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Contos-->Infanticídio indígena -- 18/12/2018 - 10:24 (Adalberto Antonio de Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos







Nhá Santa passa flanela úmida no móvel do quarto. Ninguém se incomoda com sua presença muda, até que ela dá ‘vassouradas’ na conversa.
— Cosme e Damião é nome bom para gêmeos!
— Sê  besta, Nhá! Não se tem certeza, se realmente, Cosme e Damião eram  gêmeos. Eles tiveram morte semelhante, passaram por igual martírio e talvez por isso sejam tidos como irmãos gêmeos. Pode ser que nem sejam parentes...
Generoso  entendeu que deveria dar nomes a seus bois. Às crias dos outros, seus donos o fizessem. Onofre não opinou. Não escolheu nomes. Só pensou:  “Se Apinajé ainda morasse na aldeia, provavelmente, os filhos seriam sacrificados.  A própria mãe teria que matá-los pela dupla ‘culpa’  de serem gêmeos, além do mais,  um deles tem defeito físico. Para seu povo, um só desses motivos é suficiente para levar à morte um recém-nascido indígena.” 
Robert protestou: 
— Exclua esta parte, Ravenala. O sertanista quando  catalogou etnias indígenas que praticam infanticídio no Brasil, não arrolou os maxacalis. 
— Preciso ser fiel ao texto original.
— Não há texto original.
— Temos gravação de uma entrevista com Smith. Ela conviveu com  índios maxacalis que se hospedavam na pensão Sônia em Montes Claros.
— Desculpe a intervenção desnecessária.
— Posso continuar?
— Sim, sim...
— Pois bem.
Nhá levou os meninos para mamar na mãe. Apinajé olhava os filhos, cheia de compaixão: “O pai não guardou resguardo de três meses, e, se o pai come  carne vermelha, naqueles três meses que antecedem o nascimento da cria, curumim nasce morto ou morre ao nascer. Homem  branco não apanha costume de índio... Até fura as orelhas, come cuscuz, e gosta de aipim. Mas crença, não!... Não agrada espírito da selva. Quando homem branco fuma diamba,  não conversa com seus ancestrais. Mata seu semelhante. Ser índio é bom! Acauã é má.  Acauã vai levar curumim para morar com os espíritos da selva...”
Corina ergue a voz, lenta e gradualmente.
— Teu ventre gerou duas nações, dois povos divididos pela fé. É preciso que sobrevivam,  para que o bem possa  extinguir  o mal.  Eles são filhos de cristão batizado, com  índia pagã. 
— Minha flor, a índia foi batizada no ritual romano, no dia do casamento com Onofre.
— Ah, sim!
Onofre  mostrava-se preocupado. Coruja rasga-mortalha voou  sobre o telhado, produzindo som semelhante ao de um pano sendo rasgado. Prontamente, respondeu o dono da casa: ‘Aqui não tem tesoura nem pano, não tem ninguém morando aqui’. 
— Rasga-mortalha tinindo asas no telhada no dia em que nasce menino, boa coisa não é, disse Nhá Santa. 
— Para de conversa tola, Nhá! Isso é abusão do povo.
 Nhá baixou as vistas. E saiu. Não devia discutir suas crenças com Euzébia, cujo  marido morara muitos anos em seminário de padres no Rio de Janeiro e sabia das coisas. 
— Nem Jacó nem Esaú. Nem Cosme nem Damião. Meu filho vai se chamar Arualdo. O outro, a mãe que dê o nome — resmungou Onofre, aborrecido.
O que surgiu primeiro era vermelho e peludo. O outro tinha uma perna atrofiada. Teria o irmão mais velho atingido o mais novo, quando este  lhe segurava o calcanhar na hora de nascer?
Arualdo vingou. 
Para lidar com caça, vingou bem. Desaparecia na mata sem fazer barulho. Passo macio, miúdo  e ligeiro, chegava com um tatu a tiracolo e trocava por cachaça na venda. Era bom negócio para Jerônimo que vendia a farofa de tatu e ainda contava vantagem: “ Fui eu quem pegou. Peguei  a caça debaixo do bigode da onça. A pintada vinha sentindo o tatu;  os cachorros deram nela e eu saltei na caça.” Dr. Adilson pigarreou. Dona Edineia riu zombeteira.
— Neste quadro Adilson também gravou o nome dele.
Jerônimo fez-se desentendido: 
 — Tive uma ponta de medo.
—Tamanduá-bandeira não tem medo de onça, disse o doutor.
— A mulher do vaqueiro de Generoso, morreu de que mesmo? 
— Morreu de parto. 
— Mas ela teve muitos filhos.
— Eu não disse que a índia tinha morrido na primeira ou segunda  parição. 
Índia Apinajé chegou a Campo Grande trazendo  um osso humano numa  aió   amarrada na cintura. Inicialmente, pensou-se tratar da  lembrança de seu  último repasto? A suspeita caiu por terra, no dia  em que, ouvindo Zé Coco executar ‘Saudade de Mirabela’,  a índia acompanhou a música, tocando  com aquele osso, que mais tarde se soube tratar-se de uma cangoeira. 
— Que é cangoeira, dona  Edineia?
— Preste atenção, Jerônimo! Cangoeira é flauta indígena, feita com osso de um guerreiro, morto em conflito. O pai de Apinajé. Talvez!
— Cruzes! Bicho porco é índio: pôr a boca em osso de defunto!
— Essa farofa é de quê?
— A senhora sabe que é de tatu.
— Cadáver de tatu,   queres dizer.
—  Cadáver humano  é diferente!
— Para índio, não. Pra eles não faz diferença  comer um bispo ou uma sardinha.
— Não gosto de peixe. Prefiro frango caipira com quiabo e mingau de milho verde.
— Também pudera! Nunca arredou os pés de Juramento! Aqui não tem mar. Não me  venha dizer que recusa uma omelete de sardinha?...
— Não como enlatados. Sou mais um feijão tropeiro com torresmo, farofa de andu, ou um tutu, bem feito!
— Peixe é essencial na dieta, por causa do ômega três.
— Entendo essas coisas não!  Como peixe não. Não sei onde ele ciscou. Que andou comendo...
— Sardinha é peixe que vive em águas profundas. Longe de qualquer poluição. O peixe mais saudável, portanto. 
Dr. Adilson divagava traquinagens da meninice: o banho  nas águas guardadas na bacia do açude construído com toras de aroeira, por mãos escravas, e as matas ribeirinhas do rio Juramento, aonde se escondia com Jerônimo, para ver as meninas se banhando
— Em qual planeta habita teu pensamento, Adilson? Volta pra Terra!
—Apenas refletindo, exercitando a ciência.
— Sobre o quê?
— Sobre um fenômeno que ocorre na puberdade com os meninos. Eles desenvolvem “peitinhos” decorrentes da mudança nos níveis hormonais. E falam com voz de taboca rachada. É muito engraçado. Vez por outra, uma mãe aparece no consultório. Assustada...
— Mas você é ginecologista obstetra. 
— A situação é colocada para pedir a indicação de um especialista para o filho.
— Vamos mudar de assunto. Sou pedagoga, não médica.
— Desculpe-me, minha Flor.
 Distraidamente, Adilson comenta aquilo que antes estava apenas em suas lembranças.
— João Velho é homem de sorte... 
— O quê?
— Euzébia era a menina mais bonita que as águas do Saracura pariram nas últimas décadas.
— Era? Faz quanto tempo que conheces Euzébia
— Desde menina. Nunca  descobri se ela tem olhos verdes ou amarelos. 
— Pois sabia que os olhos refletem a cor das vestes. 
Fez um muxoxo e continuou.
— Não creio que João Velho seja um homem de muita sorte. 
— Ciúme, minha rainha? Raul Soares não gerou, nem as águas do Matipó conceberam e jamais conceberão uma filha que se assemelhe a ti, em beleza, sabedoria e santidade.
— Não queira ser engraçado, Adilson! Falo dos homens que morreram porque  se apaixonaram por  Euzébia. Dois, que eu saiba.
— Nunca soube de nenhuma  viuvez dela. Duas vezes viúva?
— Não chegavam a coabitar. Morriam na mesma noite do casamento.
— Então o casamento não valeu. Nenhum dos dois... Isso parece maldição! Como João Velho saiu-se com vida?
— Puseram-se  em oração, durante  os primeiros três dias de casados, sem coabitar.
— Até parece que conviveste com eles. Sabes muito de João Velho e Euzébia.
— Muita gente sabe da história de amor que eles viveram.
— Não vivem mais?
— Não sei! Não convivo com eles!
— Disso eu sei.
Doutor Adilson  chamou Jerônimo. 
— Vai chover. Traga a conta.
— O doutor vai pernoitar na fazenda?
— Sim, e preciso ir antes da chuva. Não quero ficar atolado.
 
 ***
Adalberto Lima, trecho de "Estrada sem fim..."
 
 






Adalberto Lima




Enviado por Adalberto Lima em 18/12/2018

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