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Artigos-->O 11 DE SETEMBRO E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS -- 11/09/2003 - 23:21 (Carlos Frederico Pereira da Silva Gama) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
O 11 DE SETEMBRO E AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS –

NADA MAIS SERÁ COMO DANTES?



Introdução



A idéia de que “tudo mudou após o 11 de Setembro” tornou-se um clichê de nossos tempos pós-modernos. Não apenas vimos repetido esse mantra à exaustão em veículos das mais diversas respeitabilidades – pudemos ouvi-lo da boca de Chefes de Governo e Estado, secretários de Defesa, Ministros, integrantes de organizações internacionais e não-governamentais. Nem sempre com espírito desinteressado, tome-se registro. Ao analista internacional, longe de reproduzir clichês ou justificar atitudes as mais diversas com base nestes últimos, interessa mensurar, ainda que de forma aproximada e (dado o reduzido espaço temporal que nos separa dos ataques terroristas) provisória, o impacto do 11 de Setembro para as Relações Internacionais. Nesse sentido os atentados em si, já de domínio público, interessam menos do que a análise cuidadosa da dinâmica dos agentes constituintes do sistema internacional, no interior das instituições que comporta essa última. O objetivo desse artigo é proceder a essa análise, tomando como referências alguns conceitos já consagrados no campo (Regimes Internacionais) bem como novos instrumentos de análise (a chamada “Governança Global”). Para tal, devemos inicialmente verificar como tais instrumentos se constituíram. Em seguida, aplicá-los para compreensão do contexto imediatamente anterior ao 11 de Setembro, bem como na atualidade. E, finalmente, verificar o caráter da mudança pós-atentados a partir do contraste entre o contexto internacional atual e o anterior.



Relações Internacionais e instrumentos de análise



O período pós-Segunda Guerra Mundial representou um ponto de inflexão nas Relações Internacionais. O paradigma dominante até então, o do Realismo Político, apresentava um sistema internacional “...no qual Estados nacionais soberanos, agentes exclusivos, buscavam resolver seu ‘Dilema de Segurança’ através da maximização do poder” (Rosenau, 1990: p.245), sistema este caracterizado por “regras limitadas de coexistência entre os vários estados, entendimentos e instituições minimalistas, planejados para restringir o conflito inevitável a ser esperado num sistema político pluralista e fragmentado” (Hurrell, 2000). Mudanças profundas na realidade internacional se repercutiram na produção do conhecimento, gerando novos paradigmas e escolas de pensamento . O Realismo Político perdeu parte de sua capacidade explicativa. Para tal contribuíram tanto o crescimento da importância de “novos agentes”, não-estatais, quanto a emergência de “questões globais” que demandam soluções superiores à capacidade de resposta individual dos Estados nacionais soberanos e são, portanto, potenciais propulsoras da cooperação internacional. Nas palavras de Andrew Hurrell (2000):



“o objetivo de uma ordem mínima tornou-se cada vez mais inadequado, dado o alcance e a gravidade dos problemas e desafios apresentados à sociedade internacional. Particularmente, a ampliação da interdependência e o grau no qual sociedades individuais dependem umas das outras para obter segurança, prosperidade e capacidade para controlar seu ambiente denotam que a legitimidade dos Estados depende atualmente da sua capacidade de satisfazer a um vasto e incrementado leque de necessidades, demandas e exigências”



Exigências aos Estados para que demandem maior atenção “...a questões de direitos humanos individuais e coletivos, como também à promoção de padrões mínimos de bem-estar e prosperidade humanos mundo afora” (Hurrell, 2000) ocorrem nesse contexto. Os Estados nacionais continuaram, contudo, a ser os repositórios primordiais de autoridade no sistema internacional (Young, 1997: pag. 2) e as perspectivas de estabelecimento de um “governo mundial” continuaram remotas. Novas formas de equacionar as questões da ordem, da cooperação, da eficácia de agência e da democratização no sistema internacional tornaram-se necessidade imperiosa. As alterações verificadas na realidade internacional deram origem, já na década de 1970, a instrumentos de análise que se propunham a responder satisfatoriamente às perguntas antepostas que fugiam à capacidade explicativa do Realismo Político. Alguns deles, que serão utilizados neste artigo, são os seguintes: as análises de Nye Jr./Keohane – apresentando os conceitos de Globalismo e Globalização – e de Rosenau, com seu conceito de “sistema internacional bifurcado”, além de duas propostas para analisar a questão da ordem nesse novo contexto internacional, contidas nos chamados Estudos de Governança e Estudos de Regimes Internacionais.



Globalização e “turbulência na política mundial”



O conceito de Globalismo deriva diretamente da Teoria da Interdependência Complexa, surgida nas décadas de 1960 e 1970. O Globalismo corresponde a um “estado do Mundo caracterizado por redes de interdependência em distâncias multicontinentais” (Nye Jr. & Keohane, 2000: pag. 2). Entenda-se por redes de interdependência um conjunto de fluxos (econômicos, militares, sociais-culturais e ambientais) entre múltiplos agentes do sistema internacional – Estados nacionais e agentes não-soberanos, tais como as Organizações Não-Governamentais (ONGs). A época contemporânea não teria sido a única na qual o fenômeno do Globalismo teria se manifestado – este seria uma constante na História humana, tendo mais ou menos fôlego em épocas definidas (exemplos de Globalismo de tempos ermos são a expansão do Islã ocorrida nos séculos VI a XI, englobando desde a Península Arábica até a atual Indonésia, bem como a “empresa colonial” dos séculos XVI a XIX, cujo âmbito foi de fato o globo). O Globalismo não seria homogeneizador nem universal. A Internet, por exemplo, estende-se dos Estados Unidos à Tanzânia – contudo 60% dos norte-americanos têm acesso à rede, contra menos de 1% da população nos países da África Negra.



A Globalização, por sua vez, corresponde a um aumento na densidade do Globalismo, representado tanto por um redimensionamento das redes de interdependência em nível multicontinental (entrada de novos agentes) quanto por um aumento na interação entre redes de interdependência distintas (maior número de pontos de interseção). A Globalização coloca em contato redes de interdependências as mais diversas, que interagem e se sobrepõe. Os efeitos dos relacionamentos reverberam por toda uma gama de redes de interdependência, com seus respectivos e diversos agentes, tornando a “arquitetura” do Globalismo crescentemente mais complexa – pequenos eventos em um local podem ter efeitos catalisadores, assim suas consequências posteriores e em todo o sistema são vastas. A consequência mais imediata da Globalização é, desta forma, a imprevisibilidade. Dado que vivemos num período de especialmente intensa Globalização, considerável complexidade e incerteza colocam-se diante dos agentes no sistema internacional.



A principal motivação de controvérsias no contexto atual, na análise de Nye Jr. & Keohane, é a demanda cada vez maior dos agentes não-soberanos por participação nos processos decisórios em nível internacional, baseada no argumento de que “o que cabe a todos deve ser decidido por todos”. No limite, trata-se de uma reivindicação por cidadania. O grande problema que esta demanda por cidadania – a princípio legítima – revela é a ausência clara de uma comunidade política independente, capaz de garantir direitos e deveres a quem os demanda. A polêmica acerca dos conceitos de sociedade civil internacional e opinião pública mundial não autoriza que afirmemos a existência inequívoca de tais esferas como sendo comunidades políticas independentes – o que, por outro lado, não impede que a demanda por participação nos processos decisórios internacionais alimente a dimensão disruptiva e complexificante da Globalização.



Rosenau, por sua vez, caracteriza o sistema internacional da atualidade pelo que ele denominou “incoerência estrutural” (Rosenau, 1990: p.244). Tal termo não implica a inexistência de uma estrutura, mas a coexistência de lógicas diferentes (por vezes opostas) num mesmo sistema, utilizadas por múltiplos agentes em suas relações, fazendo com que a “forma” do sistema seja irregular, marcada por profunda complexidade e dinamismo. Dois processos apresentam-se como fundamentais em tal sistema: descentralização dos “locais de ação”, gerando uma miríade de sub-sistemas que se opõe/sobrepõe continuamente; centralização das “iniciativas de ação”, resultado da emergência de “temas globais” (citados acima), cuja solução demanda coordenação e cooperação entre os diversos sub-sistemas e seus respectivos agentes.

Rosenau apresenta um sistema internacional de estrutura bifurcada, compreendendo dois “mundos” ou esferas distintas, porém interrelacionadas. A esfera estatocêntrica corresponde ao sistema internacional tal como descrito pelos adeptos do paradigma Realista. Nessa esfera, os agentes por excelência são os Estados nacionais soberanos – entendidos como entidades monolíticas, isto é, que agem tendo estrito controle sobre agentes localizados em seus territórios; e como agentes racionais, maximizadores de um determinado conjunto de preferências (no caso dos Estados, associadas à auto-preservação, advindo daí a primazia das questões de Segurança no sistema internacional). A ausência de um poder regulador acima dos Estados nacionais faz com que a relação entre estes se baseie em atributos de poder (capabilities) desiguais, colocados a serviço da maximização do “interesse nacional”. As ações de cada Estado, influindo nos resultados das ações dos demais, acaba por configurar um mecanismo regulador de caráter sistêmico, a “Balança do Poder”. O chamado “Dilema de Segurança” é a questão mais fundamental para os agentes dessa esfera – as ações dos Estados, na busca pela maximização de suas preferências (auto-preservação/Segurança), acabam por colocar em risco a própria Segurança dos mesmos, na medida que o resultado de tais ações incidem sobre outros Estados, levando estes últimos à ação, que, em seguida, reverbera sobre os demais. Forja-se assim um mecanismo de retroalimentação, cuja resultante sistêmica é uma situação de tênue e tenso equilíbrio entre os Estados.



A outra esfera, dita multicêntrica, surgiu associada a um conjunto específico de modificações verificado no pós-Segunda Guerra Mundial. Compõe-se de agentes com diferentes motivações, recursos e funções – corporações transnacionais, ONGs, grupos guerrilheiros, terroristas, movimentos étnicos, elites burocráticas etc. São eles os “novos agentes” do paradigma Transnacionalista. Traços comuns entre eles são seu caráter não-soberano e a capacidade que possuem de se “evadir” ou “ignorar” as demandas dos Estados nacionais soberanos (aos quais estão formalmente submetidos) quando atuam na esfera multicêntrica. As relações entre os agentes da esfera multicêntrica se baseiam no reconhecimento mútuo da “autoridade de iniciar e sustentar ações” (Rosenau, 1990: p.261). A complexidade e a ausência de uma autoridade capaz de regular todas as relações entre os agentes (mais pronunciadas do que na esfera estatocêntrica) fazem com que a esfera multicêntrica seja um complexo arranjo de relações cooperativas ou competitivas entre agentes de natureza diversa, os quais lutam para manter sua coesão interna e para obter os recursos necessários à consecução de seus próprios objetivos. Tal complexidade, se não impede a tomada de decisão e o início da ação, surge como obstáculo ao controle dos acontecimentos e à obtenção dos resultados. A iniciativa da ação e sua sustentação na esfera multicêntrica por parte de um agente ou grupo de agentes impõe constrangimentos à tomada de decisão e ação dos demais, além de influir nos resultados das mesmas. Os agentes da esfera multicêntrica, portanto, estão confrontados com um dilema (à semelhança do Dilema de Segurança estatocêntrico) que pode ser caracterizado como um “dilema de autonomia”.



Aparentemente apartadas e sumamente diversas, as esferas estatocêntrica e multicêntrica apresentam alguma similaridade e mantém estreito relacionamento. Ambas são marcadas por alto grau de anarquia sistêmica (na esfera estatocêntrica não há nenhum agente que tenha imediata precedência sobre as soberanias nacionais; na esfera multicêntrica a miríade de agentes autônomos estabelecendo entre si relações ad hoc torna a anarquia sistêmica ainda mais pronunciada). Agentes soberanos e não-soberanos transitam de uma esfera para a outra, estabelecendo entre si relações ad hoc complexas, criando “áreas de contato” entre as esferas. O resultado dessa interação é a “turbulência na política mundial” (Rosenau, 1990: p.265).



O grande questionamento encontrado na análise de Rosenau diz respeito à criação de ordem no sistema internacional (bifurcado), tendo em vista as múltiplas interações. Ao contrário de Nye Jr. e Keohane, as demandas por participação nos processos decisórios não são a principal fonte disruptiva – estas últimas são encontráveis na própria configuração estrutural do sistema. É razoável pensar que a solução para o problema da ordem, em Rosenau, guarda ligações com a constituição de uma comunidade política independente, capaz de sustentar direitos e deveres em nível sistêmico. Mas as semelhanças acabam aí, na medida que as demandas de agentes não-soberanos por participação, em Nye Jr. e Keohane, indicam que alguma forma de ordem sistêmica já existe – esta última, por sua vez, sendo apenas almejada em Rosenau.



As construções teóricas de Rosenau e Nye Jr./Keohane possuem um fundamento comum – contemplam agentes maximizadores de determinados conjuntos de preferências (ou seja, agentes que agem no marco de uma racionalidade instrumental), independente de serem soberanos ou não. Da mesma forma, os questionamentos de cada abordagem podem ser traduzidos nos termos da outra com relativa tranquilidade – dada a existência de um fundamento comum. A “turbulência” de Rosenau pode ser entendida, nos termos de Nye Jr. e Keohane, como resultado da proliferação de redes de interdependência em níveis multicontinentais e do aumento do número de seus pontos de interseção, colocando agentes diversos (ONGs e Estados, por exemplo) em contato, o que conduz ao conflito, mas igualmente abre portas para a criação de mecanismos de cooperação num contexto de agentes agindo de forma instrumental. O atual estágio de “Globalização” de Nye Jr./Keohane, por sua vez, pode ser entendido como resultado da “bifurcação” do sistema internacional, conduzindo agentes soberanos e autônomos a defrontarem-se em sua busca por maximização de resultados – e igualmente a formar alianças tópicas para a consecução de metas mutuamente vantajosas.



Regimes Internacionais e Governança Global



Feita a contextualização das Relações Internacionais da atualidade, pode-se então compreender o teor das propostas de análise da ordem no sistema internacional hodierno– os Estudos de Governança e os Estudos de Regimes Internacionais. Esta seção será dedicada à apresentação destes dois campos de estudo em Relações Internacionais.



Surgidos na década de 1970, os Estudos de Regimes Internacionais e os Estudos de Governança dividem o mesmo ponto de partida teórico (a idéia de Interdependência) e, além disso, ambos dedicam atenção ao papel exercido por agentes não-estatais. São, no entanto, diversos nas suas características e no teor de suas propostas. Quando “as ações de um agente interferem diretamente no resultado das ações de outro(s) agente(s)” (Young, 2000: pag. 4) diz-se que há uma relação de interdependência entre eles. Essa relação traz consigo o potencial tanto para o conflito (ações unilaterais prejudicando os interesses de algum dos envolvidos, ou de todos) quanto para a cooperação (tomada de decisões conjunta), beneficiando a todos. A Governança e os Regimes Internacionais inclinam-se em direção do “pólo” da cooperação, embora não sejam desprovidos de situações nas quais os agentes conflitam.



Os Estudos de Regimes Internacionais, desde seu advento, provocaram intensas polêmicas no meio acadêmico dedicado às Relações Internacionais. Não apenas abrigavam diversas correntes que se criticavam mutuamente com intensidade como também o termo “regimes” esteve ameaçado de perder sua significação, devido à profusão de sentidos que assumia – era possível afirmar que cada teórico da Escola criava um conceito diferente de todos os anteriores. Os críticos da Escola de Regimes dedicavam especial atenção à essa polissemia exagerada, somente superada a partir de 1982, quando Stephen Krasner, na obra International Regimes, lançou uma definição que, anos depois, devido à sua imensa aceitação e flexibilidade, logrou o consenso. Segundo Krasner (1983) os regimes internacionais consistem em “regras, normas, princípios e procedimentos de tomada de decisão, implícitos ou explícitos, para os quais convergem as expectativas dos agentes numa área temática das Relações Internacionais” (Krasner, 1983: p.???). Os agentes, em questão, são em geral os Estados nacionais soberanos; os “novos agentes”, não-soberanos, conquanto tenham sua importância reconhecida, somente aparecem de forma tópica nos estudos desse campo. As “áreas temáticas” podem ser melhor entendidas como as “questões globais” surgidas no pós-Segunda Guerra – Direitos Humanos, Meio Ambiente, controle de armamentos convencionais ou nucleares etc.



Os Regimes Internacionais foram compreendidos de forma bastante diversa por suas diversas “escolas”, não obstante o grau de aceitação alcançada pela definição de Krasner. Este artigo adotará a perspectiva da escola Liberal (também dita Formalista) do estudo dos Regimes Internacionais, perspectiva esta a mais adotada pelos estudiosos do campo. A escola Liberal, considerando os agentes do sistema internacional como maximizadores de utilidade (agentes movidos por uma lógica instrumental), enfatiza o caráter regulador dos Regimes Internacionais - regimes reduzem incertezas relativas aos fluxos entre os agentes, promovendo cooperação, tornando os resultados (outcomes) do sistema mais satisfatórios para seus participantes gerando previsibilidade, e, portanto, ordem (HASENCLEVER, MAYER & RITTBERGER, 1997: pag.36). Esta última constatação, para os propósitos deste artigo, reveste-se de especial importância.



O conceito de Governança, por ser muito recente, sequer tem correspondentes para o termo original inglês governance na maioria das línguas. A idéia da existência de “funções que precisam ser executadas para dar viabilidade a qualquer sistema humano, mesmo que o sistema não tenha produzido organizações e instituições incumbidas explicitamente de exercê-las” (Rosenau, 2000: p.14), no entanto, é das mais fundamentais num mundo no qual agentes e lógicas múltiplos, oriundos de esferas distintas, interagem constantemente, gerando padrões de relacionamento complexos e contraditórios, traçando o cenário da “incoerência estrutural”. A existência de funções essenciais para a manutenção dos sistemas humanos já foi abordada inúmeras vezes em diversas teorias e correntes da Ciência Social (inclusive pela Teoria dos Sistemas); o que há de novo é a possibilidade da ausência de organizações e instituições formais que as exerçam. Tradicionalmente, as funções essenciais para os sistemas (políticos) humanos eram executadas exclusivamente pelos governos . A Governança caracteriza-se, portanto, em primeiro lugar, pela não-necessidade de governo, no sentido de que subsiste independentemente da existência de agentes formalmente constituídos e intencionalmente movidos para a ação, capazes de lançar mão de meios coercivos para o alcance dos resultados.



O analista cuidadoso deverá fazer uma distinção necessária entre os conceitos de Governança e de Governança Global. Por Governança entende-se “um conjunto de instituições e processos, formais e informais, responsáveis pela regulação da ação coletiva de um ou mais grupos humanos” (Nye Jr. & Keohane, 2000: pag.12). Ainda segundo Rosenau, à Governança Global está associada a idéia de intencionalidade, no sentido de que não diria respeito a mecanismos espontâneos de auto-regulação, mas a mecanismos intencionalmente concebidos para um fim específico – a geração de ordem no sistema internacional.



Um regime internacional – com suas normas, regras, princípios, procedimentos de tomada de decisão, agentes, instituições – configura, portanto, um “sistema de Governança”. Os Estudos em Regimes Internacionais podem ser considerados um subconjunto dos Estudos em Governança – de escopo mais amplo – dado que os primeiros são dotados de duas características particulares que os distinguem do conceito, mais amplo, de Governança Global, não deixando, entretanto, de constituir “sistemas de Governança” (STOKKE, 1997):



? Os Regimes Internacionais têm por foco “áreas temáticas”, ou seja, "compartimentalizam" a compreensão das Relações Internacionais – até por terem surgido como alternativa ao Realismo Político, tendo adotado este último uma “fungibilidade das capabilities” de diferentes áreas temáticas, subsumidas no conceito de Poder (Stokke, 2000). À Governança Global, por sua vez, estão relacionados processos de sobreposição de regimes e de conflito de normas entre regimes, transmitindo a idéia de mecanismos reguladores gerais do sistema internacional. Corresponde à “série de entendimentos rotineiros por meio dos quais flui a política mundial, de um momento para outro” (Rosenau, 2000: p.17). A Governança Global articulou-se como alternativa à “compartimentalização” das Relações Internacionais efetivada pelos Regimes Internacionais.

? Os Regimes Internacionais, conquanto não ignorem o papel de agentes não-estatais, são predominantemente estatistas, daí sofrerem críticas por conformarem uma teoria “conservadora” (Stokke, 2000). A Governança Global, por sua vez, enfatiza o papel de agentes não-estatais, seja trabalhando conjuntamente nas redes de interdependência de Nye/Keohane ou exercendo ativamente papel dominante em sua própria esfera (multicêntrica) e cruzando as fronteiras entre as esferas no “sistema internacional bifurcado” de Rosenau.



O cenário internacional e o 11 de Setembro



O cenário internacional pré-atentados caracterizava-se por um amplo esforço visando atender a uma extensa agenda temática construída no pós-Segunda Guerra Mundial, esforço esse que ganhou novo fôlego após a dissolução da União Soviética e o fim da Guerra Fria. Uma miríade de regimes internacionais ganhava nova relevância e renovadas funções (regime de não-proliferação de armas nucleares, regime multilateral de comércio sob a égide da OMC substituindo o GATT etc). Para harmonizar os diversos regimes e atender a múltiplas demandas por maior eficiência na sua própria ação, a Organização das Nações Unidas empreendeu uma série de reformas internas (“Agenda para a Paz” etc.). O chamado “sistema ONU” ganhou relevo inaudito, contando, entre suas contribuições fundamentais para o novo estado de coisas, com a promoção de uma série de Conferências Mundiais durante toda a década de 90 (caracterizando esta como “a década das conferências”), atendendo a áreas como: Meio Ambiente (Rio-92), Assentamentos Humanos (Cairo-94), Direitos Humanos (Viena-93), Mulheres (Beijing-95) etc. A participação ativa de agentes não-estatais (marcadamente ONGs) em todas essas conferências, bem como o fim da disputa Leste-Oeste e não esquecendo a sobreposição de áreas temáticas, gerando instabilidade e a necessidade de medidas de “Governança Global”, manifestaram a possibilidade de um período de conquistas significativas para a sociedade internacional, baseado na cooperação multilateral. A globalização (entendida em múltiplos sentidos, não necessariamente o de Nye Jr. e Keohane) seria, enfim, sinônimo de Paz e Progresso, ainda que eventos perturbadores em termos de segurança internacional (guerra da Iugoslávia, guerra civil em Ruanda etc.) continuassem a existir. Lembro, ainda, que o governo dos Estados Unidos, durante quase toda a década de 1990, mostrou-se inclinado a apoiar, senão mesmo promover, tais medidas, conquanto pontualmente tenha rejeitado algumas delas. Os dois governos Bill Clinton levaram adiante, para além do plano das palavras, o que o governo de George Bush pai tinha caracterizado como “nova ordem mundial”.



O que o 11 de Setembro tem a nos dizer sobre isso? Devemos ponderar que, antes mesmo dos atentados, os Estados Unidos já mostravam alteração significativa no seu posicionamento frente às instituições internacionais (marcadamente os regimes internacionais). Antes mesmo de sua posse, George W. Bush posicionou-se claramente de forma contrária à manutenção do acordo de limitação de mísseis balísticos com a Rússia; a atuação dos Estados Unidos na Conferencia Mundial contra o Racismo em Durban (África do Sul), meses antes dos atentados, indicavam flagrantemente o novo curso de ação do governo norte-americano, marcadamente unilateral. Os Estados Unidos foram contrários, igualmente, ao Protocolo de Redução de Emissões de Gases na Atmosfera (Protocolo de Quioto, instrumento complementar aos adotados na conferencia Rio-92) e à instituição do Tribunal Penal Internacional. Devemos dizer, ainda, que o Terrorismo não foi um fenômeno ausente do cenário internacional nos anos 90 (atentado a um centro israelita na Argentina-92, atentado ao próprio World Trade Center-93, atentados a diversos prédios na Rússia-96, atentados às pirâmides no Egito-97 e 98, atentado às embaixadas norte-americanas na Tanzânia e Quênia-99, atentado a um destróier norte-americano no Iêmen-2000). Uma vez ocorridos os atentados, duas hipóteses dividiram as opiniões dos articulistas – a primeira (majoritária) apontando a possibilidade dos atentados inverterem o curso de ação do governo norte-americano (alguns chegaram mesmo a apontar o unilateral de George W. Bush como causa dos atentados), reforçando as instituições internacionais. A segunda apontava para um reforço do unilateralismo norte-americano e para a inoperância das instituições internacionais, especialmente da ONU.



Do ponto de vista das instituições internacionais, os atentados de 11 de Setembro constituem um desafio aos regimes internacionais que pode ser resumido na seguinte sentença: é possível a criação de um regime dedicado ao combate ao terrorismo? Dadas as múltiplas dimensões (complexas) envolvidas no fenômeno do Terrorismo e mesmo a polissemia do termo, que impede que consenso político para a ação seja levado a cabo (exemplo: os chamados “movimentos de libertação” como os do Kosovo e Palestina podem ser considerados grupos terroristas?), a resposta parece ser um taxativo “não” (ainda que diversos articulistas tenham aventado essa possibilidade no imediato pós-11 de Setembro, seguindo as palavras de George W. Bush). Quanto aos regimes internacionais, o que podemos apreender do 11 de Setembro é a necessidade de coordenação dos diversos que já existem. Tarefa que se torna mais difícil pelo simples fato de que os atentados reorganizaram a própria agenda internacional, recolocando no topo as questões de segurança. Num contexto de acelerado unilateralismo norte-americano, uma consequencia (já visível) é a indisposição de diversos aliados reais ou em potencial, pouco desejosos de colaborar com a tão falada “guerra ao Terrorismo” em todas as suas frentes quando não há reciprocidade visível em outras áreas temáticas, deixadas “em segundo plano” ou subordinadas à “guerra contra o Terrorismo”. O efeito agregado torna-se ainda mais agudo devido à utilização do 11 de Setembro como vetor viabilizador de metas políticas do governo norte-americano que pouco ou nada têm a ver com o combate ao Terrorismo – tais como a derrubada do velho inimigo Saddam Hussein no Iraque e o tentativa de “colocar na linha” países “párias”, tenham (Irã) ou não (Coréia do Norte) laços fortes com grupos terroristas como a Al Qaeda.



Quando atentamos para o fato de que o Terrorismo excede o limite de um regime internacional e demanda a coordenação de diversos regimes e atores, bem como a criação eventual de novos instrumentos de cooperação internacional, acabamos de adentrar o território da Governança Global. Esta ainda parece merecer maior consideração por parte do governo dos Estados Unidos quando do combate ao Terrorismo, como demonstram as pressões norte-americanas sobre a ONU, indicando que o apoio da organização e sua própria existência podem ser tornados dispensáveis caso a mesma ONU não atenda ao propósito norte-americano de ação “incisiva” contra o Iraque (menos eufemisticamente, trata-se de encontrar um pretexto para o tão almejado ataque e a derrubada de Saddam Hussein) tão explicitamente quanto atendeu no caso da ação norte-americana no Afeganistão. Há um problema de Governança Global adicional ao do “desprezo pela ONU”, quando a recusa norte-americana em participar de instituições como o Tribunal Penal Internacional e o Protocolo de Quioto impede uma ação coordenada da sociedade internacional em seus diversos planos, além de promover em larga escala desconfiança quanto à real importância da sociedade internacional para os Estados Unidos, desfavorecendo alianças fundamentais para qualquer empreendimento sistêmico bem-sucedido no combate ao Terrorismo.



O Terrorismo parece mais próximo da “turbulência” de Rosenau do que da “complexidade da política internacional” de Nye Jr. e Keohane. Não são as demandas crescentes de diversos agentes por participação nos processos internacionais que tornam o combate ao Terrorismo um problema singular (conquanto elas possam surgir nos próximos anos, ainda que não se possa afirmar que tal fato seja provável). De fato, o choque entre atores de natureza diversa – Estados nacionais e grupos terrorista – conquanto possuam o mesmo caráter maximizador em sua ação, relacionando-se numa ampla gama de áreas temáticas correlatas, é o que caracteriza o atual contexto de real e crescente “turbulência”. É no marco da Governança Global que será encontrada uma solução duradoura para o problema do Terrorismo, o que pressupõe abrandamento ou cessar do unilateralismo norte-americano (não verificado até o momento) concomitantemente com reforço das instituições internacionais (também ainda por ser visto – felizmente pode-se dizer que não se verificou, muito pelo contrário, a inoperância das instituições internacionais).



Em suma: O 11 de Setembro não representou “um novo começo” para tudo. Aprofundou tendências que já estavam em curso antes de sua ocorrência, tais como o unilateralismo de George W. Bush. Enfim, nenhuma das análises dos articulistas no imediato pós- 11 de Setembro tomou corpo completamente. O unilateralismo norte-americano não foi revertido nem este triunfou sobre as instituições internacionais, que não foram reduzidas ä inoperância. Conquanto um quadro mais detalhado demande maior horizonte temporal para análise, reputo que a tendência mais forte entre as apontadas seja a de reversão (ainda que parcial) da atitude do governo dos Estados Unidos frente às instituições internacionais. Cabe, finalmente, a todos os integrantes da sociedade internacional demonstrar continuamente isso ao governo Bush, de todas as formas – ainda que este não queira ouvir essa mensagem.



REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS



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