?
Na minha fome, mando eu.
QUESTÕES
Viver sozinho é tão impossível como viver acompanhado?
Os mudos praticam o sexo oral?
O amor morre ou muda de domicílio?
Um parto na rua é “alumbrado” público?
Se Maria era virgem, Jesus era adotado?
Quando eu for criança, vou ser poeta?
ELAS SOBRE ELES
Homem que não mente, é mulher.
Uma mulher sem homem é como um peixe sem bicicleta.
99% dos homens conferem má reputação ao resto.
Prometen regalos y dan palos [Prometem presentes e o pau come quente].
O que fazem as mulheres antes de encontrar o homem dos seus sonhos? Casam-se e têm filhos.
Por trás de toda mulher feliz há um machista abandonado.
Se Deus fez Adão à sua imagem e semelhança, quem nos defende de Deus?
ELES SOBRE ELAS
Mulher que não enche o saco, é homem.
A cada dia morrem dezoito mil mulheres, e a minha não tem nem dor de cabeça.
Mulher fica em casa, e com o pé quebrado.
Linda como a mulher do outro.
Se ficassem quietas um pouco, poderia lhes dizer como eu as quero.
Quando não cobram, te fazem pagar.
Se as mulheres fossem necessárias, Deus teria uma.
TERCEIRA VIA
“Happy birthgay”.
Iguais, porém diferentes.
Somos assim porque é do nosso gosto, ainda que isso possa lhes causar desgosto.
O único voto contra a natureza é o de castidade.
Não tenho medo de mim mesmo.
Sou Adão, mas Eva.
Se Deus me fez assim, Deus é gay.
Te amo e não posso parar.
MORTE
Por que os cemitérios têm muros, se os que estão dentro não podem sair e os que estão fora não querem entrar?
Os mortos não nos deixam viver, porque não os deixamos morrer.
A morte é um mal hereditário.
Falavam tão bem de mim, pensei que tinha morrido.
A morte sempre vence, mas te dá uma vida de vantagem.
Não te preocupes tanto com a vida, porque dela não sairás vivo.
Todos os deuses foram imortais.
O único seguro é quem sabe.
ZIG-ZAG
Com um tigre pela frente, nenhum burro tem reumatismo.
A Rua do Depois conduz à Praça de São Nunca.
Sonhei que tinha insônia.
Caminho com os olhos nos pés.
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