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Contos-->A GRANDE ILUSÃO -- 01/08/2001 - 12:57 (Gabriel de Sousa) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Carlos Miguel mal conheceu os pais, que morreram ainda ele não tinha dois anos. Os padrinhos, casal ainda novo, tomaram conta dele. Nunca lhe faltou comida, cama nem roupa lavada, mas isto bastará ? Raramente brincou com outras crianças e sentiu sempre a carência de afectos, que muitas vezes só os pais sabem dar. Refugiou-se na solidão desde petiz. Inventava brincadeiras a solo e lia, lia muito. Cedo compreendeu que era diferente dos seus companheiros de escola. Os padrinhos tratavam-no relativamente bem, talvez fazendo mesmo sacrifícios ou suportando certas privações, para criar aquele «filho» que não era seu. Talvez por isso mesmo nunca tiveram um verdadeiro filho. Quem sabe ?
Às vezes cobravam-lhe com insinuações, o bem que lhe vinham fazendo desde bebé. Carlos Miguel percebeu, bastante cedo, que não podia pedir nada aos padrinhos e, quantas vezes, cobiçou um brinquedo ou um livrito que talvez nem fossem assim tão caros.
Cedo abandonou os estudos normais para começar a trabalhar. Estudava à noite. Estudava muito. Nem sabia como o tempo lhe chegava para tanto. Queria enveredar pela carreira de jornalista e, anos mais tarde, inscreveu-se num Curso de Jornalismo. Para ajudar as despesas da casa e não se sentir um peso, conseguiu uma certa independência económica e dava mesmo uma mesada.
Os estudos corriam-lhe de feição. Estava no seu mundo e aprendia aquilo de que mais gostava. De emprego, mudou inúmeras vezes, sempre para ganhar um pouco mais. Trabalhou em escritórios, quase escondidos em ruas estreitas da Baixa. Nalgumas lojas, sem interesse nenhum. Até numa retrosaria, vendendo linhas e botões ... Serviu à mesa. Lavou louça. Voltou a um escritório, onde se ocupava de toda a actividade burocrática de uma conhecida pastelaria. Aqui, não desgostou. Estava quase sempre só, escrevia, fazia contas, podia até sonhar que era patrão, não fosse o magro salário recebido ao fim do mês ...
O grande dia chegou. Finalizou o seu Curso. Outros horizontes, decerto se abririam. Seria finalmente jornalista. Guardou como é óbvio o emprego que tinha no escritório. Conseguiu mesmo um «part-time» no escritório de um advogado, que lhe permitiu comprar um computador para instalar no seu quarto. Como ? Ainda não sabia, pois o quartito era pequeno e já tinha uma estante repleta de livros, uma escrivaninha pequena, a cama e um roupeiro.
Estava-se quase no fim de ano. Ano Novo, vida nova ! Começou a procurar emprego num jornal. Para o efeito, guardara vários contactos de visitas de estudo que fizera durante o curso. Bateu a várias portas. Sempre sem sucesso. Quadros completos. Falta de prática. Ofereceram-lhe mesmo alguns estágios mas não remunerados. A vontade era aceitar mas, para isso, teria de deixar um dos empregos que tinha e o dinheiro fazia falta. Precisamente no dia 30 de Dezembro entrou no edifício de um conceituado jornal de Lisboa. O segurança perguntou-lhe quem procurava, pediu-lhe o bilhete de identidade que guardou numa espécie de ficheiro que estava à sua frente e deu-lhe em troca um cartão de visitante, com uma mola para prender à lapela do casaco. Ao fundo do corredor à direita lá estava a porta que indicava «Chefe de Redacção». Viu se estava abotoado, ajeitou a gravata e tocou levemente à porta. - Entre ! Um sujeito forte, com óculos, ar simpático, estava sentado numa secretária cheia de papéis, de jornais e de pastas de arquivo. Mandou-o sentar e ele timidamente assim fez, puxando as calças para não estragar os vincos. Perguntou-lhe onde tinha trabalhado, que prática tinha e outras perguntas de circunstância. Limitou-se a dizer que tinha trabalhado em vários escritórios, que lia e escrevia muito. Escrevia sobre tudo, só pelo prazer de escrever. Às vezes dava por ele a escrever o filme que acabara de ver, outras o passeio que dera no fim de semana. O que lhe faltava de convívio, sobrava-lhe em poder de observação. E, claro, tinha finalizado o Curso com boas notas.
- Tenho neste momento uma vaga e ando à procuro de alguém que goste da profissão e que tenha ideias novas, para nos ajudar a sair desta rotina em que os jornais se transformam. Tenho vários candidatos que me agradaram à primeira vista, mas todos como você, sem prática. A todos «encomendei» um texto versando o tema «Ilusão» . Quer experimentar ? Se quiser, escreva-o e apareça cá amanhã ao fim da tarde. Comparando os vários textos, terei uma primeira oportunidade para seleccionar a pessoa a admitir. Aceitei. Claro que aceitei. E corri para casa.
Pelo caminho porém já a ansiedade me possuía. Parecia-me um presente envenenado. Escrever sobre a Ilusão, seria escrever afinal sobre o que não existe. Ou estaria enganado ? Quase duvidei do que queria dizer tal palavra. Dissequei a palavra, tão pequenina, meia dúzia de letras e aparentemente cheia de significados ... Procurei o meu dicionário de português, muito antigo, comprado num alfarrabista. Mas para o que era, servia. A ilusão será quase tão antiga como o mundo. Lá estava : «Erro dos sentidos ou de inteligência que faz tomar a aparência por realidade. Efeito artístico que procura produzir a impressão da realidade. Ideia quimérica. Coisa efémera ou enganadora». – Mas que raio de tema ! Sentei-me em frente do computador e comecei a teclar, teclar, teclar. Apagar, copiar, colar. Mudança de tipo de letra e de espaçamento. Li, reli e, a cada leitura, nova emenda. Nada soava bem e já eram tantas da madrugada. Em situações idênticas, resolveria o problema, pondo o trabalho de lado para recomeçar mais tarde. Outras vezes era mais drástico. Apagava, não guardava e lá ia o trabalho de horas, sorvido pela «lixeira» informática. Desta vez era diferente. Tinha de entregar o trabalho que o senhor José Trindade tinha pedido. Poderia estar ali a oportunidade da minha vida. Fazer finalmente aquilo de que gostava. Quando, já com os olhos a arder e quase a fecharem-se, vi que nada mais podia fazer, imprimi dois exemplares e, para não dobrar, meti cuidadosamente as folhas A4 num envelope que tivera o cuidado de comprar antes de entrar em casa. Com aquilo tudo, nem jantei. Bebi um copo de água, deitei-me e adormeci.
Manhã cedo, lá estava eu a pé, pronto para iniciar mais um dia de trabalho. Depois do almoço, pedi para sair mais cedo e dirigi-me quase a correr para o Jornal. José Trindade aceitou o envelope que lhe estendi. Não quis ler à minha frente, pois nem sequer o abriu. Pediu o meu contacto e disse que me avisaria.

Hoje, passados que são já vários anos, e enquanto atendo uma cliente da sapataria onde agora trabalho, penso na minha Grande Ilusão : ser jornalista, velho sonho que não se realizou. Ninguém me chamou nem por mera cortesia. Desmoralizei. Resignei. Acomodei-me. Se triste tinha sido o meu princípio, triste seria o meu fim.
A senhora despertou-me dos meus pensamentos : - Estes parecem-me apertados, deixe-me experimentar o 39. - Vou já buscar, «Madame» ...
Só eu não arranjei sapato para o meu pé !




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