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Cartas-->O RISCO DO RETROCESSO -- 21/02/2005 - 10:46 (JOÃO DE FREITAS) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

A vice-presidente do Comitê da Mulher afirma que direitos já conquistados estão ameaçados pelo fundamentalismo religioso

ELIANE BRUM

A jurista Silvia Pimentel estudou em colégio de freiras e há 33 anos é professora da mais tradicional universidade católica do país - a PUC-SP. O que não a impediu de se tornar uma voz combativa na luta pela legalização do aborto, com alcance internacional. Desde janeiro, Silvia tornou-se a vice-presidente do Comitê Cedaw, da Organização das Nações Unidas, que fiscaliza o cumprimento da Convenção sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher. O órgão é hoje a mais importante instância na defesa dos direitos femininos. Tem, inclusive, poder de julgar os países nos casos em que, esgotadas todas as esferas do Judiciário, considerar-se que não houve justiça.







SILVIA PIMENTEL






Otavio Dias de Oliveira/ÉPOCA


Dados pessoais
Mineira criada em São Paulo, completa 65 anos em março. Está
casada há 20 com o segundo marido, tem quatro filhos e seis netos


Carreira

Professora de Filosofia do Direito na PUC-SP, conselheira do Comitê
Latino-Americano e do Caribe para Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem)
e da Comissão de Cidadania e Reprodução






Carreira

Professora de Filosofia do Direito na PUC-SP, conselheira do Comitê Latino-Americano e do Caribe para Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem) e da Comissão de Cidadania e Reprodução

Para chegar à ONU, essa feminista histórica passou por um processo eleitoral que dependia do voto de 177 países. Na posse, em janeiro, Silvia abriu logo fogo contra o que considera a grande ameaça de retrocesso aos direitos duramente conquistados: o fundamentalismo religioso, que vem solapando o Estado laico. No país, essas forças estão representadas pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e pela bancada evangélica do Congresso. Na terça-feira, a corrente religiosa somou um novo aliado poderoso, com a surpreendente vitória de Severino Cavalcanti (PP-PE) para a presidência da Câmara. O deputado se alinha nas trincheiras dos que tentam anular direitos já conquistados, como o aborto nos casos de estupro e de risco de morte para a mãe. "Católico roxo", como o deputado se autodefine, até então ele não era levado a sério quando tentava instituir bizarrices como "o dia do nascituro" - leia-se feto.

Com mais de dez livros publicados na área do Direito da Mulher, Silvia iniciou sua militância nos anos 70, depois de separar-se do primeiro marido, e teve participação decisiva na revisão do Código Civil. Nesta entrevista, realizada em sua casa, num bairro de classe média alta de São Paulo, Silvia fala sobre temas que vão da Igreja à prostituição.

ÉPOCA - Em sua posse, a senhora falou sobre a descriminalização do aborto e o risco representado pelo fundamentalismo religioso no mundo todo, em especial na América Latina. Hoje, a luta pela preservação do Estado laico é o grande desafio para o movimento de mulheres?

Silvia Pimentel
- Acho que é um desafio para todos. Eu me manifestei no sentido de compartilhar minha preocupação por ver no Brasil e em toda a região uma orquestração buscando interferir não só em qualquer avanço na área da sexualidade e da reprodução, mas buscando retrocesso. Precisamos preservar a separação Igreja-Estado. O Cedaw já havia recomendado aos países que revisassem suas legislações punitivas ao aborto. Foi resultado dessa recomendação a criação, pelo governo federal, no fim de 2004, de uma comissão para estudar a questão. Eu mostrei na ONU a tensão política causada pela ameaça ao Estado laico. Sugeri que se prestasse muita atenção ao que estava acontecendo.

ÉPOCA - Em março completará dez anos a Conferência de Beijin, que foi um marco na luta pelos direitos femininos, mas as comemorações serão discretas. Por quê?
Silvia
- Com o avanço fundamentalista, não só do lado de lá do mundo, mas também do lado de cá, achamos melhor não fazer uma nova conferência por conta dos riscos do momento político. Temíamos que, na correlação de forças, não tivéssemos condições de avançar ou de, pelo menos, manter nossas conquistas. O que vai acontecer é uma reunião anual, e nela vamos comemorar. Temos presenciado que, no que se refere à sexualidade e à reprodução, os fundamentalistas ocidentais de Bush se unem aos fundamentalistas islâmicos. É sua única aliança, o ponto de interseção.

ÉPOCA - Com uma forte formação católica, como a senhora vê o crescimento do conservadorismo dentro da Igreja Católica?
Silvia
- Hoje sou agnóstica. Aos 12 anos, comecei a ter problemas com os dogmas da Igreja Católica, numa época em que nem sonhava em ser feminista. A professora disse que Nossa Senhora tinha sido virgem antes, durante e depois do parto, o que foi inaceitável para mim. O que nos preocupa hoje não é crer ou não crer, mas o fundamentalismo que se dissemina por todas as igrejas. Até há pouco tempo, a gente usava o termo fundamentalismo apenas para se referir aos fundamentalistas islâmicos, agora se estendeu a todas as religiões, inclusive à católica. São pessoas que trabalham as questões não na perspectiva do debate democrático, mas como dogma. Não representam apenas o núcleo duro, mas o intocável. Primeiro, a camisa-de-força da heterossexualidade. Depois, a camisa-de-força da reprodução, em que nem se aceita a anticoncepção, só a abstinência, mesmo nos casos de Aids. E por fim a interrupção da gravidez não-desejada, um problema significativo no mundo, especialmente nos países díspares como o nosso, em que as mulheres pobres são as mais prejudicadas. Não sou a favor do aborto, não é um valor positivo. Sou a favor da legalização do aborto. O aborto não é uma abstração, é uma questão social e precisamos discuti-la.

ÉPOCA - Em algum outro momento histórico recente a Igreja Católica foi uma opositora tão forte ao movimento feminista como é hoje?
Silvia - Eu sou muito amiga de algumas feministas católicas, como as Católicas pelo Direito de Decidir. Elas me ensinaram que é preciso tomar muito cuidado. Não é a Igreja Católica que é contra. É a hierarquia da Igreja Católica, que, na última década, passou a ter um papel político de maior monta na América Latina e muito especialmente na CNBB. Nesta questão, dos direitos reprodutivos e da sexualidade, infelizmente, eles são os grandes adversários, embora eu tenha uma enorme admiração por eles em trabalhos de combate à pobreza, abuso sexual etc. Fico com pena. É a Igreja de minha família, onde fui educada, sinto uma peninha mesmo. Penso: meu Deus do céu, o que vai acontecer com a Igreja Católica se continuar se afastando assim da realidade? Vai continuar perdendo fiéis.

ÉPOCA - O Supremo Tribunal Federal vai decidir se autoriza o aborto em casos de fetos anencéfalos (sem cérebro). O que um resultado desfavorável significará, historicamente, na luta pela descriminalização do aborto?
Silvia
- Isso tem uma enorme dimensão porque estamos lutando para fazer avançar o direito de decidir da mulher. Seria um retrocesso muito grande. Nosso código é de 1940, quando não existia ultra-sonografia. Então ficou essa lacuna na lei. Você acha que faz sentido prosseguir nessa gravidez sem possibilidade de vida? É tortura exigir isso da mulher. Conjunturalmente, essa é a decisão mais importante hoje no país. Eu não acredito que o resultado seja desfavorável, porque seria muito absurdo. O Direito deve servir ao razoável e ao justo. Não faz sentido ter apego ao texto legal sem ter condições de que seja trabalhado dentro de um contexto histórico e social. É como o exemplo clássico, em que um guarda chega a um paraplégico numa cadeira de rodas nos jardins de Luxemburgo e diz a ele: "O senhor não está vendo o que está escrito? É proibido entrar com veículos de roda". Ou seja, a lei não havia sido escrita para impedir a entrada de paraplégicos. É o mesmo no caso da anencefalia desde que existe a ultra-sonografia. Impedir a interrupção em casos em que não há possibilidade de vida é o não-razoável.

ÉPOCA - No Cedaw, vocês atuam em países com culturas muito diferentes. Por exemplo, no caso da mutilação genital das mulheres, com a extirpação do clitóris. Para as ocidentais é uma aberração, para as mulheres de muitos países africanos e alguns do Oriente Médio pode representar um lugar social. Como o comitê enfrenta questões complexas como essas?
Silvia - É um verdadeiro desafio enfrentar com radicalidade, mas também com respeito, uma diversidade dessa monta. Eu já passei por dificuldades pessoais por causa disso. Há alguns anos, conversando com amigas africanas que haviam organizado a Conferência de Nairóbi, disse a elas em determinado momento: "Fico preocupada porque sou uma mulher branca, de Terceiro Mundo, mas no Primeiro Mundo, vindo à África para dar lições a vocês. Isso me parece prepotência e me enoja. Gostaria de escutá-las a respeito dessa angústia". Uma delas então me disse:"Silvia, você não precisa ter esse nível de angústia, porque a grande diferença entre vocês, feministas, e os colonialistas aqui da África é que eles vieram nos impingir valores. E vocês vieram dialogar valores". Uma questão como essa, da mutilação genital, precisa ter uma estratégia pelo viés da saúde da mulher, mostrando que representa doença e morte. Claro que representa também ausência de prazer sexual, mas é absolutamente antiestratégico começar falando que a mutilação tira o prazer da mulher. Houve uma radical mudança num desses países quando o rei, ou príncipe, perdeu a filha após a mutilação. Por isso, trabalhamos pelo viés da saúde, da mesma forma que trabalhamos o aborto pela ótica da saúde. Mostramos que o aborto não diminui por ser proibido, mas por ser clandestino mata milhares de mulheres.

ÉPOCA - O Brasil já assinou várias convenções que não cumpre. Por que com o Cedaw vai ser diferente?
Silvia
- Bem, concretude é a bomba, o que a gente já viu que não funciona de forma absoluta, basta ver a política de Bush. A própria Constituição brasileira é descumprida, mas continua sendo um parâmetro. Há dois anos o Brasil assinou um protocolo que permite petições ou comunicações de pessoas ofendidas. É um instrumento novo. As mulheres brasileiras precisam saber que, hoje, esgotadas as possibilidades policiais e jurídicas no país, elas podem enviar uma petição ao Cedaw denunciando o Estado por ação ou omissão. E o Estado pode ser responsabilizado por desrespeitar a mulher. Isso cria uma questão internacional para o país. Hoje, estamos investigando dois casos: assassinato de mulheres no México e outro, individual, de violência doméstica na Hungria. Quero fazer uma gestão participativa, ainda estamos estudando a forma. Quero que as mulheres brasileiras se sintam representadas nestes quatro anos de mandato.
AFP

""Temos de escutar as prostitutas. Se elas querem se considerar profissionais do sexo, se entendem que não são objetos, eu não posso julgá-las. Para a gente é difícil aceitar, mas temos de respeitar""

ÉPOCA - Uma questão delicada para o movimento feminista, inclusive porque a maioria das militantes vem da classe média, é a prostituição. Sempre houve mútua desconfiança. Para as feministas, a prostituição significava alienação do corpo, e, para as prostitutas organizadas, a posse radical do corpo. Essa questão está sendo enfrentada?
Silvia
- Nós temos tido dificuldades com esse debate, sim. Mas, nos últimos anos, especialmente em 2004, passamos a convidar os movimentos de prostitutas, homossexuais, transexuais, travestis e transgêneros a debater. Já tivemos duas reuniões importantes. Minha posição é que temos de escutá-las. Se elas querem se considerar profissionais do sexo, se entendem que não são objetos, eu não posso julgá-las. Não sei como vão resguardar sua integridade nessa lógica capitalista, mas elas não dizem que vendem ou alugam o corpo. Dizem que são donas do próprio corpo. Acho que é muito difícil a gente separar qual é nossa carga moral, qual valor advém de nossa educação. Eu trabalho com essa hipótese da posse radical do corpo. Para a gente é muito difícil aceitar, mas tem de respeitar. Muito se fala sobre a diversidade, é uma questão que está na moda. Mas para você admitir a diversidade de fato é preciso ter um grau de humildade, a compreensão de que não detém a verdade.

ÉPOCA - A senhora tem se batido contra a exploração da imagem da mulher, um fenômeno que considera ainda mais agudo no Brasil. Em 2004, o movimento ganhou um briga contra uma cervejaria. Como foi?
Silvia
- Assumi o compromisso de não dizer o nome da cervejaria, mas foi muito interessante. Havia um descanso de copo que dizia: "Mulher e cerveja - especialidades da casa". E atrás o logo da cervejaria. Fomos ao Ministério Público, na área da defesa do consumidor, e fizemos uma notificação. Depois de algumas audiências, fizemos um acordo: eles tiveram de fazer uma contrapropaganda em dois jornais importantes e subsidiar seminários nas cinco regiões do país sobre a imagem da mulher nos meios de comunicação. Isso é um exemplo de democracia participativa plena.

ÉPOCA - No início de sua militância, a senhora foi uma das feministas que tentaram atuar junto ao movimento sindical do ABC. O presidente Lula diverte-se ao contar que era muito fácil detectar uma feminista nas reuniões porque elas apareciam muito malvestidas, por supor que era assim que as operárias se apresentavam, enquanto as trabalhadoras usavam sua melhor roupa para a ocasião. A senhora era uma das malvestidas?
Silvia
- Ah, eu não radicalizei (risos). Mas procurei me adequar, não ir ao sindicato do mesmo jeito que ia ao Jockey Club. Mas o caso é que eu não me adeqüei do jeito bonitinho que estou falando. Um dia uma grande amiga de infância olhou para mim e disse: "Silvinha, tudo bem, tô achando muito bacana tudo que você está fazendo, mas não tem de virar jeca desse jeito". Então eu vi que talvez estivesse exagerando um pouco...

ÉPOCA - E qual era o modelito?
Silvia
- Nunca cheguei a usar sandália de dedo, por exemplo. Andava só um pouco mais simplesinha...
ÉPOCA, 21/02/2005.



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