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Artigos-->BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS -- 29/08/2003 - 00:29 (Carlos Frederico Pereira da Silva Gama) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
"A morte do fundamento é a possibilidade de liberar a Barbárie". Assim afirmou o filósofo francês Jean-François Mattéi em seu último livro, "A Barbárie Interior". O autor estabelece paralelo entre o processo de lenta absorção dos povos que habitavam além das fronteiras do Império Romano (os "bárbaros", pois) pelo citado Império e o processo de "interiorização" de impulsos destrutivos pela cultura ocidental - exemplificado em fenômenos como o Nazismo. Dessa forma, podemos definir "Barbárie" como um conjunto de impulsos destrutivos os quais são liberados, gradual ou lentamente, quando se esvai o duplo significado da palavra latina RATIO: tanto "medida" quando "Razão". Não foi sem razão que o antropólogo Clifford Geertz definiu, com muita propriedade, em seu livro "A Interpretação das Culturas", a Cultura como "conjunto de mecanismos extracorporais, simbólicos, destinados a controlar o comportamento humano". Segundo Geertz, a essência do "humano" forjou-se na confluência de um processo de evolução biológica (relativo ao aumento de volume e diferenciação funcional da caixa craniana e do sistema nervoso central) e do confronto dos "ancestrais" do Homem com o meio natural e com seus semelhantes - processo não exclusivamente mediado, mas certamente marcado pela racionalidade. Tais processos estabeleceram entre si um sistema de retroalimentação - conduzindo, eventualmente, à chamada "revolução simbólica", berço da sociedade e da civilização. Nesse sentido, o Homem foi forjado pela Cultura - um "artefato cultural". Esta, interiorizada, implica uma limitação que se impõe à própria existência humana (nas palavras de Geertz, "faz com que um ser capaz de viver milhares de diferentes vidas viva apenas uma vida, no seio de determinada cultura") - mas limitação essa, como dantes citada raiz da própria sociabilidade, da civilização. Podemos pensar assim que, uma vez rompidas as fronteiras (tanto físicas quanto simbólicas), abram-se as portas para a possibilidade da "barbarização" (não afirmo, contudo, que as culturas e civilizações não mudem - contradições, dissidências e confronto são elementos sempre presentes, o questionamento aqui é de grau - a partir de quanto desgaste dos referenciais de uma cultura é favorecido o emergir da Barbárie). No interior do chamado "processo civilizatório", portanto, encontramos um eterno movimento de contenção da Barbárie, constantemente checado e atualizado contra o pano de fundo dos desafios (sejam materiais, sociais ou históricos) que se impõe às civilizações.



Podemos transplantar o mesmo raciocínio para as Relações Internacionais? Certamente, em que pese o fato de estarmos lidando com diversas culturas e civilizações simultaneamente. O sistema internacional possui elementos capazes de ensejar uma analogia com uma "cultura" ou "civilização" - com suas instituições, sistemas de crença e autoridade, rituais, mitos e valores basilares. E como poderíamos caracterizar a Barbárie, no plano internacional? Seria o "Tânatos" do plano internacional, impulso destrutivo marcado pelo signo do excesso, restrito ao uso da força? Não traduzamos o recurso à força armada no plano internacional automaticamente como Barbárie. Como dito por Clausewitz em sua obra capital “Da Guerra”, a Guerra envolve o uso limitado da força, condicionado ainda ao objetivo político a ser alcançado. A Guerra tem sido, ao longo dos séculos, atividade humana marcada pela regulação (exemplos possíveis de serem citados: os institutos medievais da "trégua de Deus" e da "Paz de Deus", as convenções de Genebra etc.). Sejamos cuidadosos, portanto, no trato da relação entre Guerra e Barbárie. Quais exemplos podem ser arrolados como contendo manifestações desta última no plano internacional, pois?



Inicialmente, vejamos quais são os limites presentes na sociedade internacional, os quais, uma vez ultrapassados, ensejam o irromper de manifestações bárbaras. A chamada Paz de Westfália (1648), que consagrou o conceito de Soberania e deu origem a um sistema de equilíbrio entre os estados europeus, é considerada marco zero da idéia de sistema internacional – um sistema de estados soberanos contendo “regras limitadas de coexistência entre os vários estados que se traduziam em entendimentos e instituições minimalistas, planejados para restringir o conflito inevitável a ser esperado num sistema político pluralista e fragmentado”, nas palavras de Andrew Hurrell. James Rosenau caracterizou o sistema internacional daí resultante como "...sistema internacional no qual Estados nacionais soberanos, agentes exclusivos, buscavam resolver seu ‘Dilema de Segurança’ através da maximização do poder”. A Soberania é, portanto, um dos elementos basilares do sistema e certamente sua salvaguarda constitui um dos "limites" à ação dos Estados. O "Dilema de Segurança" é mais bem traduzido em termos hobbesianos: os Estados, agentes maximizadores de poder e agindo, num mundo onde inexiste um "Leviatã", no marco de seu "juízo privado", lançam-se em "ações preventivas" para promover sua autoconservação. Adotado esse curso de ação em caráter sistêmico, estar-se-ia assistindo ao deflagrar da "guerra de todos contra todos", ameaçando a própria existência do sistema internacional. Daí a necessidade de uma "blindagem" minimamente capaz de desestimular (no sentido de tornar menos freqüente ou mais "custoso") o recurso à força armada como meio de solução de controvérsias. Na atualidade essa "blindagem" corresponde às instituições internacionais e ao Direito Internacional. A manutenção dessa "blindagem" é, assim, outro elemento limitador da ação dos Estados no plano internacional. Adicionalmente, constitui limite às ações dos Estados no plano internacional uma segunda "blindagem", derivada diretamente da primeira, a qual visa salvaguardar outros agentes do sistema internacional que não os Estados. Podemos sumarizar essa segunda "blindagem" como sendo o que Cançado Trindade qualificou de "sistema internacional de proteção à pessoa humana", os Direitos Humanos em suma, tomados num sentido amplo (capaz de englobar questões ligadas, por exemplo, ao Meio Ambiente).



Uma vez claros os limites dentro dos quais se passa a chamada "vida internacional", podemos compreender o que seja a Barbárie no plano internacional. Não podemos, ressalvo, confundi-la com a simples violação de um desses limites - o caráter EXCESSIVO, desmesurado, da ação, torna-se elemento essencial. Quais violações da Soberania, do Direito Internacional, dos compromissos assumidos para com as Instituições Internacionais e dos Direitos Humanos estariam inclusos? Retomemos a frase de Mattéi: "A MORTE DO FUNDAMENTO é a possibilidade de liberar a Barbárie". Busquemos separar, através de um exemplo, o domínio da Barbárie, fenômeno extraordinário, do da violação de uma norma, que pode ser dito um fenômeno ordinário. Antes da Primeira Guerra Mundial, pelo menos na Europa, as guerras não enfocavam o ataque a civis (conquanto tenhamos notícia de que isso ocorreu com certa freqüência). Tinha-se como um princípio basilar da solução de controvérsias no "concerto europeu" a separação entre a população combatente e a não-combatente. Uma série de eventos que datam, pelo menos, da Revolução Francesa, tratou de diluir as fronteiras entre as "populações" - um dos elementos foi o conceito de "mobilização total". Já em 1914, ao morticínio dos campos de batalha, somava-se o morticínio de civis, em número bastante superior ao dos militares. Uma vez dissipado esse limite (no caso, simbólico, moral até), tornaram-se rotineiros os massacres a populações civis durante as guerras, culminando em eventos que poderíamos, mesmo dentro desse contexto macabro, considerar como excepcionalmente hediondos, tais como os perpetrados pelos nazistas na II Guerra Mundial (em especial o Holocausto), concentrados no tempo, merecedores do epíteto "Barbárie". Esta não distingue vencedores e vencidos - atos praticados pelos soviéticos contra os alemães, quando da "virada" da Guerra a partir de 1943, também são merecedores do rótulo (para não mencionar o que fazia Stálin no plano doméstico). Tanto as atrocidades cometidas pelos ocupadores japoneses no Sudeste Asiático quanto o ataque nuclear norte-americano a Hiroshima e Nagasáki são fenômenos que podem ser cobertos pelo mesmo "manto" conceitual. Cientes desse exemplo, podemos arrolar algumas das manifestações da Barbárie que tiveram lugar nos últimos anos no plano internacional: as atrocidades ocorridas no conflito da desintegração da Iugoslávia (herdeiras, em grande parte, dos horrores das Guerras Mundiais que tiveram alguns de seus "lances" mais dramáticos nos Bálcãs), o genocídio que marcou a guerra civil em Ruanda e Burundi, as degolações e mutilações em massa ocorridas na guerra civil em Serra Leoa etc...E, finalmente, os ataques terroristas aos Estados Unidos ocorridos em 11 de Setembro de 2001.



Faço menção conclusiva, especial, ao 11 de Setembro, não para simplesmente caracterizá-lo, mas para remeter aos fatos que o motivaram (seguindo a definição de Barbárie que estruturamos nos parágrafos anteriores), ou seja, reconstituindo um contexto de seguido desgaste, por violações contínuas, dos limites impostos à ação estatal no plano internacional - e avaliando os riscos futuros deste contínuo desgaste. Tivemos, nos anos 90, ações lançando mão da força armada em conformidade com as instituições e o Direito internacionais, como igualmente tivemos ações que ocorrerem à margem dos citados elementos. Ações como o ataque da OTAN ao Kosovo em 1999, por mais nobres que tenham sido os princípios (humanitários) arrolados como seus motivadores, colaboraram para certo descrédito das instituições internacionais (Conselho de Segurança da ONU) e certamente para extensos debates acerca da eficácia do Direito Internacional. Os fracassos das missões de Paz da mesma ONU em países como a Somália, a quase omissiva postura da sociedade internacional nas guerras da Iugoslávia e Ruanda-Burundi não fizeram mais que aprofundar essa tendência, adicionando ao "rol de desgaste" severíssimas violações aos Direitos Humanos. Ainda, assistimos a uma extemporânea corrida nuclear no Terceiro Mundo, presenciamos com frustração o prolongamento da "questão palestina-israelense" numa espiral de tensão e desolação (motivada, ainda que não exclusivamente, pela postura ambígua da sociedade internacional quanto à questão, municiando ambos os lados envolvidos para que estes se engajassem em atos que beiram a Barbárie - e nada indica que isso vá mudar), assistimos a uma escalada de ataques terroristas em âmbito global. Tudo corre para ensejar, favorecer, o irromper do "Tânatos" no plano internacional.



Hoje, vivemos a angústia dos momentos que se seguiram o ataque estadunidense contra o Iraque, apenas frouxamente baseado no Direito Internacional e contrário à posição das Nações Unidas e da expressiva maioria de seus membros, estejam ou não no Conselho de Segurança. Pode-se antever grande devastação continuada no campo dos Direitos Humanos (restrito ao povo iraquiano, como em 1991). Pergunto aos senhores: é essa a resposta que o presidente George W. Bush (secundado, em clima de "ópera bufa", por Tony Blair, que anda fora de sintonia até com os espiões britânicos, escaldado pela morte de David Kelly) e o povo estadunidense querem dar aos "artífices do Terror" no pós-11 de Setembro (como os "bárbaros" na época do Império Romano, eles já foram - e serão - um dia aliados)? Munição para mais e mais Barbárie no plano internacional? Mais descrédito para os elementos basilares da "vida internacional"? Motivações mais e menos nobres (que vão desde a deposição de um tirano sanguinário para pacificar um país e uma região ao controle da segunda maior reserva petrolífera do mundo) caem por terra, quando se percebe que o remédio dos "falcões" de Bush terá (já está tendo, de resto) gosto amargo não somente para o Iraque, mas potencialmente para toda o sistema internacional, num momento posterior. Que a Civilização possa continuar a controlar a Barbárie. Que os elementos disjuntores do sistema internacional sejam progressivamente incluídos. Que haja RATIO! Entretanto, até mesmo no continente que deu origem aos conceitos de "Paidéia", "Logos", "Cogito" poucos seguem os Estados Unidos rumo às “cruzadas civilizadoras”. "Artefatos culturais" que somos, prezemos nossos limites. Cada vez mais, porém, somos invadidos pelo sentimento do temor futuro - cada vez maior e menos futuro...

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