O SILÊNCIO DE DEUS
Délcio Vieira Salomon
Diz a lenda que, no tempo em que havia diálogo entre os seres sobrenaturais que povoam o universo, o demônio, ao saber da criação do homem, perguntou a Deus:
- Por que criaste o homem?
A resposta de Deus foi o silêncio total. O demônio imaginava que depois de criado o tal de ser à imagem e semelhança de seu criador, só com sua criatura ele se comunicaria.
Mas como sempre o demônio se enganou.
Mal sabia que sua pergunta provocativa teria como resposta um Deus calado "per omnia saecula saeculorum".
Para os fervorosos cristãos, a atitude de Cristo diante da provocação de Pilatos foi do mesmo naipe:
- Quid est veritas? (O que é a verdade?), perguntou Pilatos. A resposta também foi o silêncio total. Como registrou Marcos: Iesus autem amplius nihil respondit (Jesus nada mais respondeu). (Mar: 15,5). Por isso, indignado, lavou as mãos. Ignorava, por arrogância, que a verdade estava diante de si, até numa hipértese (decompondo a frase "quid est veritas" em latim: "est vir qui adest": é o homem que está à sua frente). Afinal, este homem um dia dissera: "Ego sum via et veritas et vita" (Eu sou o caminho, a verdade e a vida "(Jo: 14,6).
Desde o momento em que o diabo interrogou ao Criador, paira no infinito o silêncio de Deus.
Até hoje todos nós mortais o notamos. O silêncio de Deus é o maior mistério que a todos nós atormenta.
Alguém já viu Deus? Alguém já o ouviu? Quem o disser é um mentiroso.
O próprio vate da abolição, Castro Alves, atormentado pelo crime da escravidão bradou:
- "Deus, oh! Deus! Onde estás que não respondes? / Há dois mil anos te mandei meu grito / que embalde desde então corre o infinito".
Sintetizou nesses versos a tragédia do ser humano diante do mistério do silêncio de Deus.
Se não fosse esse silêncio, não haveria ateus, nem o mundo estaria tão desgraçado como está, com tantas seitas religiosas, cada uma se julgando a detentora da fala de Deus.
Aliás, esta a definição de religião: apropriação indébita da fala de Deus.
Já está comprovado que esta pretensão nada mais é que o disfarce da ânsia de poder que se instalou no coração do homem.
Por outro lado, se Deus falasse, quem garante que a humanidade seria diferente? Aí é que mora o mistério.
Na esteira desse silêncio o homem, através da religião, da mitologia, da filosofia e até da ciência, se julga vocacionado para ocupar o lugar de Deus.
Tinha razão Sartre quando escreveu em O Ser e o Nada: "ser homem é tender a ser deus".
Apesar de ferir a sensibilidade religiosa dos que crêem, vejo que Saramago foi honesto, quando disse:
"as religiões nunca serviram para aproximar e congraçar os homens, (...) pelo contrário, foram e continuam a ser causa de sofrimentos inenarráveis, e morticínios, de monstruosas violências físicas e espirituais que constituem um dos mais tenebrosos capítulos da miserável história humana".
Mas o silêncio de Deus não deve ser motivo de desespero, nem para os crentes, nem para os agnósticos ou ateus.
Sabemos que o ateísmo, o agnosticismo e o indiferentismo já se tornaram características do chamado mundo pós-moderno.
Cumpre ressaltar: fora da religião e da mitologia e até da ciência, só nos resta a esperança que a moderna filosofia nos aponta.
E aqui devo render homenagem a filósofos como Luc Ferry (Aprender a viver, Vencer os Medos...) e André Comte-Sponville (Viver, Tratado do desespero e da beatitude ...).
Este, defensor do materialismo ascendente ("é preciso lutar: partir para o "assalto ao céu", mesmo que o céu não exista").
Aquele, a nos propor magistralmente um novo humanismo como tábua de salvação contra o ceticismo, o materialismo crasso, o dogmatismo e, sobretudo, contra o desespero.
Um convite a ler tais obras.
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