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Teses_Monologos-->Reflexões Usineiras (4) -- 14/09/2001 - 16:14 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
NO ANONIMATO SEM CACHORRO

[Qualquer semelhança conosco, autores/leitores do site usinadeletras , não será mera coincidência. Mas, tranquilizem-se todos, não trato de ninguém em particular. Tento apenas e legitimamente compor um discurso reflexivo.]

A compulsão pelo anonimato parece fazer mesmo parte do "zeitgeist" reinante, parece ter impregnado o ar do tempo. E nem mesmo a palavra anonimato parece dar conta do fenômeno. Nome é o que não falta. O que falta, por trás de cada um deles, é uma pessoa de carne e osso, e sua verdade.

Não é raro alguém admitir, a posteriorir, já ter feito uso desse "recurso" ao pseudônimo (ou codinome). Uns, por mero gracejo. Outros, até mesmo com finalidades terapêuticas, que, obviamente, beneficiam sobretudo o receptor da mensagem, conforme supõe a bondade do emissor anônimo, uma vez que não apenas lhe propicia o agradável ensejo para uma exposição indesejada, como a ocasião para que se revele e compreenda esquizofrênico como todos os demais.

Sobre o método, poderíamos classificá-lo como "selvagem-psicanalítico". Antigamente se falava em aplicar um corretivo à pessoa, pegá-la com a boca na botija, de calças curtas, mijando fora do vaso, flagrá-la em delito de legítima administração de sua expressão e de suas relações pessoais. Como não ver, nisso, uma estranha espécie de sinestesia, uma variação, como realidade virtual e meramente verbal, do nosso bom e velho "voyeurismo". A psiquê do outro, em sua manifestação verbal, como objeto de observação pseudo-psicológica ou pseudo-psicanalítica. Ou então: vamos brincar de terapia? O mundo é dos psicanalhas.

Digamos que estivéssemos tendo, agora, um primeiro contato, e brutalmente sem graça, com um mundo feito de relações impessoais, cada qual tendo de abrir mão, em definitivo, de sua identidade, de seu nome, passando a assumir as mais diversas personas, digamos assim.

Literariamente falando, alguns gênios conhecidos assumiram, na própria pele, o questionamento do eu, da ilusão enunciativa, tendo assumido diversas personas, como Pessoa e alguns outros modernos, ou cultivado um jogo de espelhos en abîme, como o argentino Jorge Luis Borges. Mas todos eles o fizeram dentro de um jogo eminentemente literário, repito. Seus nomes surgem descontextualizados no site, mera justificativa para atitudes questionáveis e até criminosas. Não mais o jogo literário, mas a sua perversão.

Hoje, teríamos, de acordo com esse raciocínio meia-boca, um mundo feito só de "Pessoas" e de "Borges". Ulalá! Um mundo só de gênios! Aliás, Borges tem surgido com certa freqüência no site, só que em forma de adjetivo: borginiano, aplicado a gatos e cachorros. Bem feito, esse "borginiano" é o que nos deverá restar do papo-cabeça, das altas elocubrações universitárias, um certo jargão de paladar duvidoso, com vocábulos que são, por si sós, o pesadelo.

Sempre haverá quem prefira "borgesiano", sei lá. A expansão desse jargão não quer conhecer limites. Como, de resto, as dissertações e as teses. Ai de nós todos!

No usina , a leviandade autopromocional, o sarampão da congenialidade pós-moderna, ou melhor, sua caricatura mais tosca, ocupam o lugar da reflexão. Alguns ouviram o galo cantar em freguesia distante. Outros acreditam nessa falácia brasileira do gênio que só se manifesta, quando o faz, antes dos vinte e cinco anos. E, a maior parte prefere assim mesmo, sem qualquer lastro e sem nenhum esforço.

O cenário é mesmo propício aos exercícios da baixa psicanálise ou psicanálise selvagem. Os geniozinhos não cochilam. Por um nada, te indicam o caminho da terapia, já que o usufruto desse besteirol em que chafurdam ficou sendo uma prerrogativa dos precoces.

Enquanto traduzi para algumas das nossas grandes editoras, e não foi por muito tempo, incompatibilizamo-nos, tropecei em biografias, gênios amadurecidos à força, embrulhados nos cadernos de cultura como pencas de banana. Brilhantes escritores de orelhas de livros e de contracapas, condutores decisivos do avanço implacável da indústria da cultura. Uma vez, tendo ousado uma formulação um pouco mais refletida, uma ex-garota propaganda de maionese, então travestida de editora, ousou chamar-me de "o último dos frankfurtianos". Logo que você adentra a sala, um comentário sobre a tua roupa, sobre o teu cabelo, uma frase-cabeça. Você feito um prisioneiro, nessa armadilha feita de fatuidade não muito prolixa. Ou seja, o que descrevo nem é tão novo e tão cibernético. Já conheço tudinho ao vivo. Os incautos internáufragos só fazem repetir um triste teatro.

Pela ordem, atacam, primeiro, com alusões espirituosas ao teu mais do que óbvio envelhecimento físico (os jornais, por exemplo, têm verdadeira paixão pelo quesito "idade", rigorosamente aposta ao nome do meliante; cf. Folha de São Paulo). Junte-se a ele, o inevitável, o inexorável fracasso das tuas várias empreitadas humanas. A eleição de alguns gênios foi o expediente encontrado para que não tenhamos de nos encarar no espelho de um vexame coletivo sem precedentes.

Em seguida, por que não averiguar se o freguês não teria, como é bem provável, alguma tara sexual, algum probleminha dessa ordem, a ser, comme il faut, tratado ao rés do esgoto.

Se nada disso deu certo, o terceiro lance é infalível: aventar a hipótese de que o contemplado já não esteja no perfeito uso de suas faculdades mentais, carecendo talvez de uma camisa-de-força, de um tratamento de choque, de uma conversinha.

Com isso, desembarcamos em plena era da teoria literária c(l)ínica, já que emitimos nossas mensagens a partir de um site literário, vertente que preconizei emergente em artigo aqui anteriormente publicado. Nisso, e em tantas outras magnitudes, o usina pode se jactar de pioneirismo. Os textos, que nele se pretendem literários, não passam, nessa visão obtusa que não encontra o foco, de pretextos para essa prática de tanto futuro. Se com Kafka e tantos outros já fizeram o que fizeram com as abordagens psicologizantes, ai de nós, pobres usineiros escrevinhadores.

Concluindo: tenho falado contra os anônimos, mas sobretudo contra esses que inventam codinomes francamente abjetos, e que se deliciam à farta com o banquete pós-moderno da ausência de caráter e de individualidade. São a cara, melhor, a ausência de cara deste nosso tempo. Hienas gargalhantes em meio à desumanidade e ao caos.

Mas, agora sei, há anônimos de uma outra espécie. São os que fazem do anonimato um exercício da caridade cristã, com o único intuito de auxiliar os destinatários de suas mensagens a se reconhecerem, eles próprios, naqueles itens desabonadores (?) acima expostos, e que outra coisa não são senão as mazelas comuns, nossas, num momento em que a esquizofrenia, pelo menos no plano teórico, já de há muito deixou de ser vista como uma instância privada, bem como o esquizofrênico, de ser tratado como um doente.

A esquizofrenia, hoje, deve ser vista, e com absoluta clareza, como um fato social.

"O medo do goleiro diante do pênalti", segundo Peter Handke, teve como ponto de partida a leitura de um best-seller do emblemático ano de 1968: "Die beginnende Schizophrenie" [A esquizofrenia que começa], de K. Conrad. Em sua narrativa, o ex-goleiro Bloch é um personagem que percorre as duas primeiras das três etapas características da esquizofrenia, com a perda progressiva das referências externas.

Num dado momento, ao final do livro, deitado numa cama de pensão, ele que havia percorrido a esmo a cidade de Viena, depois de supor, pelo olhar de um superior, ter sido despedido do emprego de montador num canteiro de obras, ele que, entre tantas outras banalidades, estrangulara a caixa de um cinema com quem havia dormido, ele que passara a viajar de aldeia em aldeia, dirigindo-se a uma cidade de fronteira, ao sul, delira quase descolado da realidade circundante e palpável. No entanto, ainda adivinha, na sintaxe do quarto, uma possível redenção. Handke compõe um dos períodos à maneira das cartas enigmáticas, os objetos do quarto, o armário, a cama, a cadeira, o criado mudo, aparecendo desenhados no lugar onde normalmente apareceriam as palavras que lhes correspondem.

Bloch conclui que, se descer até o hall, e se fizer tudo certinho, e se falar concatenadamente uma coisa depois da outra, ninguém se dará conta do estado de confusão que o acomete.

A terceira etapa da esquizofrenia, segundo Handke, seria literariamente inviável, quando o esquizofrênico já perdeu de todo a capacidade de estabelecer relações entre as palavras e as coisas.

Antes dessa narrativa, que Wim Wenders em seguida transformou em filme, Handke havia tratado da ilusão enunciativa, propondo o modelo dos jogos de linguagem, de Wittgenstein, em "Insulto ao Público": "Mas, antes disso, vocês ainda serão insultados, porque insultar também é uma forma de nós nos comunicarmos." Vale lembrar que Handke se manifestava também, e corajosamente, contrário às ilusões conteudísticas da esquerda estudantil em 68.

Numa outra peça-falada chamada "Kaspar", baseada no mito de Kaspar Hauser, Handke tratou da tirania da linguagem, seu papel repressor sobre o indivíduo, do potencial fascista da mera repetição de frases articuladas e fiéis pura e simplesmente às ordenações morfológicas e sintáticas. Falava da aprendizagem da linguagem como internalização da repressão social, mero adestramento. [Cf. o "Relatório para uma academia" (Bericht für eine Akademie), de Kafka, que é o relato, no momento máximo da sua aventura, diante dos doutos senhores da Academia, da aprendizagem da linguagem humana por um macaco tirado das selvas africanas.]

Ao chegar nos Estados Unidos, o romeno Eugène Ionesco teve de aprender o inglês. Constatou que, seguindo rigorosamente os métodos comunicativos de ensino de idiomas (no caso, do inglês), era possível dizer qualquer coisa. Estava criado o "teatro do absurdo".

Talvez pudéssemos pensar este momento, inconscientemente talvez assumido, ou levianamente explorado, de abandono da identidade e da individualidade, como uma espécie de rendição. Por aí, desembocamos no "não penso, logo desisto".

Peter Bürger aventa a hipótese de que, ao dizer que a modernidade se tornara a tal ponto incompreensível, que a metalinguagem já não seria mais possível, Adorno, na verdade, estaria definindo a essência da pós-modernidade.

Max Horkheimer, que escreveu com Adorno a "Dialética do Esclarecimento", tem uma frase bastante eloqüente: "Mas, afinal, a violência e a falta de sentido não são uma só e mesma coisa?"

Sem qualquer sombra de dúvida, a internet, com a possibilidade do anonimato, abre caminho para uma violência psicológica sem precedentes. É como se o ser humano, pretensamente liberto das amarras que o prendiam às mais diversas formas de prisão lingüística, ou à possível saída com que lhe acenava o pensamento utópico, de repente se visse, ele próprio, instado a ser o carrasco de si mesmo, como Joseph K., ao final de "O Processo". Mas este se recusa. Sua frase final ecoa ainda aos ouvidos ocidentais - de resto, incapazes de perceber o humor eslavo, como nos alertou Roman Polanski: "Era como se a vergonha tivesse de sobreviver a ele."

Em "A sentença", Kafka cria a narrativa exemplar
de um condenado que tem a sua própria sentença de morte inscrita na pele por uma gerigonça monstruosa.

Ou muito me engano, ou estaremos todos conhecendo agora, lenta e dolorosamente, algo que o escritor percebeu muito antes e condensou em sua novela.

Quanto aos anônimos, com o pouco que ainda lhes resta da noção de individualidade, a verdade é que ainda continuam a tirar a sua lasquinha, aproveitando para festejar, no próximo, a flagrante realidade deste nosso adoecimento (irreversível?) como espécie.

De volta à infância, a humanidade se distrai, como e enquanto pode, com o seu novo brinquedo reluzente. Exultante. Por quanto tempo ainda?
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