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Contos-->SATÚ -- 31/07/2001 - 01:12 (Fernando Tanajura) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
SATÚ

Já estava longe daqueles dias e daqueles lugares, todavia a lembrança continuava viva e presente. Por onde andava Satú com seus cabelos soltos e seu lindo peito nu? Será que ela havia resistido a todo esse processo e a todo esse tempo?

Eu estudava o curso primário na Escola D. Pedro II no turno da manhã e, ao meio-dia, quando terminava a aula, voltava com meus irmãos para casa. A volta era sempre uma diferente forma de excitação. Vínhamos brincando pelos trilhos do trem, atravessávamos toda a calçada da fábrica de tecidos dos Collier. Já naquela idade sentia o cheiro da decadência sócio-econômica daquele lugar. Víamos passar o trem que vinha de São Roque, estação de encontro do vapor da Navegação Bahiana com a linha de trem da Estrada de Ferro de Nazaré. O trem passava geralmente antes de uma hora da tarde. Acenávamos e gritávamos para as pessoas que seguiam nele. Para onde ia tanta gente?, me perguntava. Aquele trem ia para longe, para terras distantes e perdidas pelo interior do estado — Onha, Santo Amaro da Purificação, Santo Antônio de Jesus, Amargosa, Jequié e não sei mais quantos lugares perdidos. Era a única ligação por terra para aquelas cidades e lugarejos do interior da Bahia. O trem, com uma locomotiva na frente, era puxado selvagemente. Atrás daquele comboio ia a xereta, outra locomotiva menor e pachorrenta, lerda, empurrando os vagões pesados. As máquinas soltavam uma fumaça grossa e sopravam um apito pelos ares. Era mais um grito de desespero que um apito. A fumaça e o grito do apito, às vezes, faziam-me chorar e imaginar coisas distantes que eu ainda não conhecia. Gostava quando ia com a família em direção contrária, rumo à São Roque, de onde tomávamos o vapor de Cachoeira e seguíamos para Salvador, que era mais chamada de Bahia ou, simplesmente, de Capital.

Às vezes, no caminho de casa, víamos outras crianças brincando de roda e nos misturávamos a elas cantando:

“Adeus, meu Santo Amaro
Eu desta terra vou me ausentar
Eu vou para Bahia
Eu vou viver, eu vou morar
[Eu vou viver, eu vou morar]”

Mas o trem passava lento como tempo, roncando, e os nossos estômagos também roncavam um ronco diferente, de fome. Era hora de correr e ir para casa para o almoço. Atravessávamos a pequena ponte, tomávamos a Rua do Seco e encontrávamos com os amigos e vizinhos. Tínhamos sempre uma novidade para contar ou escutar. Nessa hora eu via sempre Satú debruçada na janela com seus cabelos soltos e crespos caindo enrolados pelo pescoço e pelos ombros. Seu nome era Saturnina, mas todos a chamavam simplesmente de Satú. Meus irmãos me puxavam e me preveniam para que eu não olhasse para ela. Diziam que ela era maluca. Eu teimava e desobedecia. Olhava como querendo perder a minha inocência. Já entendia que só os que teimam e desobedecem são os que vencem. Tenho até hoje a gratificação dessa rebeldia: a imagem de uma cabocla, ao natural, banhado-se ao sol do meio-dia do Recôncavo Bahiano. Ia para dentro de casa com aquela imagem na cabeça. Comia o cozido com todos os legumes frescos e verduras coloridas ou comia a feijoada ainda borbulhante com arroz branco. Nem sei mesmo se apreciava o gosto de cada comida, de cada bocado, porque a minha cabeça estava em outro mundo. O que era certo é que estava envolvido e encantado com o sorriso leve de Satú. E porque não dizer que estava mesmo era enfetiçado pela minha primeira imagem da inocência ou da loucura? A pele porosa morena, a face carnuda, os olhos cor de mel, os lábios grossos emanando um sorriso largo e sem palavras, o olhar franco, direto para mim. Tudo isso formava uma resplandecente imagem emoldurada pelo peitoril verde da janela. Ficava embriagado com a imagem, tonto com o aperitivo para o banquete.

Satú era casada com Sí, — nunca soube seu nome completo — um sarará forte, musculoso, muito bonito, de braços e peitos bem desenhados. Ele trabalhava na fábrica de tecidos dos Collier à noite e dormia durante o dia. Era sempre uma intriga para mim, saber que uma pessoa trocava a noite pelo dia. Sí perdera alguns dedos de sua mão esquerda e eu nunca soube como. A mão era engraçada, diferente, só tinha dois dedos e mesmo assim ele tinha uma grande habilidade manual. Ele era um bom pescador. Entrava em sua canoa, ia para o meio do rio e ficava horas parado com o anzol na mão. Imóvel como uma estátua à distância. Vez por outra eu o via puxar a linha do anzol de dentro d’água com um robalo ainda vivo se contorcendo contra o vento. Assim aprendi a ver a luta da vida contra as armas improvisadas dos homens. No final da tarde, Sí andava pela vizinhança para vender os seus peixes. Lembro-me dos seus dois únicos dedos segurando firme a linha carregada de peixes prateados e de barrigas brancas. Muitas vezes minha mãe comprava um robalo de Sí e fazíamos uma festa, pois sabíamos que teríamos moqueca de robalo para o jantar. O resto da tarde sentíamos o cheiro da salsa, do coentro, do leite de coco, do limão, da cebola, do azeite-de-dendê e da pimenta de cheiro.

Acabado o almoço, meu pai palitava metodicamente os dentes, tomava seu cafezinho e, disciplinadamente, voltava para os escritórios da Estrada de Ferro de Nazaré, onde trabalhava desde seus doze anos. Minha mãe ia cuidar da casa, da cozinha, do jantar, das suas costuras e dos afazeres domésticos. Meus irmãos mais velhos se preparavam para o exame de admissão ao ginásio — sempre achei muito estranho esse exame — e tinham que estudar na parte da tarde. Eu aproveitava a distração das pessoas e corria para o quintal. Subia no pé de araçá e soltava os meus olhos pelo rio Jaguaripe que corria no fundo do quintal lá de casa. Às vezes, minha mãe dizia-me para não ficar no sol, eu seguia seu conselho e me deitava à sombra do abacateiro. O sol era geralmente muito quente e o calor era de abafar. Ficava então pequeno, perdido na região, sentindo o mundo mover-se lentamente. As folhas verdes da mata, o céu azul imenso, cores que pareciam saltar da bandeira da escola e se espalhavam por toda margem do rio. Esperava mais, queria mais e o meu excitamento não me desapontava. Sentia o meu coração bater mais forte, descompassado. O sorriso mistério-enigma de Satú que havia visto antes do almoço logo apareceria, tão pronto Sí se recolhesse para sua sesta de final de tarde. O mesmo sorriso agora era alargado com novas imagens. Da sombra do abacateiro via Satú inteira em todo o seu esplendor. Ela descia a escada dos fundos da sua casa e atravessava o quintal, envolta na sua colcha de retalhos coloridos. Os cabelos crespos e soltos resplandeciam mais ainda com a luz da tarde. Eu, protegido pelo abacateiro, observava silencioso Satú ir até a beira do rio, abandonar sua colcha de retalhos e, nua, se lançar nas águas mornas do rio como um peixe ou como uma sereia. Ela sabia que eu estava ali toda a tarde esperando por aquele momento, e eu sabia disso porque sempre, antes de se lançar nas águas, ela dava uma parada, olhava para minha direção com os olhos cor de mel enormes e, com carinho, desprendia um sorriso cúmplice das nossas loucuras e inocências. Talvez esse tenha sido o meu primeiro contato com o mundo dos loucos.

Eu ficava ali paralisado, vendo Satú soltar-se às águas, deslizando, nadando até o meio do rio onde alcançava a pedra que dava pé para as pessoas grandes. Ali no meio do rio ela ficava imóvel como uma estátua por horas a fio com a água cortando o bico dos seus seios. Depois de algum tempo, ela começava a cantar. Deixava ir pelos ares uma voz melodiosa, um canto inocente, uns acordes soltos, talvez com a intenção de me embalar à distância ou, talvez, querendo embalar um sonho ou um segredo só para nós dois e só nosso.

Àquela hora, Sí dormia seu sono inocente, armazendando forças para enfrentar o trabalho à noite na fábrica de tecidos, enquanto Satú se queimava com o resto dos raios de sol da tarde e eu, na minha pequenez, me embalava no canto dos inocentes.


© Fernando Tanajura Menezes
(n. 1943 - )
(O Canto dos Inocentes - fragmento)
http://tanajura.cjb.net

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