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Contos-->Terror e medo -- 08/05/2018 - 15:18 (Adalberto Antonio de Lima) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos


O momento era de temor e medo. Estava em voo internacional viajando em uma aeronave sem piloto.  Nathalie  afastou a mexa de cabelo que lhe cobria os olhos e tocou nalguma coisa áspera, como um diadema. (Esquecera-se de retirar os fones de ouvido.) Insistiu na tentativa de contato, mas a torre não respondeu. Mayday... Temos ricos de acidente...


Que diria? O Piloto sumiu!... Não. Diria a verdade: O piloto morreu. O copiloto também... 

O  botão indicador de altitude estava desligado. Nathalie  acionou oside-stick com a intenção de arremeter a aeronave, mas o equipamento não respondeu. O copiloto caído tinha sangue nas mãos e um cinto preso ao pescoço. E o piloto, um corte transversal na barriga.  

— É impossível arremeter. Tente a aterrissagem — disse Fernão.
— Assuma o comando!
— Não posso.
— Ainda não recebeste o brevê?
— Assuma o comando, salve nossas almas.
— Não quero ser condenado à prisão depois de morto.
— Ordeno que assumas o comando, Fernão!
— A viúva não velará o corpo do marido. Quem sobreviver ao impacto com as águas será sepultado vivo no mar.
— Vá para o inferno!...
— Nunca mande alguém para a sombra da morte, porque serás tu, a sombra que o acompanha.

 Flap.
A cauda da aeronave toca a superfície das águas. Fernão traçou uma cruz na boca, como se dissesse: Fecha-te. Há muito  mais na vida do que comer, beber e acumular divisas, brasões e estrelas nos ombros; há mais beleza na imagem projetada pela sombra de duas asas descendo na pista que todo encanto das sete maravilhas do mundo.

Feliz aterrissagem, Fernão!

 A voz de Bach encheu  de coragem a alma de Fernão Capelo. Ele sabia que a uma velocidade superior a mil quilômetros por hora,  o impacto com a água,  seria fatal.   Sacou a porta de emergência e tentou ficar em pé sobre a asa do avião. Desceria com calma, deixaria o corpo escorregar na horizontal e depois, se a sorte conspirasse em seu favor, qualquer ilha que alcançasse, seria  sua nova morada. Sem o brevê, sem incorporar-se à Esquadrilha da Fumaça, não poderia fazer um loop diante do olhar atônito de Nathalie, senão naquela hora.

Deu ordens à sua mente: Fernão, você é uma folha. Estendeu os braços como se quisesse abraçar o mundo, abraçar tudo que antes desprezava. Todo seu ser  pareceu leve.  Deixou o corpo cair, e rolar tocado pelo vento. Flutuava,  sem nenhum controle ou direção por ele definida. Não sabe dizer quanto  tempo durou a ‘viagem’. Nem mesmo sabia se estava vivo, ou morto, se sonhava ou estava acordado. A água quebrara suas carnes, como se houvesse se chocado contra uma parede rochosa.


 Estava tonto.
  Algas passavam sobre sua cabeça e um camarão com sete barbas de profeta, disse-lhe: Não queiras ir para Tárcis, quando eu te mandar para Nínive. Fechou os olhos. Esqueceu o medo, e ateve-se às noções de sobrevivência: “Só tente salvar um náufrago, se tiver certeza de que não vai afogar-se com ele. Calma, Fernão, calma!...”

Tudo estava escuro, muito escuro... Nem mesmo o clarão da aeronave em chamas, ele podia ver. Teria perdido a visão? Rompido o  cristalino? Era cedo para afirmar ou negar sequelas. Que prova lhe daria o céu de que estava vivo?

Agradeceu a Deus,  porque sentia dor. Logo, estava vivo. Talvez cego. Visto que não enxergava uma nesga de luz na escuridão da noite.  O medo invadiu sua alma: Cego sobrevive  sozinho numa ilha? Como encontrar alimento? Não era hora de pensar em comida. Para que se preocupar? Os mortos não comem, nem os vivos  podem enxergam no breu da noite. Restava-lhe esperar por resgate, se antes não fosse tragado pelas águas ou engolido por um peixe.


Recordou-se da conversa com o pai.
— Peixe grande comeu o profeta?

Sem esperar a resposta, (embora o soubesse), Fernão agarrou-se  ao paredão rochoso, que separa as águas do elemento sólido, e lutou contra as ondas que tentavam arrancá-lo como se ele fosse um mexilhão, grudado numa  pedra. Ouviu o grito de uma gaivota e sentiu sobre sua cabeça as negras asas do corvo da morte.  Estava prestes a ser comido vivo por qualquer animal que passasse por ali à procura de uma presa fácil. 

 No recuo das águas, o náufrago respirava e vez por outra, uma golfada penetrava suas narinas, arrancando-lhe em ondas alternadas o sopro de vida.  Lentamente, desgarrou-se do paredão, caindo estatelado sobre pedras pontiagudas. Arrastou-se, até conseguir levantar apoiando-se na muralha. Veio a aurora rasgando o véu da noite e Fernão pôde ver corpos que boiavam levados pela correnteza. A aeronave também viajava,  em partes menores, para o abismo insondável do mar.   Ele pôs-se de pé. E gemeu. E chorou. E sorriu... É doce morrer no mar.

O nome de Fernão Capelo constou não necessariamente, da lista oficial dos mortos, mas, entre os desaparecidos.  A Marinha Brasileira recolheu corpos em águas internacionais. Entre os mortos, Nathalie  Lopes Potiguará Saboia  Capelo; comandante Hemor Bar-Hemor de Siquém, um padre, uma freira e mais de meia centena de corpos ainda não identificados. Enlutado, o Salão do Livro listou o nome dos escritores mortos no acidente aéreo. Paola abriu lentamente os olhos, e leu seu nome na faixa,  logo abaixo  de seu  poema ‘Passeio sem rumo’. Agora podia viajar para qualquer parte do mundo, em fração de segundos, e se quisesse, poderia estar em vários lugares ao mesmo tempo. Então foi para Dakar. Viu as freiras de sua congregação, consolando os aflitos. Esperavam a irmã Paola, choravam por ela. Paola  estava ali e ninguém via. 

 A natureza árida e fria, habita o coração pacífico de tantos poetas — disse André, passando as vistas na faixa — Quantos sonhos, quantos voos literários interrompidos!

 Tentou conversar com Paulo Valença, falar das últimas produções depositadas no Portal. Paulo não o ouvia, não respondia nem mesmo aos acenos de mão. 

Ainda na loja, Ravenala ligou repetidas vezes para o número da mãe de Fernão. O telefone tocou... tocou... 
Tocaram o interfone, bateram à porta. Tudo silente... O  Corpo de Bombeiros foi acionado. 
 Infarto, disse o paramédico. 

Ravenala foi levada em espírito a uma praia coberta de ossos ressequidos e uma voz profética ecoou em seu coração:  O mar devolverá à praia todos os corpos que engoliu, e a terra prestará contas dos mortos guardados em suas entranhas.

Alguém tentou acordá-la massageando-lhe a face. Ela despertou como se voltasse de um pesadelo.


— Saiu a lista oficial de passageiros do ABS 815?
—Sim,  saiu a lista de mortos e de desaparecidos.

Intrigada, a viuvinha questionava: Será que Deus predeterminou a morte de 214 pessoas de uma só vez,  e os colocou no mesmo voo?  E segurou um sorriso, abafando-o com  lágrimas.

Ravenala teve a ideia de fazer uma vistoria nas coisas de Fernão. Não queria nenhum dos seus pertences, apenas colher mais fragmentos de uma história da qual fizera parte, por algum tempo. Conhecera o pai dele,  um artesão pernambucano que viera morar no Rio de Janeiro. A mãe, uma vedete nascida em Minas e banida pela família, quando abraçou  a arte de representar.  Era tudo que sabia de Fernão.

Recolheu, na portaria, as correspondências e se dirigiu ao apartamento. Abriu o guarda-roupas,  gavetas do criado-mudo, e vasculhou outros móveis da casa. Leu o diário de Nathalie; olhou álbuns  e viu cartas não postadas com o endereço de  Nathalie  Potiguará Saboia Capelo; rua Claude Monet, 815 Paris; viu ainda poemas, poesias, recortes retorcidos, e embolados como rascunhos, jogados na lixeira. Desembrulhou, cuidadosamente, alguns deles. Tentou juntar pedaços, mas não conseguiu nada além de frase soltas, e parte de poemas incompletos. 
Sobre uma pequena mesa da sala, o telefone repica.
— Quem?
— Potiguará...
— Não entendi!
O interlocutor se refez, e perguntou pausadamente:
— Q-u-e-m      e-s-tá    a-í?...
— Ravenala.
— Sou Galdino. Galdino Potiguará, o pai de Nathalie. Você é a faxineira?
— Sim! Sou a faxineira. 
— Há notícia de sobreviventes no acidente aéreo?
— Não há notícia de sobreviventes. Só mortos e desaparecidos. O Senhor Deus reconforte a alma daqueles que perderam parentes naquele voo. 

Meio viúva, meio solteira,  ela deixou a  chave na portaria e afastou-se dirigindo devagar.  Carros passavam e a ofendiam com xingamentos:  ‘Vá pra faixa da direita, sua vaca!...”

 Respire fundo e dê passagem disse para si mesma. E procurou uma rua aonde pudesse deixar o carro sem ter que pagar uma taxa à prefeitura. Sobretaxa. A via é pública, construída e mantida com o erário público já custou uma fortuna, por causa do superfaturamento. 
— Posso olhar o carro para a senhora — perguntou o flanelinha de plantão.
— Claro,  claro. Pode olhar. Não paga nada para olhar.
— Inteira pra mim o dinheiro de comprar o pão! Tenho dois filhos pra criar...

Mentira. (pensou)

Danos na pele indicavam que o “trabalhador”   era usuário de crack ou cocaína, as duas coisas juntas ou apenas uma delas.  “O bom cidadão, paga altos impostos e ainda tem que custear as despesas dos usuários de drogas? Dai-me paciência...” Se por um lado, dar dinheiro a pedintes é incentivo à ociosidade, por outro lado, em não se “contribuindo com um pai que tem filhos para criar” pode ser que o proprietário tenha o  dissabor de ter seu carro depredado quando vier buscar o veículo. 

Ravenala estacionou  numa rua que deságua na avenida Nossa Senhora de Copacabana. Ali também, havia outro flanelinha, pronto para extorquir dinheiro: A prefeitura. A placa não deixava dúvida. ‘Área Azul’ significando que ao estacionar em via pública, o proprietário do veículo  teria  que pagar pelo uso de um bem público. E se quando o usuário retornar, seu carro houver sido furtado, a prefeitura indenizará a perda? Pode ser que o postulante venha a ter ganho de causa na justiça, mas o ressarcimento... bem, a indenização precisa entrar no orçamento  de exercícios futuros. 

Teve vontade de chorar, mas naquele dia... Naquele dia não cabiam mais lágrimas em seu rosto. Queria ficar longe de tudo e de todos. E mesmo sem roupa apropriada para fazer um Cooper, desceu descalça e caminhou sozinha  na areia, deixando o rastro desalinhado  de suas pegadas. Olhou para trás. Viu outras pegadas além da sua.  — Anjo não deixa rastro no chão — Sussurrou a voz do vento — Se não tens pressa para chegar, caminha, pois, a passos curtos  como quem procura, sem querer encontrar.

— Fernão, é você?
 Olhou demoradamente, até onde as vistas alcançavam, e  viu apenas o branco das ondas avançando em direção à praia.
 
***
Trecho de "Estrela que o vento soprou."
 Imagem: www.sonhos.com.br/sonhar-com-avião

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Seres humanos passando por experiências espirituais.
 
Adalberto Lima
Enviado por Adalberto Lima em 08/05/2018
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