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Artigos-->O óbvio ululante? -- 19/07/2001 - 19:06 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Ler se aprende como? Ler se aprende lendo, oras.



O óbvio ululante? Mas tente convencer um aluno de língua estrangeira que funciona desse jeito. Normalmente o estudante imagina que vai, de repente, por um milagre das modernas técnicas de ensino e aprendizagem de idiomas estrangeiros, por um decreto do MEC, sei lá, sair por aí falando o alemão, por exemplo. Em Araraquara, por certo, será uma voz incomum pregando em meio aos canaviais e plantações de laranja.



É claro que considero, desde já, uma injustiça flagrante, se isso de fato passou a ocorrer com o tempo. Porque, para mim mesmo, foi uma duríssima batalha. Perto de trinta anos convivendo com o idioma de Steffi Graff, e cada vez me vejo mais longe de adquirir a fluência com a qual uma estada na Alemanha, por mínima que seja, continua prometendo instilar (para sermos poéticos), ou incutir (verbo mais próximo de certas tendências pedagógicas infelizmente hegemônicas), no aspirante.



E temos as mais diversas modalidades de adesão ao ilusório, nesse nosso campo. Há quem acredite possível ser, apenas e tão-somente (redundemos), professor da "língua" em questão (as aspas são imprescindíveis, para tentar reproduzir a candura com que alguém se vê capaz de uma afirmação como essa). Mais raro, mas não inexistente, e ultimamente tenho batido já de frente com alguns representantes da espécie, é quem quer "literatura" apenas (isto é, tintas de história da literatura, de preferência na versão historicista), não "língua". E há os que não querem saber mesmo bulhufas, só buscam mesmo um diploma.



Ouço, comovido, relatos de ex-alunas (a grande maioria de um curso de letras se compõem de pessoas do sexo feminino - é um fato; e, por favor, não complete o leitor esta afirmação com nenhuma outra intenção velada de minha parte, não a tenho, e nem com acréscimos indesejáveis, bem os conheço; mantenhamos minimamente o alto nível que o tema requer), retomando, ouço relatos de situações bastante típicas, por repetitivas, de uma visita não sei de onde, alguém que falava alemão, ou uma palavra que apareceu na TV, que alguém ouviu dizer, e a sala de visitas inquieta aguarda o veredito da ex-aluna, pressionada por frases tais como "você que se formou em alemão" (ein grosses "Perereco", diriam os alemães se tivessem tal palavra, ou eine "saia justa daquelas").



__________________________

(um interregno)



Antes que me fuja à memória, um slogan para um cursinho de idiomas:



VENHA TOMAR UM BANHO DE LÍNGUA.



__________________________



Ler nunca foi uma preocupação tão grande por parte dos ensinantes de idiomas estrangeiros, pelo menos até um certo momento da história recente. O meu percurso de aluno nota 7,0, capaz de sacrificar aulas imperdíveis por sessões de cinema ou teatro mais imperdíveis ainda, não foi dos mais exemplares, eu reconheço. Mas, por outro lado, não haveria como ser exemplar sem ser devidamente encaminhado para uma parte, convenhamos, substancial do processo de aprendizagem de qualquer idioma.



Na infância, convencionou-se que há uma idade para tanto. Mais ou menos entre os 6 ou 7 anos, o fedelho ou fedelha estão prontos para o adestramento. E tome Grupo Escolar. Depois vêm o Ginásio, o Colegial, o Cursinho talvez e, por fim, o tão ansiado privilégio de "tornar-se" (sim, é quase como que por encanto) estudante universitário. E sabemos, tenho-o repetido muitas vezes, que se pode chegar a tanto sem ter dominado devidamente os instrumentos principais que são a leitura e a escrita. Falar a gente acaba falando de algum jeito, não é mesmo? E, sabemos todos, ninguém vai ter a "coragem" de dizer, alto e bom som, que é preciso admitir e superar o nosso semi-analfabetismo.



Já a aprendizagem de idiomas estrangeiros costuma partir de um pressuposto até ofensivo para quem se atreve a tanto: não importa a idade, são dignos de comiseração esses indivíduos, requerem cuidados bastante especiais, tudo muito bem dosado, nada de precipitações, querer aprender idiomas é de qualquer modo um sintoma regressivo, os caras voltam a requerer tratamento normalmente dedicado às crianças.



Aí você chega na Alemanha, como eu cheguei, e começa a perceber que os alemães acham de falar com você como se você fosse índio, tudo no infinitivo, como se você fosse tão lerdo, a ponto de não conseguir assimilar as conjugações verbais mais elementares: senhor ir, senhor sair, senhor dobrar à direita. É desse jeito.



Vejam que eu cheguei à Alemanha, como bolsista, muito por acaso (seria um bom "mini-acauso" para a secção de contos ), do próprio Governo Alemão (vivíamos o momento do "acordo atômico", que insiste em nos presentear com Angra 1, Angra 2 e etc. - com o agravante de a tecnologia continuar sendo praticamente a mesma daquela época, é o que nos dizem os experts no assunto), e cheguei apenas semi-analfabetizado. E eu contava, na época, um anúncio feito publicar por uma de minhas tias zelosas do bom nome da família no jornal Cuzeiro do sul, "com apenas 25 anos". É mole?



Pois alguém poderia me explicar como passei tanto tempo, perto de sete anos, aprendendo o alemão, língua eminentemente escrita, e nunca percebi o menor gesto de estímulo a que eu me achasse capaz de me iniciar na leitura do idioma. Essas coisas sempre ficariam para bem depois. Cansei-me de ouvir afirmações bondosas, do tipo "uma bolsa só pode conseguir quem já é descendente de alemães", ou "mas isso vocês ainda não vão conseguir ler".



Resumindo: eu intuía, e fiz muito bem em burlar todas as determinações dos métodos didáticos e todos os rituais por assim dizer escolares, que não me queriam falante, nem leitor, nem escritor da língua que, num rasgo de atrevimento, inventei de aprender.



Enquanto freqüentava os cursos do Instituto Goethe, em São Paulo, tendo chegado ao nível superior, não perdi um só ciclo de cinema alemão: me lembro de ter visto uma série de 70 filmes do expressionismo e quase tudo o que já havia feito o "cinema novo alemão".



Ao chegar à Alemanha, me lembro de ter causado espanto entre os professores do Instituto em Grafing bei München, porque apresentava uma incrível familiaridade com o cinema de Werner Herzog, Volker Schlöndorf e até mesmo do ainda iniciante Wim Wenders, entre outros, além de conhecer um bom tanto da literatura alemã, lida, é claro, em traduções até ali.



Um professor que tive duvidou da minha afirmação de que "O enigma de Kaspar Hauser" tinha, no subtítulo uma frase do "Macunaíma" de Mário de Andrade: "Jeder für sich und Gott gegen alle" (Cada um por si e Deus contra todos). Pois é, e eles tampouco tinham notícia de que o "cinema novo alemão" assim se chamava por reverência ao "cinema novo brasileiro".



Alguns meses depois, já vivendo como Musikant em Munique, encontrei um interlocutor à altura, ninguém menos do que Enno Patalas, que dirigia na Cinemateca de Munique. Fiquei sendo uma figurinha fácil em meio aos cinéfilos, e às vezes me espanta saber que já vi tanto.



Pude ver, por exemplo, toda a filmografia do grande cômico de Munique, Karl Valentim, com quem Brecht afirma ter aprendido a fazer teatro, tendo escrito para ele inclusive o roteiro de "Mistérios de um salão de cabeleiro". Vi todo o cinema feito por dadaístas e surrealistas, a filmografia kitsch alemã, das aventuras nos Alpes, com alpinistas intimoratos, entre eles a heróina preferida do Führer, aquela que responderia pelo resto de seus dias e para sempre por ter sido a escolhida, Leni Riefenstahl. Fui conhecer a novidade de que havia filmes feitos por Brecht. E ainda, de quebra, pude ver e rever toda a produção do nosso Glauber Rocha, coisas do cinema brasileiro que nunca tinha visto antes de sair do Brasil.





Para que tenham uma idéia do que significou Glauber Rocha para o cinema europeu, o principal cinema de arte de Munique, que tinha o Hall recoberto por cartazes de cada um dos cineastas mais importantes do mundo, ostentava seis cartazes de filmes do brasileiro.



Bem, mas eu comecei este artigo com a afirmação de que ler se aprende lendo. Foi o que fiz. Para não chafurdar na chatice realista do pós-guerra, que a Germanística, em escala mundial, decidiu nos impor como sendo o modelo literário por excelência (deu certo: rendeu dois prêmios Nobel), nos conscientizar à força com doses cavalares do "a vida como ela é", preferi me iniciar, foi o que me caiu nas mãos na distante Grafing bei München, com as aventuras do grande Júlio Verne. De repente, descobri a pólvora. Eu já estava lendo. Li tudo o que havia na biblioteca daquele instituto, que não era muita coisa. Foi um susto saber que tinham uma única e quase nunca visitada estante com livros amontoados a esmo.



Mais recentemente, em Iserlohn, onde me fizeram regredir mais uma vez à condição de aluno eterno, a biblioteca era um pouco melhor, mas ficava aberta - pasmem! - exatamente durante as horas em que tínhamos aulas. Surpreenderam-se com o meu pedido de que ela também ficasse aberta no período da tarde, isso não seria possível, usw. usw.



Decidi salvar-me com a leitura dos jornais que se espalhavam pelas mesas do hall de entrada do Instituto, quase sempre sem leitores, apenas simbolicamente expostos, como prova de que o país produz seus jornais. Um tutor não se conteve e quis saber por que vinha até ali todas as tardes. Disse que lia jornais. E, espantadíssimo, quis saber se eu entendia o que lia. Respondi que continuava tentando. Que ler se aprende lendo. Ele ficou quieto e prosseguiu em misteriosas confabulações com os outros tutores junto ao guichê da secretaria. Sei que me observavam cuidadosamente, eu era daqueles de se pegar com a pinça mesmo, e quem sabe até chegassem à sábia conclusão de que era melhor não demonstrar receio.



Mas demorei, com razão, para chegar de volta ao tema proposto, à leitura. E o fiz para que sentissem como o meu percurso foi demorado e tortuoso. Não seria justo que hoje em dia, como se alardeia, em quatro anos o estudante universitário saia da faculdade dominando o, aparentemente apenas indomável, idioma estrangeiro.



Como puderam acompanhar, tratei de ler tudo, mas não apenas os signos verbais, a língua escrita. Cuidei também de ler o máximo de imagens que podia.



Recentemente, em Düsseldorf ao longo de uma semana de neve, transbordamento do Reno e dificuldades para encontrar qualquer chance de comunicação com os nativos, acabei amigo de um russo, desses que rodaram de volta para a Europa Central depois do desmoranamento da União Soviética, e que trabalhava como porteiro de uma igreja que visitei por acaso, de passagem. Pela alegria que brilhava nos olhos dele, soube que estávamos sendo, um para o outro, um Papai Noel inesperado. Ao longo daquela semana, todas as tardes eu passava por ali, e conversávamos num alemão improvável, que cada qual tratou de dominar como pode, dentro das limitações culturais impostas pelo meio em que cresceu. Perguntei a ele como tinha conseguido tanto, e ele me respondeu: "Lendo."



Além desse bate-papo todas as tardes na portaria da igreja, só me restava, como ocasião pública e democrática - vejam só! - o McDonalds. Não cheguei a comer nenhum BigMac, não me entendam mal. Tomava um copo de café, quase um bule na Alemanha, e às vezes comia um arremedo americanizado de um Apfelstrudel (versão fast-food). Ali ainda tinha a oportunidade de ser importunado por um bêbado, um junkie, abordado por turistas como eu, um que outro alemão ou alemã à cata de emoções, digamos, interculturais.



Poderia encerrar este artigo com a mesma afirmação do início, de que ler se aprende lendo, oras. Hoje, que me vejo traduzindo mentalmente, já sigo pela quarta ou quinta leitura, para um futuro que ainda não sei se haverá, um livro que comprei, ao acaso, em Düsseldorf, o romance "Geschwister Tanner" (1907) do, ainda inédito entre os não autores/leitores do usinadeletras , Robert Walser. Aos pocuos começo a perceber que, já em 1993 essa minha mania de ler, juntamente com o acaso, me presenteara, a preço de ocasião num sebo em Berlim, com uma descoberta que o mundo inteiro hoje está fazendo. Walser, um temperamento absolutamente avesso ao sucesso e ao grand-monde literário, teve a má sorte de ter sido contemporâneo de Rilke, Kraus, Tucholsky e (uau!) Franz Kafka, todos eles seus leitores. Ficou para depois. Quem sabe agora? De repente, eis que o mundo vai descobrir alguém que falava cristalinamente de tudo o que hoje estamos vivendo no alvorecer de mais um século. Mas quero reverenciar aquele meu amigo russo de todas as tardes às margens do Reno, dizendo que falar também se aprende lendo.
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