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Artigos-->IRAQUE E EUA - VOLTANDO OS OLHOS PARA TRÁS -- 30/08/2003 - 00:59 (Carlos Frederico Pereira da Silva Gama) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Dizia a filósofa Simone Weil em 1949: "Não tem sentido livrarmo-nos do passado para pensar apenas no futuro. Até o fato de nisto se acreditar já é uma ilusão perigosa. A oposição entre passado e futuro é absurda. O futuro não nos traz nada, não nos dá nada; somos nós que, para construi-lo, temos que dar-lhe tudo, dar-lhe até nossa vida. Mas para dar, é necessário possuir; e nós não possuimos outra vida, outro sangue, além dos tesouros herdados do passado e dirigidos, assimilados, recriados por nós. Entre todas as exigências da alma humana, nenhuma é mais vital que a do passado".



Após milhares de páginas terem sido escritas sobre a "questão iraquiana", percebo, com satisfação, os bons frutos obtidos. Diversas dimensões da questão foram alvo de cuidadosa investigação, não raro com pontos de vista conflitantes ou complementares, criando um valioso mecanismo de retroalimentação que só favorece o aclarar das questões em debate. Ciente do extenso volume de páginas já dedicadas ao tema, acrescentarei apenas mais algumas a este valioso rol, sem reafirmar argumentos já lançados, refutados ou debatidos à exaustão. Me limitarei a lançar luz sobre dois argumentos que, dia a dia, ganham (senão por seu valor, pela inércia dos fatos) adeptos e força no trato da "questão iraquiana", ambos favoráveis à pregressa invasão estadunidense. O primeiro deles: a necessidade de proteger os estados vizinhos ao Iraque (em geral, aliados do Ocidente) contra a "iminente" ameaça de Saddam Hussein, medida que também implicaria reforço da estabilidade do Oriente Médio. O segundo: as monstruosas violações dos Direitos Humanos perpetrados por Saddam Hussein tanto no plano externo quando no plano doméstico (argumento particularmente caro aos analistas ingleses), que seriam motivação cabal para o ataque ao Iraque. Tratarei ambos à luz do passado recente das Relações Internacionais, inestimável legado de qual somos herdeiros.



"Um colosso iraquiano não seria em nada melhor que um iraniano". Assim um diplomata estadunidense qualificou, na segunda metade dos anos 80, o famigerado "escândalo Irã-Contras", fato marcante da gestão de Ronald Reagan à frente do governo dos Estados Unidos. A ver: durante a guerra Irã-Iraque (1979-1988), os Estados Unidos venderam armas ao Irã para conseguir a libertação de reféns norte-americanos em poder de guerrilheiros iranianos instalados na cidade de Beirute (Líbano), então ocupada por Israel. Com o dinheiro da venda de armas (elas, curiosamente, foram entregues aos aiatolás por agentes secretos de Israel) os Estados Unidos financiaram a ação dos contra-revolucionários (Contras) na Nicarágua, opositores do regime sandinista então estabelecido naquele país. Pode-se considerar o caso Irã-Contras como o "ponto nevrálgico" do rompimento da aliança informal entre Iraque e Estados Unidos no Oriente Médio.



Sim, embora hoje tal idéia possa ensejar estupefação e incredulidade, iraquianos e estadunidenses caminharam lado a lado durante boa parte dos anos 80, para dizer o mínimo. Oásis de "modernidade" (entendida como misto de laicismo e industrialização) em meio a dúzias de monarquias absolutas por demais dependente da extração petrolífera e potenciais reservatórios de extremismo religioso, Saddam Hussein ainda acenava, para então deleitados interlocutores estadunidenses, com a possibilidade real de por fim à "gangrena" (na visão dos Estados Unidos) que poderia, em sendo triunfante, solapar os planos estadunidenses na região - a teocracia iraniana, capineada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, herdeira da Revolução Islâmica de 1979.



Nesse momento, e por alguns anos ainda, o caráter do regime iraquiano não repugnou seus aliados ocidentais (incluindo todos os europeus), tanto que a utilização de armamento químico proscrito internacionalmente, pelas tropas de Saddam, nos campos de batalha na bacia do Shatt-El-Arab (fronteira entre Irã e Iraque) passaria quase despercebida pela mídia ocidental e seria cuidadosamente abafada no plano diplomático (somente vindo à tona no início dos anos 90, coincidentemente às vésperas da Tempestade no Deserto ser deflagrada). Da mesma forma, massacres de populações curdas do norte do Iraque, inclusive alvo das já mencionadas armas químicas de Saddam, também habitaria, por anos a fio, os relatórios da Anistia Internacional, à espera de que fosse levada a cabo alguma medida no plano internacional compatível com este "crime contra a Humanidade".



Pode-se perceber, a partir da análise dos parágrafos pregressos, o caráter do relacionamento dos Estados Unidos com países ditos seus "aliados" no Oriente Médio, bem como o grau de importância que este país concede à manutenção da estabilidade da citada região. Ser "aliado" estadunidense pode não significar muita coisa num contexto no qual a manutenção de prolongada instabilidade no Oriente Médio atende plenamente os interesses mais imediatos de Washington - nem precisaríamos recorrer ao Irã-Contras para chegar a essa conclusão, bastando para tal a menção do conflito Israelo-Palestino. Adicionalmente, alianças são artefatos marcados por extrema fragilidade, num sistema onde predomina a maximização do chamado

"poder". O aliado de hoje pode ser perfeitamente o "estado pária" ou inimigo de amanhã. E vice-versa. O argumento inicial que coloquei em debate nesse artigo, portanto - o da a necessidade de proteger os estados vizinhos ao Iraque (em geral, aliados do Ocidente) contra a "iminente" ameaça de Saddam Hussein, medida que também implicaria reforço da estabilidade do Oriente Médio - torna-se dificilmente defensável.



Passemos ao segundo argumento. Não me atendo somente às violações dos Direitos Humanos cometidas pelo governo iraquiano no passado - que, pelos motivos anteriormente mencionados, permaneceram "no limbo" até que a Tempestade no Deserto tivesse início - caracterizaria a atitude não apenas de estadunidenses, bem como de britânicos, franceses e demais europeus, no plano internacional pelo menos nos últimos 15 anos, como condizente com o que Stephen Krasner caracterizou como "hipocrisia organizada". Este autor localizou o sistema internacional na confluência de duas "lógicas de ação": a primeira, uma lógica maximizadora de "poder" (ou seja, o tradicional cenário descrito pelos adeptos do Realismo Político); a segunda, uma lógica na qual os agentes internacionais agem adequando-se a normas, valores e papéis - a qual ensejaria, por sua vez, a emergência no plano internacional de termas tais como a defesa do Meio Ambiente e dos Direitos Humanos. Krasner, porém, afirma que, no "frigir dos ovos", a segunda lógica de ação acaba esvaziada de qualquer autonomia, tornando-se mais um artefato utilizado para a maximização do poder pelos agentes que predominam no sistema. Em suma, normas, valores e papéis seriam relevantes - quando a serviço dos interesses dos agentes mais dotados de recursos no sistema. Daí o nome de "hipocrisia". O qualificativo "organizada" provém da constatação de que, mais do que modificar o sistema, a segunda lógica de ação, apropriada pelos agentes mais dotados de recursos, torna-se fator perpetuador do mesmo sistema.



Recordo o quanto a retórica pró-Direitos Humanos de estadunidenses e britânicos, no tocante à questão iraquiana, choca-se com as ações dos citados governos no plano internacional, em tempos não remotos. Afinal, os EUA e o Reino Unido assinaram com Slobodan Milosevic - o proverbial "carniceiro dos Bálcãs" - o tratado de Dayton em 1995, pondo "fim" à Guerra Balcânica. Esta, posta em marcha pelo próprio Slobodan em 1991, caracterizou-se pelas maiores atrocidades vistas em território europeu desde a II Guerra Mundial - alimentadas pela virtual omissão européia em seu período mais crítico e finalmente impunes, ao ver-se consagrada "a paz" entre as potências e seu maior perpetrador, o próprio Milosevic. Este último permaneceria "em paz" no poder até que suas ações chocassem-se com interesses tidos como relevantes por Washington - deu-se então o ataque da OTAN ao Kosovo, em 1999, ironica e tragicamente justificado como "intervenção humanitária".



Recordo, ainda, que foram os Estados Unidos o principal patrocinador da retirada dos corpos de paz da ONU da fronteira entre Ruanda e Burundi em 1994 - motivado pela desastrosa incursão estadunidense na Somália, no ano anterior - quando estava claro para toda a comunidade internacional que preparava-se um evento de proporções catastróficas, que veio a ser confirmado na forma de 800 mil mortos em questão de um mês, configurando um dos maiores genocídios de que se têm notícia. Reino Unido, França e outros países europeus mantiveram novamente silêncio omissivo a respeito. Silêncio que hoje converte-se em palavras de ordem, em clamor por respeito aos Direitos Humanos. Recordem-se de que, de 1996 a 2001, as extensas violações dos mesmos Direitos Humanos ocorridas no Afeganistão sob a égide do governo Taleban passaram despercebidas pela mídia internacional e pelas salas das negociações mais relevantes em nível internacional.



Sem maiores menções ao silêncio proverbial dos Estados Unidos e da sociedade internacional quanto a massivas violações dos Direitos Humanos ocorridas em países como Turquia, Federação Russa (Chechênia), República Popular da China etc, somos forçados a concordar com o argumento de Krasner sobre a "hipocrisia organizada". Assim, percebe-se o quão estreito e falacioso é o segundo argumento que abordei nesse artigo - o de que as monstruosas violações dos Direitos Humanos perpetrados por Saddam Hussein tanto no plano externo quando no plano doméstico (argumento particularmente caro aos analistas ingleses), que seriam motivação cabal para o ataque ao Iraque. Como o primeiro, este é dificilmente defensável. Lamentável o fato de que os Direitos Humanos sejam utilizados como "carga de artilharia" na construção de uma guerra que os nega em essência. Como Simone Weil, sou tentado a dizer que teremos que dar tudo que tivermos para construirmos um futuro melhor. E, nesse caso, nada mais valioso para corrigir as miopias do presente imediato do que as valiosas lentes do passado.

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