Mentiras
maria da graça almeida
Desfaço-me da juventude,
não como me desfaria
de um jóia preciosa,
de um vestido elegante,
do livro mais gostado.
Desfaço-me da juventude
como me desfaria
de um velho batom,
uma lingerie desbotada,
uma meia desfiada.
Abandono-a com calma,
sem sofreguidão.
Largo-a com dores
no corpo, não na alma,
ou no coração.
Relego-a sem as
sombras da solidão,
que rasuram a face,
que danificam as mãos;
sem as mágoas da saudade,
que calcificam o pensamento,
sem a garantia da reversão,
ou a possibilidade do arrependimento.
Desisto da juventude
com sutis propriedades,
ou com estouro de um rojão,
porque quando a vontade
não determina,
não haverá explosão,
nem vaidade feminina
que a soerguerão.
Com naturalidade,
dela, despojo-me, sim,
pois, há muito tempo,
num surto de saciedade,
ela despiu-se de mim.
(Distancio-me da juventude
e faço o jogo do contente.
Com um cisco na retina
peço a Deus que me ajude
a olhar só para frente.)
maria da graça almeida
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