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Contos-->Último dia -- 02/08/2001 - 08:03 (Manoel Carlos Pinheiro) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Último dia (*)

Naquele dia de outubro de 1950 o Recife estava estranhamente cinzento e soturno. A notícia logo se espalhara. Como e por quais meios, ninguém jamais saberá. O fato é que todos, ao mesmo tempo, tiveram conhecimento da morte do Mestre. Talvez por isto a tristeza e a melancolia pairassem no ar sufocante, resultado do tempo mormacento. Outra grande perda, pois em maio (uma semana após o centenário do Teatro Santa Isabel) já falecera Mário Sette, um baluarte da cultura pernambucana.

Rapidamente organizaram o velório, o mais concorrido de que se teve notícia até então. As pessoas chegavam a pé, a cavalo, de charrete e, até mesmo, de automóvel. O constante movimento fazia crescer, cada vez mais, a já inacreditavelmente imensa multidão. Vinha gente de todo lugar: Iputinga, Afogados, Casa Forte, Alto do Pinho, Cajueiro, Apipucos e Beberibe; até mesmo de Moreno, Maria Farinha, Jaboatão, Itamaracá, Camaragibe, Tejipió e Aldeias. Havia todo tipo de gente: homens e mulheres; idosos e jovens; pobres e ricos; simples e sofisticados; famosos e anônimos.

Pernambuco inteiro queria homenagear aquele que revolucionara o frevo e que, tão repentinamente, partira. O Mestre conquistara o respeito, a admiração e a estima de todos que, de uma forma ou de outra, acompanharam a sua trajetória. Tornara-se uma legenda e, nas duas últimas décadas, consagrara-se como o mais popular compositor de frevos de rua. Formara escola, com inovações estilísticas adotadas pelos novos e talentosos compositores: Capiba, Nelson Ferreira, Duda, Senô e tantos outros, os quais, juntamente com o povo na rua, os passistas, os músicos, os admiradores, deram-lhe o título de Mestre, mais que maestro, compositor ou arranjador: o professor, na música e na vida, um exemplo a ser seguido.

Como em todo velório, as conversas eram sobre os mais variados assuntos. Houve até quem dissesse que a tristeza pela perda da Copa do Mundo o deixara acabrunhado e que seu coração não resistira, mas quem convivia com ele sabia não ser verdade.

Entre tantas personalidades, como era de se esperar, destacava-se Mário Melo, o qual ostentava o título, não de Presidente do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco, de menos valia naquele ambiente, mas o de fundador da Federação, além de Presidente de Honra das principais agremiações carnavalescas pernambucanas. Centro das atenções, Mário Melo passava de um a outro assunto. Ora tratava das semelhanças e diferenças entre um maracatu rural e um maracatu nação. Ora do Santa Cruz e da importância de Lacraia, primeiro atleta negro pernambucano, desde o primeiro time tricolor, em 1914. Também falava de política: comentou que o General Abreu e Lima não se encontrava neste cemitério pois o seu enterro foi proibido em solo pátrio, estando do outro lado da rua, naquele outro cemitério, o dos ingleses, na época considerado solo estrangeiro. Havia quem não conhecesse a história de Abreu e Lima. Com sua característica e natural simplicidade, Mário explicou que ele comandara exércitos libertadores ao lado de Bolívar e outros heróis latino-americanos.

Finalmente, chegou a triste hora do enterro. Prantos e mais prantos. Uns choravam silenciosamente, alguns um choro abafado, outros choravam abertamente, mas havia aqueles que apenas marejavam a dor. Começou a lenta e penosa caminhada quando o inusitado ocorreu. O Mestre sentou-se no caixão. Foi um alarido: gente a gritar e a correr para todo lado. O Mestre, aturdido, ainda com algumas flores sobre o corpo, nada entendia. Os que permaneceram próximos ajudaram-no a se levantar e a sair do caixão. Um médico explicou: “foi um ataque de catalepsia”. Catalé o que? Pronto. A notícia ganhou asas outra vez. O Mestre ressuscitou, está vivo! O Mestre teve um ataque de catalé-sei-lá-o-que, está vivo! O Mestre vivo! Para o resto de seus dias carregou o apelido de Mestre Vivo.

Ali mesmo começou a comemoração. Os poucos barezinhos não comportavam a multidão que se espalhava pelas ruas adjacentes. Muita Monjopina e Serra Grande, chambaril e caldinho, não faltou o tradicional bate-bate. E o frevo comendo solto.

Num certo momento, o Mestre começou a rabiscar umas cifras. Depois, mostrou a um excepcional requintista, o qual, enquanto lia, meneava a cabeça em sinal de aprovação. O papel de embrulhar pão circulou entre alguns músicos. Os músicos de bloco (instrumentos de pau e corda) guardaram os seus bandolins, violões, etc. Apenas os tocadores de frevo de rua começaram a organizar uma verdadeira orquestra, completa, com trinta e seis músicos: uma requinta em mi bemol, cinco clarinetos em si bemol, dois saxofones-alto em mi bemol, dois saxofones-tenor em si bemol, sete trompetes em si bemol, dez trombones em dó, duas tubas em mi bemol, uma tuba em si bemol, um bombardino em dó e a percussão: uma caixa-clara, uma caixa-surda, um pandeiro, um reco-reco e um ganzá.

Depois do ocorrido, um milagre a mais ou a menos não faria diferença. Sem qualquer ensaio ou conhecimento prévio da música, a orquestra tocou o frevo recém composto. Foi uma exibição sublime. Nem a Orquestra Municipal ou a Banda do 14 RI, nem os futuros arranjos de Duda, de José Menezes ou da Orquestra de Cordas Dedilhadas de Pernambuco conseguiriam repetir aquela exibição primorosa.

Também foi uma exibição muito estranha. Ninguém ousou marcar o passo. Ao contrário de outros frevos de encontro (e era um legítimo frevo de abafo) este, desta vez, não foi dançado. Em invulgar silêncio, a multidão espremida acompanhou a exibição do frevo ecoante, vertiginoso e rutilante, enfim: fervente. Se naquele momento, outra orquestra viesse ao encontro, até um frevo coqueiro, com sua estridência, faria o efeito das palhetas e semicolcheias de um frevo ventania. A emoção tomou conta de todos e muitos choraram em silêncio. Todos estavam habituados ao saudosismo nostálgico dos frevos de bloco, mas aquele frevo de rua era pura melancolia. Ao final, antes da multidão dispersar e silenciosamente rumar para casa, o Mestre anunciou o título, pressentido por muitos, do frevo: Último dia.

(*) Último dia é um antológico frevo de rua (de encontro) composto em outubro de 1950 por Levino Ferreira, Mestre Vivo, mentor e mais popular compositor do frevo de rua pernambucano.

Manoel Carlos Pinheiro
http://www.agrestino.blogger.com.br/index.html
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