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Contos-->Kehba -- 14/08/2001 - 04:19 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
[conto de Peter Bichsel, incluído em "Zur Stadt Paris", 1983; trad.: zé pedro antunes]
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No norte do Alasca - na neve, eu imagino - um jovem esquimó encontra algumas poucas páginas de uma revista antiga. Faltam o título e o final daquele artigo. Mas as poucas linhas que ele lê, mais as duas fotografias, são o bastante. Trata-se de uma reportagem sobre travestis em Nova Iorque. Fica muito surpreso de que existam essas coisas, e guarda aquelas poucas páginas. Ele mesmo: é um homem.

Meses depois, só então, põe-se a caminho da cidade - pela neve e a pé, eu imagino, sempre pela neve, até chegar a Nova Iorque.

No bar, a mulher a meu lado não é bonita, mas feminina. Um pouco arredondada - é o tratamento com os hormônios, ela me diz -, o rosto largo e um tom grave na voz. Usa ali no escuro um raibã barato de plástico com o aro vermelho. Como todo mundo por aqui a estas horas, está bêbada, porém de maneira alguma estridente e desarticulada feito um homem, antes cansada como uma mulher. Bonita ela não é, mas eu gosto dos ossos largos que ela tem no rosto quase sem maquiagem. Ao perceber que me chama a atenção, põe-se a dizer algo. Num primeiro momento, tento atribuir aos meus parcos conhecimentos do inglês a impressão de tê-la ouvido dizer: "Eu sou um homem". Não comento com ela o meu suposto mal-entendimento, mas ponho-me sorridente à idéia de ter entendido que ela seja um homem, e mais feminina ainda ela agora me parece – por certo terá filhos, e certamente lutará com dificuldades, ou não será lá muito bom o emprego em que trabalha, ou ambas as coisas juntas. Lá fora já clareia, e ela repete a frase por mim mal-entendida tantas vezes, até que eu me vejo obrigado a ter certeza de não tê-la entendido errado: "Eu sou um homem." "Não, você não é um homem", eu digo, "você é uma mulher bonita", eu insisto. "Eu não sou bonita", ela diz, e isso ela não diz como o diria uma mulher bonita. Ela não é bonita. "Mas eu gosto de você", eu digo.
Levanta-se, põe-se a abrir a calça, e esse movimento de abrir a calça é o primeiro e único movimento masculino que eu consigo descobrir nela. Ei-la, uma mulher a abrir a calça como um homem costuma fazer. E, pendurado entre as pernas, bem pequeno e encolhido – o tratamento com hormônios, ela diz -, o que fica pendurado entre as pernas dos homens. Fecha a calça, e novamente é uma mulher.
Chama-se Kehba Comming. É o que ela escreve num pedaço de papel amarelo escuro que estava por ali: "Kehba Comming, 472 West 51st Street, apartment BN."

Kehba Comming não é o nome do homem que descansa bem lá no fundo dentro dela. É o nome da mulher que me conta um dia ter sido um homem no Alasca.

Guardo o bilhete amarelo escuro. Lisonjeia-me o fato de que tenha-me passado o endereço. Talvez goste de mim. Digo-lhe que espero que nos vejamos outra vezes. Em seguida, recolho o troco do balcão e dirijo-me até a saída. Mas paro na soleira da porta, e espero, e volto mais uma vez. "Gostaria que me perdoasse”, eu lhe digo, "eu hoje te fiz foi um interrogatório. Espero não tê-la molestado com tantas perguntas. Mas eu queria saber só mais uma coisa: “Sim", ela diz. "Você é feliz?”, eu pergunto. "É o que todo mundo pergunta", ela responde, "mas eu não queria ser feliz, eu só queria ser uma mulher. Vocês, homens, não entendem essas coisas."

Queria oferecer a ela algo de bom, quando eu lhe disse: "eu te amo". E saí.
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