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Artigos-->Apetitosa Babel de um apocalipse imperdível -- 28/05/2001 - 23:52 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Dicionários vivos, inventores de idiomas e dialetos, churrascos de imersão, almoços temáticos: a apetitosa Babel de um apocalipse imperdível

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Dia desses tive uma experiência muito interessante. Estou habituado a traduzir artigos de revistas e jornais alemães (alguns deles publicados aqui mesmo no usinadeletras , outros pelo jornal Tribuna Impressa de Araraquara), e o faço diretamente na tela. O texto original vai desaparecendo à medida que o traduzo, ficando apenas, editados numa cor que lhes dê destaque, vocábulos que desconheço e não consegui localizar nos dicionários, ou passagens, para mim obscuras, para as quais sequer poderia arriscar uma paráfrase interpretativa. Quando chego ao final do texto, saio atrás do que me falta.



É nesse momento que entram em cena os "dicionários vivos", ou seja, os amigos capazes de nos auxiliar nesses lapsos da lexicografia disponível e nesse incômodo da nossa impotência criativa.



Em Munique, conheci certa vez uma brasileira que havia trabalhado em Florença para uma tradutora italiana de Monteiro Lobato. E ela inclusive me acenava com a possibilidade de eu vir a assumir o posto. Proposta sem dúvida tentadora: ser um dicionário vivo. Um verbo como "agachar", por exemplo, ou expressões como "sair de fininho" ou "saltar de banda", tudo isso parece demandar um profissional muito competente. Por essa, juro, eu nunca havia esperado. Todo um campo profissional pela frente.



Mas, voltando ao meu atual método de tradução diretamente na tela, calhou de ter pela frente um texto em castelhano. Procedência: Nicarágua. Algo a ver com uma FM revolucionária, com o programa SU NOCHE DE DOMINGO inteiramente dedicado ao rock punk. O texto traz revelações para mim inteiramente inesperadas, como a herança do SURREALISMO, via SITUACIONISMO, sendo repassada por Norman Maclaren à banda Sex Pistols e resultando na eclosão do movimento punk internacional.



Afora os problemas de quem redigiu o texto com o seu próprio idioma, vi materializada na tela a impressão de que o castelhano dispensa praticamente o nosso esforço como tradutores. A maior parte do tempo, só tive de alterar uma ou outra letra em cada palavra. Acredito que, como tradutor do espanhol, com o tempo acabaria apelando para o comando macro e essas alterações recorrentes seriam eliminadas numa só dedada. É claro que, às vezes, também bate a forte impressão de que a tarefa do tradutor, no caso, se resume em eliminar as redundâncias, as excrecências, os gongorismos próprios do idioma em pauta. Mas trato de deletar com urgência essas minhas irreflexões politicamente incorretas.



Tudo isso para chegar a um assunto que vem causando alvoroço entre os profissionais do ensino do alemão, entre os quais eu me incluo e não me incluo, dependendo das circunstâncias. Não consigo, de um modo geral, sentir essa minha tarefa como sendo a "minha" causa. Não sou lá muito jesuíta, nesse sentido. Não me comove essa conversa da difusão da língua e da cultura germânicas. Não fui contaminado, felizmente, pela ideologia flagrantemente visível nos métodos de ensino dos vários idiomas (não vê quem não quer), a nos querer propagadores e entusiastas de expansionismos no mínimo anacrônicos, canhestros mesmo.



As reuniões de professores de alemão costumam transcorrer em alemão, sendo que ali estão praticamente só brasileiros entre si, com a presença de alguns nativos do idioma a comandar a pantomima, eles que não parecem muito dispostos ao mesmo tipo de exposição, o que significaria obrigarem-se a falar conosco em português, mas em tempo real como fazemos para falar com eles, e admitindo a hipótese, talvez desagradável, de ter de nos ouvir falar um português, por assim dizer, bem claro.



Outro dia ouvi, de um aluno de inglês, Curso de Letras, o relato espantoso de um "churrasco de imersão". Um churrasco, durante o qual só se falou o inglês. Um inglês que imagino saturado de proteína animal e de tentativas, quase sempre mal disfarçadas e inglórias, de expelir dos entredentes resíduos incômodos. É claro, tudo para maior proveito da humanidade.



Nos encontros de professores de alemão. existe uma instituição semelhantemente abominável: o almoço temático. No início da manhã, você pode se inscrever para esta ou aquela mesa, digo, para a deglutição deste ou daquele tema candente, podendo tratar-se até mesmo do uso de algum prefixo verbal. Haja suco gástrico.



Pois os meus colegas estão em polvorosa. Pelo que pude perceber, a obrigatoriedade do ensino do castelhano nas escolas brasileiras coloca em risco o "nosso" emprego.



É muito curioso que alguém possa reagir dessa maneira. Incompreensível, para mim, que acreditem na expansão do ensino do alemão. Sempre fui contrário, por exemplo, à existência de uma licenciatura em alemão aqui na faculdade em que trabalho (Unesp/Araraquara). Isso todo mundo por aqui já sabe. Todos os quatro ventos já me ouviram repetir isso ao longo de pouco mais de 15 anos já. Bastante surdos, por sinal, esses quatro ventos.



Oferecemos licenciaturas em alemão, italiano, francês, grego e latim. Para quê? Onde está o mercado de trabalho para os profissionais que formamos? E nem seria o caso, aqui, de abordarmos um outro fato gritante: esses profissionais acabam não tendo o tempo necessário para ganhar a necessária intimidade com o próprio idioma em que foram (não muito bem) alfabetizados.



Sim, já era tempo de tratarmos desse tema talvez inconveniente, num meio que costuma primar pela “produtividade”, ainda que induzida à força como nos últimos tempos: o semi-analfabetismo. Tema absolutamente indigesto, com toda certeza, em churrascos de imersão ou almoços temáticos. E esse não declarado semi-analfabetismo já vai conquistando títulos de mestrado e doutorado, nessa insensatez em que se transformou a nossa "vida acadêmica", cada vez mais acelerada pelos órgãos de fomento à pesquisa.



Quanto à obrigatoriedade do ensino do castelhano em nossas escolas, não seria o caso de considerarmos, por exemplo, um famigerado precedente: a obrigatoriedade da disciplina "educação física" de pouco saudosa memória? Cada um de nós poderia produzir um relato interessante sobre o seu próprio percurso e sobre o condicionamento físico adquirido em tantos anos de vigência dessa obrigatoriedade. Alguns alunos da universidade nem sabem que, oficialmente, a disciplina existe, como desconhece o fato de existir um professor contratado, tudo muito direitinho, para que não, nunca haja malentendidos.



Vale para o ensino oficial de idiomas, em todas as instâncias do nosso percurso escolar, uma verdade: qualquer escola particular do ramo pode garantir melhores resultados. Assim como a “mens sana” de um aspirante a atleta jamais haveria de se fiar em que as aulas de educação física, essas que lhe impingem do ginásio ao curso superior, a fariam situar-se confortavelmente “in corpore sanu”.



Parece que o castelhano já surge no cenário como fato eminentemente político, ou seja, com a mesma vocação da educação física, tão prezada pelas ditaduras declaradas, como bem sabemos. Já a ditadura econômica, devidamente não declarada, parece querer ser um pouco mais fina. Pois tomem castelhano. Já fico a imaginar todas as conseqüências dessa questionável obrigatoriedade.



Mas, como hoje tudo se explica pelas determinações da economia, milhares de cabides, digo, de empregos serão criados. E, afinal, o Brasil é o país do futuro, mesmo que esse futuro não lhe traga nada mais que o honroso papel de país chave do Mercosul. Há tempos não ouço mais uma expressão que já foi de tanta serventia: "cone sul"...



Mas, na hipótese de que a história desminta este meu pessimismo de articulista em segunda-feira chuvosa, e parece que toda segunda-feira tem algo de chuvosa, de qualquer modo nós, tradutores, estamos fadados a um amaro far niente. Aquela minha impressão de que basta alterar algumas letrinhas e, pronto, o castelhano vira português, será uma realidade em nosso dia a dia. Talvez cheguemos a um idioma comum ao Mercosul, como a União Européia se empenha no momento em criar o seu.



E, por falar em emprego, o meu, como professor de língua alemã, está mais do que ameaçado. Não pela introdução do castelhano obrigatório nas escolas públicas do país, como temem os meus colegas, mas pelo desaparecimento iminente do próprio idioma de Lutero, Goethe, Brecht, Schuhmacher, Boris Becker e Beckenbauer.

Na Alemanha, é só conferir as revistas e jornais online, há um debate intenso acerca da anglicização do alemão. Já se usa, e com relativa fluência, o neologismo DENGLISCH (deutsch + englisch), um equivalente ao praticamente assentado “spanglish” ou ao combatido “franglais”, para lamentar a perda do seu idioma nacional, um idioma que parece destinado a naufragar nesse mar revolto de um mundo paralelo, a internet, em que as nossas vidas e os acontecimentos parecem prescindir das idéias e de seus suportes lingüísticos nacionais.



Não diria que é ou será um mundo só de monoglotas, porque esse conceito, ainda e sempre, pressupõe a diferença. Mas, eu perguntaria, até quando? A diferença é um dos artigos mais duramente boicotados no mercado mundial da globalização. E, enquanto isso, não deixa de ser uma diversão de primeira observar os nossos altos mandatários quando se arvoram em criadores de idiomas. Quem é que não se lembra do “duela a quien duela” perpetrado por um nosso ex-presidente? Sem dúvida, um golpe definitivo nas aspirações expressivas disso que já nos habituamos a chamar de “portunhol”. E já antevejo o dia em que, à pergunta “Hablas español?”, os nossos alunos responderão, incontinenti: “Um pueco.”

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