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Artigos-->Michelangelo e as Organizações Internacionais -- 28/08/2003 - 00:24 (Carlos Frederico Pereira da Silva Gama) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Há um conhecido ditado popular segundo o qual “a Vida imita a Arte”. A analogia seria válida para as Relações Internacionais? Não se trata de abordar a “arte da Negociação” ou algo da mesma cepa. Através de um exemplo artístico, buscarei evidenciar algumas das características mais fundamentais das chamadas Organizações Internacionais, elementos tão importantes do nosso campo de estudo.



Corria o ano de 1504. Michelangelo Buonarrotti acabara de desvelar aos olhos embasbacados do mundo os monumentais painéis do teto da Capela Sistina, no Vaticano. Fizera, anteriormente, obras do mesmo brilhantismo (as esculturas Pietá, Davi e Moisés). Consagrado ainda em vida gênio da Renascença, como seu rival e desafeto Leonardo da Vinci, Michelangelo, aos 37 anos, recebia das mãos do virtual governante da Europa cristã, o Papa Júlio II, seu desafio mais vultuoso: edificar o mausoléu do próprio Papa. Júlio II, visando coroar um papado de conquistas (militares, especialmente) com uma nota de destaque na posteridade, deu total liberdade ao gênio, além de disponibilizar todos os recursos financeiros necessários, bem como a colaboração dos artistas e técnicos mais capacitados da época. Tratava-se, parafraseando um presidente norte-americano séculos depois, da “mãe de todas as obras”.



As expectativas do artista (bem como as do Papa e da população de Florença) se elevavam dia após dia, com a chegada de novos e mais nobres materiais e de artistas de relevo para a feitura da obra. Michelangelo queria a grandiosidade das construções da Roma Imperial, uma obra enfim que coroasse definitivamente seu gênio. Os artistas convidados, renome. A população, status privilegiado diante dos rivais milaneses, donos que os primeiros seriam do maior e mais importante monumento da Cristandade européia ä época. . Não é necessário repetir o intento de Júlio II. Imaginou-se que todos esses interesses eram não só compatíveis, como contribuiriam para o sucesso da empreitada. Porém...



As coisas não correram como de previsto. A megalomania do projeto esgotou as previsões mais otimistas de recursos necessários para sua conclusão. Os artistas convidados, vindos de toda a Europa, defendiam estratégias as mais diversas e conflitantes, bem como queriam incluir elementos artísticos provenientes de culturas distintas no projeto. De certo momento em diante já não falavam “a mesma língua” e necessária seria a intervenção de Michelangelo, resolvendo a questão ao conferir unicidade e decisão ao projeto. Este, por sua vez, tentou agradar a todos, conciliando e incorporando todas (!) as sugestões feitas, ou seja, não exerceu sua necessária liderança, contribuindo para o atravancar do processo. Não será leviano ressaltar que as vicissitudes da política florentina e da Península Itálica à época tiveram grande impacto na realização do projeto. Recursos que seriam destinados para o projeto eram remanejados conforme a vontade dos mandatários de então, através de cobrança de favores prévios prestados ao Papado. A população identificava os artistas e Michalangelo como responsáveis pelo atraso das obras e queria Ter voz ativa no processo. Revoltas populares, guerras de conquista por parte de Espanha e França e a própria disputa pela hegemonia das cidades-estado itálicas entre Veneza, Milão e Florença colocariam assim a “pá de cal” nos planos de conclusão do mausoléu no prazo de 5 anos. A todos esses problemas viria juntar-se, em 1512, a morte do próprio Júlio II, ficando Michelangelo comprometido a terminar o mausoléu o quanto antes perante os familiares do falecido. Depois de ainda muitas outras adversidades, o mausoléu de Júlio II foi entregue por Michelangelo à família do falecido Papa em...1549. Quase 50 anos e dois outros Papas depois. O monumento entregue, muito mais modesto, era completamente diverso do projeto original...Os familiares, porém, mostraram-se agradecidos.



O que a experiência de Michelangelo no século XVI pode nos dizer sobre as Relações Internacionais hodiernas e, mais especificamente, sobre as Organizações Internacionais? Vejamos então. Organizações Internacionais (daqui em diante referidas como “OIs”) são “associações voluntárias de Estados, estabelecidas por acordo internacional, dotadas de órgãos permanentes, próprios e independentes, encarregadas de gerir interesses coletivos e capazes de expressar vontade juridicamente distinta da de seus constituintes” . Surgiram no século XIX, sendo herdeiras de um longo e gradual processo de concertação estatal (em âmbito europeu) que remonta ao Tratado de Westfália (1648), para muitos o marco fundacional do próprio sistema internacional, assumindo uma série de funções de caráter técnico (Organização Internacional do Trabalho, União Postal Universal etc.) ou político. Muito do que se analisa no campo das Relações Internacionais desde então está relacionado com o trabalho das OIs, especialmente com as de cunho político, dentre elas sendo a mais relevante a Organização das Nações Unidas (ONU).



Como analisamos as OIs através do “caso Michalangelo”? Vejamos. As OIs, como o mausoléu de Júlio II originalmente, tiveram como nascedouro um conjunto de sucessos prévios (respectivamente, a concertação estatal cada vez mais aguda e as obras que deram fama a Michalangelo). Nesse sentido, mais que elementos criadores, OIs e mausoléu são elementos consagradores, pontes entre seus criadores e a “apoteose” do sucesso definitivo ainda em vida. Foram projetos eivados de imensas expectativa e esperança (nas palavras de David Mitrany, a Paz seria alcançada através das OIs de caráter técnico, ä medida que estas questões substituiriam em importância as querelas de segurança entre os Estados; para autores chamados Institucionalistas, as OIs seriam mecanismo capaz de evitar as guerras e criar cooperação e harmonia internacional duradouras). A Carta da ONU inicia-se com menção ao desejo de “salvaguardar as gerações vindouras do sórdido flagelo da guerra...”. A “construção” de uma OI é um empreendimento que demanda, por um lado, a participação de agentes (Estados) os mais diversos (cada um com suas idiossincrasias e com um conjunto particular de capacidades de poder) e, por outro lado, um extenso conjunto de recursos para sua efetivação e manutenção. Tais recursos provêm dos próprios agentes constituintes das OIs – os estados.



Recobremos à memória a trajetória histórica de diversas OIs, tais como a ONU, a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a União Africana (UA - antiga Organização da Unidade Africana, OUA). Seus “pais fundadores”, depositários das esperanças de suas nações, almejavam futuro muito distinto para seus recém-criados “artefatos de cooperação internacional” do que o futuro lhes reservaria. Como imaginar em 1945 que a ONU teria um de seus mais importantes órgãos, o Conselho de Segurança, virtualmente paralisado por 46 anos devido ao confrontamento Leste-Oeste centrado nas superpotências? Como imaginar que a OUA, longe de fortalecer a união dos estados e nações africanos, seria palco para disputas de poder entre regiões (Norte islâmico X África negra animista, só para citar um exemplo) e estados filo-hegemônicos – África do Sul na época do Apartheid, Nigéria, Zaire (atual República Democrática do Congo) e o Egito de Sadat e Nasser (este último líder parece ter buscado refúgio seguro nas páginas de O Debatedouro!). Saberiam os fundadores da OEA que esta adotaria políticas diametralmente opostas no trato a Estados cujas ações no plano hemisférico eram similares (Cuba de Fidel Castro e as ditaduras latino-americanas dos anos 60 e 70)?



Intuição acerca das causas do descolamento entre o futuro planejado e o que realmente tivemos para as OIs já deve, nesse momento, ser do conhecimento dos caros leitores (e também seria de Michelangelo, estivesse ele a utilizar a barra de rolagem do seu navegador nesse momento): impossibilidade total ou parcial de atender aos objetivos da OI no curto prazo, por serem estes “megalomaníacos”; problemas financeiros (recursos insuficientes somados a “chantagem” de estados que sejam grandes contributores da OI em questão, ao sabor das querelas políticas correntes); dificuldade de harmonizar interesses os mais diversos e culturas as mais variadas; dificuldade do exercício da liderança nas OIs (seja pelos funcionários que a administram, seja pelos estados preponderantes); demandas de participação por parte da “sociedade civil” (adentramos aí o campo da Governança Global e entram no jogo ONGs e corporações transnacionais, complicando ainda mais a história). Acima de tudo, disputas políticas, as mais variadas, aquecem o já complicado cadinho das OIs. Estas, como o mausoléu de Michelangelo, tornam-se retrato fiel da conjunção e sobreposição de todos estes empecilhos e acabam produzindo resultados muito diferentes dos que foram aventados quando de sua criação.



Feita esta análise, pode-se aventar uma conclusão que não deve ter sido alheia à mente de Michelangelo ao longo de 45 excruciantes anos de construção do mausoléu: vale a pena continuar? Creio que seja difícil, para nós, uma resposta diferente de um “SIM”. O elemento fundamental para esta resposta: não somos apenas os familiares de Júlio II, espectadores passivos, ainda que apaixonados na nossa torcida pela conclusão do mausoléu e inabaláveis na nossa certeza de que esse fim pode ser obtido. Somos os próprios construtores! Seja como analistas, profissionais de Relações Internacionais, Economia, Direito etc., estudantes ou simplesmente...cidadãos interessados, do nosso país que participa de diversas OIs e do mundo (tese polêmica que adoto aqui num sentido bastante amplo e de forma abertamente provisória). Deixo claro que o “SIM” não é categórico. Como todos os artefatos sociais, humanos, as OIs são limitadas e não respondem 100% eficientemente às tarefas que lhe são designadas. Pode-se descobrir no futuro mecanismos mais eficientes que as OIs e estas, assim, cessarão de existir por completo em algum momento. O importante, nesse processo de construção contínua das instituições internacionais, é buscar contribuir de todas as formas para que tenhamos OIs mais capazes de responder aos desafios de nossa época. Miremo-nos no exemplo de Michelangelo Buonarrotti, ainda que o horizonte temporal no caso das OIs seja deveras mais dilatado. Um dia poder-se-à dizer, com toda a propriedade: “está pronto”. Agradecidos estaremos todos nós e boa parte da Humanidade, a despeito da demora. Na construção do mausoléu (internacional), remontando a uma propaganda da Anistia Internacional, “cada martelada, e não somente a última, é decisiva – o que seria da centésima martelada sem as 99 anteriores?”. Sejamos, portanto, além de espectadores, artistas – da vida internacional.

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