Usina de Letras
Usina de Letras
134 usuários online

Autor Titulo Nos textos

 

Artigos ( 62220 )

Cartas ( 21334)

Contos (13263)

Cordel (10450)

Cronicas (22535)

Discursos (3238)

Ensaios - (10363)

Erótico (13569)

Frases (50617)

Humor (20031)

Infantil (5431)

Infanto Juvenil (4767)

Letras de Música (5465)

Peça de Teatro (1376)

Poesias (140801)

Redação (3305)

Roteiro de Filme ou Novela (1064)

Teses / Monologos (2435)

Textos Jurídicos (1960)

Textos Religiosos/Sermões (6189)

LEGENDAS

( * )- Texto com Registro de Direito Autoral )

( ! )- Texto com Comentários

 

Nota Legal

Fale Conosco

 



Aguarde carregando ...
Artigos-->NELSON RODRIGUES & "a frase roedora" -- 01/08/2001 - 17:41 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
[Alguns apontamentos para uma leitura de Nelson Rodrigues, coligidos ao final de um curso ministrado por Carlos Vogt, Berta Waldmann e Peter Fry, dentro do Programa de Pós-Graduação do IEL/UNICAMP. Os alunos éramos dois: Agostinho Potenciano de Souza e o autor destes apontamentos. O texto, revisto agora para esta publicação, recebeu o acréscimo de apontamentos recentes. Que a generosidade do leitor saiba preencher as muitas lacunas do meu texto.)







Difícil, às vezes, separar o autor de sua obra, uma vez que, nela, ele se instaurou, como veremos, e com ela se confunde.



Para termos a certeza desse não-limite entre a ficção (o drama) e a realidade, entre autor e narrador, essas preocupações, digamos, técnicas daqueles que se ocupam com analisar obras literárias, tomemos a peça "Anti-Nelson Rodrigues". Seus personagens, cheios de espanto, vêem surgir à sua frente um dos personagens das crônicas do autor, em cuja existência em carne e osso não podiam acreditar.



Ou tomemos, então, "O Reacionário", para saber quão tênue é o véu a separar, da criação do ficcionista, a sua existência pessoal. Há, deles, toda uma linhagem brasileira de comunicadores de vanguarda. Por contraditório que pareça, há uma tradição vanguardista passível de ser reconstruída pela trajetória de seus comunicadores. Entre eles, ululam Glauber Rocha, por exemplo, Zé Celso Martinez Correa, e o pai de quase tudo isso que podemos chamar de "uma cultura pop brasileira de vanguarda", Oswald de Andrade. O fenômeno da neo-vanguarda, como um todo, se reporta inegavelmente ao autor de "O Rei da Vela", de "Memórias Sentimentais de João Miramar" e de "Serafim Ponte Grande".



Vanguardas: a utopia de se poder tornar a unir a arte e a vida. Neo-vanguardas: o museu a céu aberto dos happenings, das performances, das instalações, dos excessos todos, sempre excelsos. O teatro, para nós, é sempre o acontecimento único. Para nós, produtores, atores e público. Teatro é um "tour de fórceps".



No caso Nelson Rodrigues, a (des)inteligência brasileira acaba, salvo raríssimas excessões, muito mais interessada nesse culto estranho à anti-personalidade. Neste, o impasse revolução/reação - aporias (becos-sem-saída) - e a visão obnubilada, já incapaz de olhar para a obra. Discorre-se sobre a moldura, esquece-se o quadro. A aura da genialidade, e contra ela lutavam as vanguardas históricas, passa a determinar a recepção da obra.



Em tudo, Nelson Rodrigues parece ser um caso extremo.



A frase roedora: "O mineiro só é solidário no câncer".



TEM GÍRIA NA TRAGÉDIA: O universo que Nelson Rodrigues reconstrói é o da tragédia suburbana carioca. Inseguro ante a intransigência e/ou benevolência da crítica, na época, o escritor exclamava: "Meu Deus, como é que eu fui meter gíria na tragédia!"



Um criador de frases, frases-feitas, paradoxos, lugares (in)comuns, banalidades, blasfêmias, palavrões não-pronunciados, cenas de sexo não-explícito, nus da cintura para cima, psicanalhices (a sessão de psicanálise coletiva na cena da festa em "Bonitinha mas ordinária"), inconveniências (um achado do grande Carlos Vogt). Mas, sobretudo, um inventor da sua própria inconveniência como pessoa e como homem público. Pano para muita manga.



Mágico, Nelson arranca da cartola dramas passionais, incestos, pederastas, ladrões bolivianos, donas de casa levianas, proxenetas, gângsters de subúrbio, tias solteironas, prostitutas infladas de dignidade, anjos que escorrem pelas paredes, mães de calcinha e sutiã, misses, um homem de seis dedos, um que chora por um olho só, Otto Lara Resende, populares, viúvas improváveis, psiquiatras, teofilistas, testemunhas de Jeová, tarados empedernidos, velhinhos indecentes, safados, calhordas, cafajestes, adjetivos nunca dantes colocados entre parênteses, esdrúxulas expressões e - babemos na gravata - a família.



Sim, babemos na gravata, Nelson Rodrigues inventa A FAMÍLIA BRASILEIRA..



Contra sua obra, na falta de visão de certa crítica, depõe uma palavra, que ele adota como cognome e título de um livro de confissões e memórias: "O REACIONÁRIO".



Ninguém ousa negar e muitos afirmam: o maior dramaturgo brasileiro de todos os tempos, o inovador das nossas artes cênicas. Há quem queira situar o teatro brasileiro antes e depois de Nelson Rodrigues. É o que se diz, quando se diz. O mais das vezes, mais não se diz.



Basta percorrer as orelhas de seus livros (sim, orelhas de livro constituem um gênero. Um dia ainda conto como vim a saber da existência de escritores de orelhas de livro), ou os ensaios (tão poucos!) que se escreveram sobre o seu teatro. E ele próprio nem queria saber disso mesmo.



Inventou de ser o maior dramaturgo brasileiro, apesar de ser chamado o maior dramaturgo brasileiro.



Daí, a denominação "teatro desagradável", que não deixa de expressar um sentimento de vingança, de revanche por parte da crítica (não muito especializada).



TEATRO DESAGRADÁVEL



Tudo num falar coloquial e permeado de erros de português. Aqui e acolá, qual um tumor em flor, a escancarada e escarrada frase poética: "meu punhal ainda sonha com uma lágrima". Às vezes, o pus do dramalhão, por entre "lágrimas de esguicho", tão radionovela cubana.



A repetição: a arma secreta do cronista. Frases de efeito (fulminante). Paródia.



O momento literário só lhe oferecia dois caminhos: ser ou não ser regionalista. Não ser regionalista já lhe valia a pecha do cosmopolitismo, como se fosse uma chaga.



Nelson Rodrigues descasca o falso cosmopolitismo das nossas elites e desvenda o subúrbio carioca.



Ele e seus personagens assumem. Tem aquele que diz o que ninguém ousaria dizer: "Sou um canalha". O filho, diante da mãe que o acabara de flagrar em delito de roubo: "Sou ladrão, e daí?"



Sem papas na língua, inflados de um descaramento só comparável ao dos colunistas sociais, todo mundo é. E ninguém é. Cada classe social assume (se vira) como pode. E, sempre, com "muita" classe. As grã-finas em visita ao Boca, expostas a um concurso de peitinhos. O prêmio: um colar de pérolas, legítimas, como legítima não era a gran-finesse das grã-finíssimas em cena. Quem ganhou? Claro, a putinha jogada no chão ali ao lado, com cara de quem foi comida e até gostou, requentando, a cada cena, a sua vingança, que já vinha de muito longe, dos tempos do colégio interno.



PSICANÁLISE: coisa de grã-finos, é claro. Em Nelson, o jargão da psicanalha passeia tão desabrido, como a querer dizer que o buraco é mais embaixo. O ralo da pia que viu nascer o Boca. O buraco da fechadura também, é claro, a boca de cena, por onde vamos ficar espiando o cenário cultural brasileiro para sempre, antes e depois, muito depois de Nelson.



Um teatro expressionista, macabro, grotesco, escroto, enfim, um teatro inconveniente, um teatro desagradável.



Nelson como tradutor de Freud para o brasileiro. Melhor, para o cafajeste.



TUMOR/HUMOR. Isso mesmo. Oswaldianamente. O humor entre parentes. O humor entre parênteses. O belo-horrível. Na cacofônica abundância de "Álbum de Família".



Um teatro do ready-made, de achados, pinçados na esfuziante oralidade pátria (existe "analidade"?). Tarzã pegando o cipó das onze em nossa selva de encrencas e estereótipos. Todas as taras literárias. O surpreendente, porque dejà-vu. Ready-made in Brazil.



Já se disse que Nelson é tão brasileiro, que a sua obra apresenta inúmeras dificuldades para a tradução. Caberia o ditado: roupa suja se lava em casa. E alguém acrescentaria que santo de casa não faz milagre.



Uma proposta anti-brechtiana: o envolvimento máximo do público. Depois que baixa o pano, aí o bicho pega. O que fazer com o distanciamento e com a visão crítica. Heresia equivalente a uma pinicada no nariz. Dogma sempre puxa heresia.



Toda mudez será castigada.



Desagradável, escroto, inconveniente, cruel, baixo.



A sociedade brasileira, no teatro de Nelson Rodrigues, reinventa a bruxa malvada: Existe alguém mais podre do que eu? Cinismo à flor da palavra: a história se repete como tragédia.



Contra o distanciamento crítico, a frase roedora, aquela que desencadeia a ação sórdida. Ou, em "Valsa n° 6", o clima de euforia como resultado do jogo de elementos cênicos, sem que o espectador tenha consciência do que está se passando. E certa platéia perguntaria: Mas... E o conteúdo?



O grande sucesso do grupo Pão e Circo, que foi representar o Brasil no Festival de Teatro de Nancy em 1973, depois de temporada vitoriosa no país, se devia à carnavalização como procedimento privilegiado. A peça "O casamento do pequeno-burguês", de Brecht, terminava num grande carnaval que se estendia do palco para a platéia. A encenação colocava em questão a visão museificadora da obra do dramaturgo alemão, que vigia tanto na Alemanha comunista como entre as correntes pretensamente esquerdizantes do nosso teatro de então. Glauber Rocha declarava que a montagem, em sua filmografia, está mais para samba do que para valsa. O Teatro Oficina já se chamou "Comunidade Oficina Samba". Enfim, os grandes ícones da cultura brasileira feita por comunicadores de vanguarda procurava o caminho do popular. Não o popular dos Centros Populares de Cultura. Mas o popular da "contribuição milenar de todos os erros".



Dançar conforme a dança. Nelson transou valsa, bolero, tango, samba-canção. "O Anjo Negro" tem muito de samba-enredo. O samba-enredo é uma forma de crônica dentro da nossa oralidade. O cronista Nelson Rodrigues soube fazer o nosso teatro ficar popular, sem escorregar para o intelectualismo fácil e de fachada. No entanto, essa popularização, por razões ululantemente óbvias para serem repetidas, só se evidencia mesmo com a chegada de suas peças ao cinema e à televisão.



Um vanguardista? Realizador, na dramaturgia, das propostas de 22? No teatro, parece ter sido assim em toda parte. Mesmo Brecht, cuja obra, eminentemente vanguardista, só se realiza plenamente depois de terminado o ciclo das assim chamadas vanguardas históricas. O Teatro Oficina, com a encenação de "O Rei da Vela", veio nos mostrar o quanto éramos Oswald e quão forte era a nossa vocação para a chanchada e para o deboche. A época do desbunde no teatro de São Paulo, que chegaria à cena pop com os SECOS & MOLHADOS, digo, com Ney Matogrosso e os Dzi Croquettes..



Em Nelson Rodrigues, como em todos os outros vanguardistas, a evidência de um espírito de porco muito salutar, vivificador.



Nelson Rodrigues, Zé Celso e Glauber Rocha: três brasileiros e suas relações com o p(h)oder. Em matéria de "reacionarismo", Glauber e Nelson, para ficarmos só em quem já morreu, são páreo duríssimo. Mas será que é isso mesmo?



O Brasil precisa de heróis. Mas o Brasil é um país feliz. O encenador Zé Celso Martinez Correa escava fundo em nossas raízes, ao encenar "O Santeiro do Mangue", de Oswald de Andrade. Com o título de "Mistérios Gozosos", conseguiu uma repercussão jamais vista, talvez em escala mundial, para um espetáculo teatral. Foi em Araraquara, em junho de 1996. A cidade inteira, literalmente, falou sobre o ocorrido ao longo de quase um mês. Onde já se viu isso? Inconveniências. A vigário e as beatas, a polícia, o radialista e cada um dos seus conterrâneos, todos eles ainda se debatem como personagens dessa tentativa de eleger a alegria. Deu no que deu. Zé Celso agora foi absolvido. Mas, isso também é sabido, em matéria de mistérios, há quem prefira os dolorosos. A busca da chave da sua cidade. A busca da identidade nacional. No centro do palco, os nossos santos, in efigie, pendentes: São Oswald, São Nelson, São Glauber e Santa Cacilda.



Só muito recentemente Zé Celso se volta para a obra de um dos seus santos. A encenação de "O Boca de Ouro", tal como a vi no SESC/Araraquara em setembro deste ano de 2000, foi um acontecimento. Nelson Rodrigues em superprodução. Duas passarelas cruzavam o Ginásio de Esportes. No centro, o umbigo ou o cu de Cristo, no dizer do encenador, a pia onde o Boca veio a conhecer a luz deste mundo. Numa das extremidades da enorme cruz, um altar. O ritual da tragédia carioca concelebrado pelos atores (um elenco de extraordinários quase estreantes, sob a genialidade desse mago da direção de atores que é o Zé Celso Martinez Correa) e pela platéia. O personagem do fotógrafo porta, na encenação, uma câmera de vídeo. As cenas são vistas em closes, do contrário impensáveis, nos dois telões colocados de um e outro lado do Ginásio. A platéia araraquarense, como em "Mistérios Gozosos" e por razões óbvias, relegada à posição das rãs, o olhar de baixo para cima. No Teatro Oficina, as últimas encenações do grupo vêm sendo pensadas para uma platéia alçada ao ponto de vista dos pássaros, de cima para baixo.



O encenador e o grupo festejavam a libertação, a absolvição diante do processo que contra eles se movera (cf. o meu texto "OS MISTÉRIOS ARARAQUAROSOS , in usinadeletras.com.br ), mas já agitavam faixas com dizeres de uma antiga e sempre renovada batalha, pela preservação do Teatro Oficina.



Os críticos e seus palpites: a escorregadela para o dramalhão. Pergunta-se: por que não?



Voltando à psicanalha: o patológico paga o pato. É lógico.



Relendo "O Reacionário": "Primeiro vamos fazer a nossa Palavra, para assassiná-la depois, com rútilas patadas." Ou então: "O teatro brasileiro não chegou à sua palavra, não inventou a sua língua." (É Nelson Rodrigues, revoltado com as encenações paulistas de suas peças, contra o desrespeito ao seu texto, contra a "improvisação" em voga na época.)



A frase roedora: o signo é um ser vivo (como quer o "readers digest" da cultura brasileira - e ele também gostou dessa farpa - Décio Pignatari). A frase roedora: nada a ver com lite-ratos.



A grandiloqüência, os mitos, o sexo, Freud ("A cultura e a civilização, elas que se danem, ou não", Gilberto Gil), tudo trocado em miúdos, no registro da "baixaria".



Sem salto mortal não há grandeza.



Um teatro voltado para a palavra. Nem que seja o palavrão em flor da gorda da platéia. Nem que sejam as palavras engrandecedoras da crítica, sobretudo a estrangeira. Nem que seja a oswaldiana "massa desprezível de pronomes mal colocados". Nem que seja a frase do Otto (atônito!),. Nem que sejam os adjetivos cheirando a naftalina. Nem que sejam as palavras que ficaram faltando, ausentes da folha impressa. Entre a letra impressa e o público, a obra dos encenadores, os atores.



Saliva, muita saliva, o mundo se criando.



Uma peça de teatro é a obra aberta por excelência, prenhe de gestos. Quase-signo. Assim, como se.

Comentarios
O que você achou deste texto?     Nome:     Mail:    
Comente: 
Renove sua assinatura para ver os contadores de acesso - Clique Aqui