Por achar que tem tudo a ver conosco, nós, os "buscadores da palavra" que se cruzam neste site literário usinadeletras , tomo a liberdade de inserir abaixo um e-mail recebido do poeta Ademir Assunção, seguido de uma longa entrevista que ele concedeu, por ocasião do lançamento de "Zona Branca", sua obra mais recente, ao jornal O TEMPO, de Belo Horizonte.
Meus caros: como é algo realmente raro a grande imprensa abrir generosos espaços para a poesia, ainda mais para poetas contemporâneos -centenários é o que não falta!!!), resolvi enviar esta matéria que saiu no jornal O TEMPO, de Belo Horizonte, sobre o lançamento do meu "Zona Branca". Para variar, os jornais fora do eixinho Rio-Sampa continuam bem mais rápidos no gatilho. Desculpem a auto-divulgação. Encarem como mais
um gesto de guerrilha cultural (que não tem prazo para cessar-fogo). Sangue quente e inquietação a todos.
["Com Zona Branca , poeta reafirma o caráter radical de seu trabalho."
(Ricardo Aleixo)]
Mesmo que deformadores de opinião — como alguns membros do baixo clero acadêmico e certos resenhadores reincidentes nos grandes jornais —
continuem a diagnosticar o "estágio terminal" da poesia brasileira, ela dá, aqui e ali, sinais de que vai bem, resistindo, inventando moda e botando banca, toda prosa. Ademir Assunção, paranaense de Londrina, da safra de 1961, radicado em São Paulo, é um dos nomes que não se pode deixar de citar quando se fala da produção atual da poesia de poesia no Brasil. Não bastasse o impacto de sua arte engenhosa, cheia de som,
imagens vertiginosas ("sim, chegamos à beira do penhasco/ cego sem asa-delta") e fúria, Ademir tem tentado botar lenha na fogueira do débil
debate estético-cultural brasileiro, através de artigos esparsos — não raro, propensos à polêmica —, e principalmente, da excelente revista
"Medusa", do Paraná, que edita, ao lado dos poetas Ricardo Corona e Rodrigo Garcia Lopes.
Como poeta, Ademir Assunção situa-se entre os que, sem renegar as conquistas das vanguardas, dedicam-se à exploração de possibilidades
ainda não esgotadas da escrita em versos e à utilização criativa do patrimônio textual das culturas extra-européias — com sua rítmica e sua
imagética exuberantes. Na prosa, ele é autor de "A Máquina Peluda", que define como um licro "radicalmente antropófago" (que "come o que vê e devolve uma imagem às vezes zombeteira, às vezes apavorante, de uma sociedade alucinada"), e "Cinemitologias", no qual se apropria da
mitopoética de diversas culturas e de "imagens de sonhos, através de uma linguagem cinematográfica". O procedimento utilizado na composição de "Cinemitologias" serviu, também, como base para a elaboração de muitos dos poemas do recém-lançado "Zona Branca" (Ed. Altana), que tem programação visual assinada por Sebastião Nunes.
Esse fato, que nada tem a ver com "apadrinhamento", como é tão comum por aqui, já diz muito de um livro e de seu criador, nessa terra onde todos os dias se vê, em plena ação predatória, "tanto negócio e tanto negociante", como diz o verso de Gregório de Mattos usado como epígrafe do belo "Anti-Ode Aos Publicitários (De Um Guerrilheiro Morto Em Combate)", poema que começa assim: "querer eu quero/ que vocês morram//
sufocados em nuvens/ de inseticidas// talvez limpóis, bombris/ e bemdefuntos".
A pretexto do lançamento de "Zona Branca" — título extraído da ópera-rock "Joe s Garage", de Frank Zappa — conversei por email com o poeta. Confira.
O TEMPO - Ademir, como você situa "Zona Branca" em relação a "LSD Nô", seu primeiro livro de poesia?
ADEMIR ASSUNÇÃO - "Zona Branca" representa um adensamento da minha linguagem e um mergulho no inconsciente coletivo. O livro está cheio de
imagens estranhas, mitológicas, trazidas dos sonhos e do cinema. O que chamamos de "realidade" acaba limitando demais a nossa percepção. Estou
interessado em explorar outros níveis de consciência e penso que isto está bem evidente no livro. No "LSD Nô" essa atmosfera onírica e
cinematográfica já aparecia, mas ainda um tanto tênue. O que saltava mais aos olhos era a musicalidade das palavras e dos versos. É que minha poesia, em suas origens, está mais ligada à guitarra elétrica de Jimi Hendrix, ao silêncio zen e aos tambores dos terreiros negros do que aos
versos de Drummond, Bandeira e Mário de Andrade.
O TEMPO - Fale um pouco sobre suas incursões pela narrativa, com "A Máquina Peluda" e "Cinemitologias".
ADEMIR ASSUNÇÃO - Em "A Máquina Peluda" tentei explorar os limites da ficção e da realidade na era da comunicação de massas. Resolvi fazer uma
mixagem de personagens reais, como Pero Vaz de Caminha, Roberto Marinho ou Caetano Veloso, com personagens de outros livros e de desenhos
animados, como a Escrava Isaura, Pernalonga e os Piratas do Capitão Gancho. Não é assim que vemos o mundo através da televisão? No grande processo de manipulação criado diariamente pela comunicação de massas, Delfim Neto passa a ser tão fictício quanto Mickey Mouse e Pernalonga
tão real quanto Caetano Veloso. Penso que "A Máquina Peluda" é um livro radicalmente antropófago: come o que vê pela frente e devolve uma imagem às vezes zombeteira, às vezes apavorante, de uma sociedade alucinada.
"Cinemitologias" é outra coisa: trabalhei com mitos de várias culturas, inclusive indígenas, e imagens de sonhos, através de uma linguagem
cinematográfica. De certa forma, o livro é um laboratório para muitos poemas do "Zona Branca".
O TEMPO - Você é dos poucos, na nossa geração, que propõe um debate que vai além do estético, ou que, por outra visada, tenta ampliar o campo de
significados do "estético". Como você avalia o momento atual da poesia e da cultura no país? Estamos, mais uma vez, perdendo "o bonde e a
esperança"?
ADEMIR ASSUNÇÃO - Não penso que estavamos vivendo um vazio cultural. Não concordo com a idéia de que tudo aconteceu no passado. Há excelentes
poetas, compositores, dramaturgos, atores, produzindo hoje. A caldo artístico é rico e diversificado. A difusão é que é medíocre. Não existe uma política séria de formação de leitores nas universidades, nas escolas de segundo grau, nos canais de comunicação. Imagine se tivessemos um ótimo programa de poesia e literatura na televisão, se os jornais realmente se interessassem em se abrir para a cultura viva,
inquieta, instigante que vem sendo produzida. Mas a grande indústria está mais interessada na vulgaridade, na burrice e no conformismo do
baixo consumo. É a lógica do capitalismo selvagem que estamos vivendo: emburrecer as pessoas e ganhar muito dinheiro.
O TEMPO - Falemos da "Medusa". Qual é o saldo da experiência da revista, de pois de 10 números publicados?
ADEMIR ASSUNÇÃO - O saldo foi mostrar que havia muito mais arte, poesia e cultura entre o norte e o sul, o leste e o oeste, do que supunha a vã
filosofia dos lobbies universitários e jornalísticos. Pautamos o trabalho na "Medusa" por dois eixos principais: mostrar riqueza e
densidade cultural e lutar contra o conformismo.
O TEMPO - A experiência de edição da revista te colocou em contato com poetas do Brasil inteiro. São Paulo e Rio continuam a dominar a cena (em
termos tanto de concentração de "vocações poéticas" quanto de política literária), ou a grande mídia continua a comer mosca quanto ao que se passa nos demais centros?
ADEMIR ASSUNÇÃO - A grande imprensa do eixo Rio-São Paulo ou está totalmente desinformada ou pratica uma espécie de censura branca. Mas
existem jornalistas que estão começando a perceber que a cultura brasileira é muito maior do que a sopinha rala que aparece nos cadernos
culturais.
O TEMPO - Voltando à sua poesia, seus textos sempre remetem à música, enquanto tema e também enquanto meta, parece. Procede?
ADEMIR ASSUNÇÃO - Sim. Procuro manter sempre na mira o pensamento de Niesztche em relação à poesia: "A música mágica e a conjuração parecem
ter sido a forma primitiva e a origem de toda a poesia. O homem acostumou-se durante milênios com a conexão do idioma com o ritmo da música. O poder mágico da dicção rítmica tem sido paulatinamente esquecido. Distanciamo-nos cada vez mais de nossas origens". Eu tento resgatar essa dicção rítmica. Quero uma poesia que seja capaz de "chamar o santo".
O TEMPO - Você toca algum instrumento ou canta? Nas parcerias com Itamar Assumpção, Edvaldo Santana, Madan e outros, você cria textos
especialmente para serem musicados ou eles trabalham a partir de material já pronto?
ADEMIR ASSUNÇÃO - Sei tocar meia dúzia de canções no violão, e muito mal. Canto apenas no banheiro. Mas tenho um ouvido bastante musical. Gosto tanto da música dos pigmeus, quanto de Hermeto Pascoal, Miles Davis, Stravinski e Frank Zappa. Quanto às minhas parcerias, a maioria são poemas que acabam se transformando em canções. Tenho uma parceria
com Itamar Assumpção que é muito curiosa. Ele conseguiu transformar um haicai em música. Talvez seja uma das canções mais curtas da música popular brasileira.
O TEMPO - O cinema também é um elemento bastante presente em seus trabalhos. Você tem muitos poemas que remetem a filmes, e a própria estrutura textual (a imagética, sobretudo) deve algo ao cinema. Comente isso.
ADEMIR ASSUNÇÃO - Cinema é poesia em movimento. "Ran", de Akira Kurosawa, ou "O Livro de Cabeceira", de Peter Greenway são tão impressionantes quanto "O Barco Bêbado", de Rimbaud ou a "Divina Comédia", de Dante. Acredito que o imaginário contemporâneo está contaminado pela cultura cinematográfica, assim como os povos ancestrais se nutriam das mitologias. Na minha poesia, procuro ir além da referência aos filmes que mais gosto. Tento incorporar elementos da
linguagem do cinema, como cortes bruscos, sequências, closes, panorâmicas. É claro que a escrita é bastante limitada neste sentido. Mas é possível conseguir resultados animadores.
O TEMPO - No plano temático, você tem trabalhado com as mitopoéticas extra-européias. Dá para dizer que essa é uma tendência que se abre na
poesia brasileira contemporânea, já que muitos outros poetas também vêm se dedicando a incorporar a seus projetos as textualidades e
procedimentos africanos e ameríndios?
ADEMIR ASSUNÇÃO - Antonio Risério e você fizeram um trabalho impressionante com os orikis africanos. Josely Vianna Baptista, no Paraná, e Douglas Diegues, no Mato Grosso do Sul, vêm trabalhando há anos com narrativas tupi-guaranis. Mas a grande maioria dos poetas brasileiros ainda não percebeu a riqueza das nossas culturas ancestrais. Oswald de Andrade, ao contrário, vivia repetindo no final da vida: "salvem os índios; eles são verdadeiras bibliotecas vivas."
O TEMPO - Uma velha pendenga: jornalismo e literatura. Uns dizem que o primeiro inibe a segunda. E há quem diga que o "jornalário" ensina a disciplina necessária à criação. De que lado você samba?
ADEMIR ASSUNÇÃO - O jornalismo contribui muito na minha disciplina criativa. Mas é que eu sou apaixonado pela escrita. Sempre encarei o
jornalismo com paixão, e não apenas como profissão. Hoje, não tenho mais saco de trabalhar diariamente em uma redação. O jornalismo se
burocratizou demais. Está muito chato. Se aparecesse algum caderno cultural em que se pudesse exercitar a criatividade e a ousadia, aí sim, acho que voltaria.
O TEMPO - "Paulo Leminski é o poeta mais intenso que já conheci", disse você a Toninho Vaz, em depoimento publicado no livro "Paulo Leminski, O
Bandido Que Sabia Latim". Queria que você falasse do impacto da presença do "cachorrolouco" na sua vida e no seu trabalho.
ADEMIR ASSUNÇÃO - Leminski não fazia poesia apenas. Ele era poeta. Em tempo integral. Vivia poesia. Na minha opinião, descendia da linhagem
direta de Bashô e Rimbaud. Aprendi muito com ele. Cada conversa era uma aula viva de poesia. Com Leminski percebi definitivamente que a poesia é
uma das brincadeiras mais sérias que um ser humano pode cultivar.