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Artigos-->Um engano chamado modo de produção -- 11/10/2003 - 12:22 (Darlan Zurc) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


A teoria marxista agrupou a história européia (e depois a de todas as civilizações) em etapas que se sucederiam até chegar ao comunismo. Esta taxonomia deu tão certo, ainda que a morte do seu inventor esteja completando agora 120 anos, explicou tão facilmente uma suposta face do real, que parece encarnar a própria verdade.



O conceito de modo de produção, criado por Karl Marx (1818-1883), se baseia na premissa segundo a qual em determinadas épocas da história um tipo de relação econômica é hegemônico, prevalece sobre outros possíveis, e define a sociedade e a cultura. Como a economia (que é a infra-estrutura para este sistema de interpretação) delimita as características da superestrutura (as manifestações culturais), ele, auxiliado por Friedrich Engels (1820-1895), estabeleceu que para a Idade Antiga (4000 a.C.-476 d.C.) o modo de produção é o escravista, o feudal para a Idade Média (476-1453) e para as Idades Moderna (1453-1789) e Contemporânea (1789 até hoje), o capitalista, sendo este último com diferenças de qualidade de uma Idade para outra. Enquanto na Modernidade teríamos a acumulação primitiva de capital — quando cercar campos, explorar indistintamente povos colonizados e escravizar eram ocorrências comuns —, na fase contemporânea o capitalismo começou pela condição de adulto, apareceu já industrializando e jogando (ou querendo jogar) na lixeira do tempo a origem agrícola, rudimentar, artesanal do mundo.



A civilização européia ganhou a partir daí — assim acreditava Marx — um instrumento realmente científico de análise do seu passado e, naturalmente, do seu presente. Marx teria inventado uma sonda que, uma vez rompendo a resistência de uma superfície desconhecida, de uma incógnita que é o organismo social, extraía daí as informações necessárias ou levava a luz que afugenta a ignorância sobre um assunto em estudo.



Embora seja considerado um dos pioneiros na criação das ciências históricas e tenha ajudado consideravelmente os estudos em Economia, suas teses se assentavam e se assentam ainda naquilo que os pensadores do século XIX, com pouquíssimas exceções, também sustentaram seus argumentos: o materialismo. O método materialista em Marx era diferente, mas era materialismo.



E o tempo que, por causa dos marxistas, se encarregou de restringir outras interpretações históricas, atualmente está se encarregando de começar (para alguns é terminar ou é mais do que missa de sétimo dia) o mausoléu do marxismo. A teoria que subscreveu o século XIX quando, entre outras coisas, anunciou a morte de Deus — este Deus que, no Velho Testamento, sentia prazer com o cheiro de carne assada no ar e que agora, com ou sem prazer, sente o cheiro putrefato de um dos seus algozes —, envelhece tal qual suas concorrentes, tipo o weberianismo, o “durkheimenismo” e o liberalismo. Se bem que Deus, conforme havia escrito o romancista sueco Lars Gustafsson, “dorme há 20 milhões de anos num canto distante do universo”. A Astronomia diz “20 bilhões”, contudo, isso é assunto para outro artigo.



Segundo os manuais marxistas, as revoluções inglesa (século XVII), americana e francesa (ambas de XVIII), para ficar naquelas primeiras que fizeram diferença no planeta, foram todas burguesas. E não poderiam, sob o olhar do marxismo, ser vistas de outra forma: se a Idade Moderna surgiu, foi porque a infra-estrutura, sendo capitalista, começara a se desenvolver, e como não existe capitalismo sem burguês, da mesma maneira que a Fada Azul não é Fada Azul de fato sem a varinha mágica, portanto, tais revoluções, que são obviamente posteriores à etapa inicial da Modernidade e decisivas para a economia na época, só devem ser burguesas.



Estudos relativamente recentes, trabalhos mais monográficos que ensaísticos, mais específicos e menos generalizantes que os dos “marxistas primitivos” e daqueles de há vinte anos ou menos (incluindo as espécies brasileiras), notaram que a sonda Mars Observer (oh! desculpe, é “Marx” Observer) não vasculhou as profundezas como tinha falado. Avançou até onde foi possível ou até onde queria, até onde foi conveniente, se é que avançou e se é que era realmente uma sonda.



Quem folheia, mesmo sendo ensaio, um livro como “A força da tradição” (São Paulo: Companhia das Letras, 1987), de Arno Mayer — sem citar as obras que ganharam vida para essencialmente atacar os fundamentos filosóficos e (supondo que existem) científicos do marxismo —, sente em parte o cheiro necrosado de um corpo intelectual, comprovando inclusive que, segundo bem pontificou o próprio “Manifesto comunista” (1848), certamente “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Ainda assim, o professor Mayer, que foi e permanece também materialista e muito influenciado por Marx, é sujeito inofensivo, não quer e não tem a ferocidade crítica de um Raymond Aron.



A tese de “A força da tradição” é a de que o “ancien régime” era a forma de organização desde o final da Idade Média, levou um pequeno golpe na Revolução Industrial, mas se prolongou pelo século XIX afora e, lutando contra as forças modernizantes da sociedade, deu origem à I Guerra Mundial. Para Mayer, capitalismo mesmo somente a partir da primeira metade do século XX, embora os impulsos econômicos do século anterior tenham sido decisivos. Além dos dados sobre as economias dos principais países, Mayer entra também na Filosofia da época, analisa sistemas como o de Nietzsche, mapeia a importante existência do irracionalismo e indica a força do conservadorismo, dos signos criados pela tradição do Antigo Regime ou até anterior. Tudo isso para provar, das estatísticas à cultura letrada, que a Europa pouco mudou entre os tempos modernos e o início dos anos de 1900.



Em outro livro a exemplo do de Adeline Daumard, “Os burgueses e a burguesia na França” (São Paulo: Martins Fontes, 1992), o leitor observará de cara que a burguesia só aparece na história a partir do século XIX, ao contrário de ter sido entre os séculos XIV e XVI segundo se imagina.



Confrontada a esse fato inconteste das pesquisas recentes, aparece por outro lado uma pedra preciosa de incongruência no caminho: um curioso artigo de Christopher Hill, “Uma revolução burguesa?” (publicado na “Revista Brasileira de História”, São Paulo: ANPUH e Marco Zero, nº. 7, março de 1984). O texto nada recente é uma tentativa frustrada de preservar o conceito de modo de produção quando até a realidade diz o contrário.



Acuado diante da evidência de que a interpretação marxista da história se enganou num ponto central, ele apareceu com um paliativo que pouco melhora a ferida purulenta. A solução de Hill foi propor que, se a burguesia não estava presente e dominando a cena durante as cabeças rolando, as batalhas, os conflitos rurais, pelos menos ela é a principal beneficiada com tudo isso. Conclusão: se houve esse benefício, então as revoluções foram burguesas. Mas imagine tal raciocínio: um ato só será definido mediante a apresentação de quem usufruiu dele e não de quem o praticou. É claro que isso é papo-furado. Ao José machucar seu dedo e Maria, sem nada influenciar no ocorrido, rir dele, então ela é a responsável pelo machucado de José pois tirou proveito rindo? Ou seria o farmacêutico, pois ganhou vendendo esparadrapo e pomada?



Supondo por um momento que o raciocínio “ad absurdum” de Hill esteja coerente, é só dobrar a esquina que aparece a contradição gigantesca com o seu pai intelectual e com ele próprio. Ora, o marxismo sustenta que a escatológica história criará os meios de surgimento do comunismo a partir da evolução natural da sociedade e das falhas e esclerose do modo de produção que o antecederá, o capitalismo. Tem-se por algo sem escapatória: uma etapa necessariamente sucederia a outra. OK. Pensando agora na mesma linha de Christopher Hill, pode-se deduzir que, na realidade, as tais revoluções burguesas, que não são burguesas, seriam revoluções comunistas (sic) uma vez que, em termos evolutivos, concorreram para o aparecimento e maturidade do modo de produção capitalista, o qual — após o seu inevitável esgotamento (como quer Marx) — permitiria sem querer a gênese do comunismo. No final de tudo, o que era burguesia já não é mais porque não havia burguês, mas pode ser burguesia por ter o movimento revolucionário a ajudado tempos depois (como quer Hill). E, de modo indefinido ou “ad infinitum”, pode ser comunista porque a longo prazo ajudou o comunismo, e pode ser socialista porque este foi completamente implantado e..., enfim, lá se vai Inês de Castro morta.



A falha conceitual do termo em questão demonstra algo além de uma indeterminação cronológica. Abalado está (e há tempos) o paradigma marxista de definir o processo da história. O materialismo histórico e dialético não sai ileso diante de uma imprecisão sobre séculos e fatos, diante da fragilidade de determinados fundamentos seus — dos quais também estão em jogo idéias como luta de classes, revolução e ideologia. O modo de produção tem tudo para ser o que não é e não ser o que é; logo, nesta barafunda, se ninguém for por ele, seu sentido tenderá a constituir-se em coisa nenhuma, em nada.





Artigo enviado aos jornais “A Tarde” (caderno “Cultural”) e “Ideação Magazine”, do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e Pesquisas em Filosofia (NEF/UEFS), em setembro de 2003.











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