Quando Rosalinda foi chamada pela senhora que presidia o centro espírita em que vinha trabalhando, logo imaginou que seria convidada a realizar palestras, dado que mal fora publicado seu segundo livro, este com várias dissertações atribuídas ao espírito de Esmeralda.
Foi logo sendo colocada à vontade, através de um abraço carinhoso e algumas felicitações:
— Parabéns, Rosalinda, pelo quadragésimo aniversário. Dizem que a vida começa aos quarenta, então, você está mal iniciando a sua carreira. No entanto, você é uma mulher de sucesso em todos os seus empreendimentos. Eu soube até que irá casar-se em breve...
O jorro de palavras se conteve de repente, entendendo Rosalinda que a outra esperava por uma confirmação. Não se fez de rogada e esclareceu:
— Na verdade, o meu divórcio ainda não se completou, que esses processos são demorados, apesar de Olegário ser advogado e estar a fim de se livrar o mais rápido possível desse vínculo matrimonial que traz a ele e a mim amarrados um ao outro.
— Mas corre à boca pequena que você vai casar-se logo.
— Depois de um ano inteiro de namoro, Aristides resolveu que devemos assumir a nossa união, indo morar juntos. Se quiser a verdade, ele é que tem insistido, porque, para mim, tudo ficaria do jeito que está, já que eu tenho a minha liberdade de levar os gêmeos para onde quiser e, com ele sob a minha responsabilidade, as viagens vão ficar na dependência de suas folgas, já que ele não pretende aposentar-se tão cedo.
— Ele já passou dos cinqüenta...
— Cinqüenta e quatro.
— Está na hora de aproveitar mais a vida. Em geral, os médicos sacrificam a mocidade e até a idade madura, para só se dedicarem ao lazer depois dos sessenta ou dos setenta.
— Aristides não vai parar tão cedo, principalmente agora que está iniciando o negócio dos planos de saúde para as pessoas da classe média assalariada. É um empreendimento de largo fôlego, já que os valores são baixos para os conveniados, mas altíssimos quanto aos tratamentos. Ele está contando com clientela bastante numerosa e com internações curtas. Em todo o caso, os colegas não estão acreditando que o projeto vá durar muito tempo, vaticinando que as parturientes irão deixar de pagar logo que ganharem os bebês, correndo para o serviço público gratuito em busca da assistência pediátrica.
— O que você acha?
— Eu acho que ele está fazendo, mais ou menos, o que os centros espíritas fazem para os necessitados, ou seja, dão assistência, buscando recursos no voluntariado dos homens e mulheres de boa vontade.
— O doutor é um filantropo.
— É e não é, porque está resguardado por cláusulas que obrigam ao cumprimento dos contratos, o que promete algumas lutas judiciais. Além do mais, há uma companhia de seguros dando cobertura para que a empresa não venha a quebrar por completo. Mas os prêmios são muito elevados.
— E se não der certo, Rosalinda, você estará ali para garantir que ele não abra falência...
— Se eu e minhas empresas não formos juntos...
— Deus há de ajudá-los. Mas eu a chamei para conversarmos a respeito de seu interesse em realizar exposições para o público em geral. Em primeiro lugar, gostaria de saber se isso não irá prejudicar as suas aulas às gestantes e mães solteiras.
— Penso que não, mesmo porque eu já divido essas aulas com outras três companheiras, comparecendo apenas uma vez por mês.
— Quantas vezes você deseja apresentar os seus temas?
— Semanal ou quinzenalmente, conforme a programação da casa e a recepção do público.
— Você já tem alguma experiência?
— Nenhuma.
— Mas se considera habilitada?!...
— Gostaria de expor alguns tópicos que julgo do interesse dos que estão começando suas leituras espíritas.
— Quanto aos temas, isso deverá ser tratado com o pessoal responsável pelas palestras.
— Quer dizer que, se eles aprovarem, eu posso desenvolver os tópicos da doutrina?
— Antes de encaminhá-la ao Departamento de Cursos e Exposições, precisamos levantar um ponto delicado, já que os que assumem esse posto perante os que se apresentam ao centro para aprender, assumem também a responsabilidade de representar o próprio centro espírita e seu corpo diretivo.
Rosalinda estava estranhando muito o tom formal que estava tomando o discurso de Juliana. Pôs-se na defensiva:
— Eu me comprometo a respeitar todos os princípios da casa, em especial os da moralidade superior contidos nas obras da codificação.
— Longe de mim, querida, querer ofendê-la, censurá-la ou magoá-la, mas é preciso que a gente esteja bem atenta para possíveis observações das pessoas a respeito de sua conduta na vida particular. Não que elas tenham qualquer coisa a ver com isso. Mas, como se trata de um público que está sendo atraído para o estudo da doutrina e para ler Kardec, com o fito de viver Jesus, é preciso evitar todo comentário depreciativo.
— Para dar as aulas às adolescentes grávidas, eu sirvo. Para tratar com pessoas adultas, fazem-se restrições?!...
— Sua experiência como mãe solteira e como mulher separada a aproxima das alunas. Agora, os seus hábitos de mulher livre podem causar espécie entre os mais severos cultores da moralidade.
— Juliana, você está expondo um preconceito dos outros ou está manifestando um temor baseado em suas próprias prevenções? Não seria melhor deixar acontecer, para sabermos toda a extensão do problema?
— Rosalinda, querida, não me leve a mal. Mas fique sabendo que fui alertada para o fato por diversas pessoas com quem conversei, pessoas que a conhecem desde mocinha, até colegas de escola...
— Inveja e maldade. Mas não serão essas criaturas infelizes que me farão desistir de expor os princípios básicos da doutrina que esposei e que sigo rigorosamente. Quer dizer que, para elas, o passado me condena?!...
— Você vai manter essa atitude de desafio perante os confrades e confreiras?
— Eu jamais poderia imaginar, por tudo quanto tenho feito para esta casa e para os assistidos, que iria ser repudiada como a adúltera que Jesus salvou da lapidação. Aliás, é bom que você saiba, para dizer às suas amigas, que eu nunca botei chifre na cabeça de homem algum.
— Ora, Rosalinda, sua filha nasceu de uma união com um homem casado.
— Não terá sido ele quem adornou a testa da esposa? Depois, eu era até menor de idade e poderia muito bem processá-lo. Ao contrário, Beatriz acabou significando a configuração social de laços matrimoniais já rompidos na intimidade do lar. Mais ainda: o nascimento da criança concedeu liberdade ao casal, que pôde formar, cada qual de seu lado, dois novos lares.
— Pode-se dizer que, quanto a Lauro, foram mais três ou quatro. É justamente esse o ponto nevrálgico da questão. Você defende com unhas e dentes a separação dos que acham que não estão mais apaixonados ou amando. Inclusive, nas obras que você vem publicando, a gente encontra mensagens de sua guia e protetora que aplaude essa iniciativa.
— Vocês estão com a idéia de proibir a leitura dos meus livros aqui no centro?
— Nós achamos que cada um pode ler em casa o que bem entender. No centro, evidentemente, as suas obras não merecerão ser estudadas, como de tantos autores espíritas de muito maior repercussão.
— Juliana, você me desculpe, mas estou entendendo que vocês ficariam aliviados se eu me retirasse desta casa...
— Não nos entenda nem nos queira mal. Não é isso. É a sua projeção que está implicada em fatos de sua vida particular. A sua mediunidade é boa e você tem demonstrado um coração aberto à caridade. Nós ficaríamos muito sentidos se você esbarrasse num repúdio declarado da parte do nosso público, da mesma forma que existem muitos comentários na imprensa a respeito de suas aventuras.
— Juliana, eu lhe agradeço muitíssimo essas suas palavras de advertência. Estou vendo que vocês estão agindo com prudência e senso comum. Parabéns. Quanto a mim, desde já, peço demissão de todos os encargos que vinha assumindo. Passe bem.
Rosalinda voltou as costas para a dirigente, que não fez nenhum movimento para retê-la. Naquela noite, como há tempos não acontecia, Aristides precisou enxugar-lhe as lágrimas do desgosto de ter sofrido a incompreensão dos companheiros. No fundo da consciência, acusava-se por toda uma vida de insucessos amorosos por causa de sua maneira aberta de encarar a sexualidade.