Rosalinda reformou várias vezes o seu modesto livro de mensagens. Sempre que o submetia, porém, à apreciação da autora espiritual, Esmeralda escrevia laconicamente que era preciso dar mais tempo ao tempo. Um ano inteiro de labutas intelectuais transcorreu até que voltou a apresentar o livro a Eduardo.
Com o trabalho, cresceu o nível de expectativa, dado que a autora terrena, de tanto burilar as frases, cortando, modificando e acrescentando, passou a considerar mais obra sua que daquela voz interior que lhe ditara os textos.
A decepção só não foi completa com as observações do editor, porque este a encaminhou a uma senhora acostumada a acompanhar o trabalho de criação literária dos autores novatos.
Noêmia fez questão de ler o livro antes de comprometer-se com Rosalinda. Finalmente, aceitou o trabalho, com os seguintes dizeres:
— Existe uma certa possibilidade de lançar este livro no mercado. Contudo, veja bem, o sucesso não está garantido. Desde o título até a formulação dos episódios deve sofrer radical alteração. Existe ainda a necessidade de mudar o foco narrativo, atribuindo ao plano espiritual um papel bem secundário, realçando os fatores humanos como fundamentais para que as reflexões morais e pessoais tenham valor perante o público a que você está visando.
— Não entendi direito. Você está dizendo que as redações mediúnicas devem ficar em segundo plano?
— Exatamente isso.
— Então, o que vai sobrar é o relato de minha vida?
— Não precisa ser de sua vida.; pode-se construir uma personagem fictícia com os mesmos problemas, não necessariamente com as mesmas soluções.
— Em outras palavras: você está propondo que eu escreva um romance.
— Desde que acrescente outras personagens de sua rica experiência, conforme Eduardo me contou. Aliás, as passagens em que você conta como se deu o seu casamento e sua separação podem constituir um pano de fundo excelente para propor um enredo em que a heroína se livra do péssimo relacionamento. Neste caso, vai ser preciso fazer que ela encontre um novo amor, verdadeiro, ou que termine sofrendo a desdita de um acidente fatal.
— Isso não tem nada que ver com o meu livro.
— Nós podemos dizer que a influência de seu anjo guardião se deu no sentido de protegê-la de uma condição de vida subalterna, o que vem ocorrendo no mundo das mulheres, ávidas por encontrarem outras com quem partilhar seus destinos de inferioridade neste mundo machista.
— Esmeralda jamais pretendeu orientar as minhas decisões. Ao contrário, conforme está nas mensagens, ela me atribui inteira responsabilidade por meus atos. De resto, seu principal objetivo sempre foi treinar a minha mediunidade, tanto que freqüentei as aulas no centro espírita e estou participando das sessões de desobsessão, recebendo, pelo menos, uma comunicação em cada reunião, e de espíritos diferentes.
— Nós podemos pensar em amenizar o desfecho da separação litigiosa...
— A separação foi amigável, tanto que eu me encontro com o pai dos meus filhos regularmente, acompanhando as crianças nos passeios que ele patrocina, mesmo porque nem completaram ainda três anos e se sentem felizes com os mimos que ele lhes traz.
— Tudo bem para a vida real. Nós estamos imaginando um desenvolvimento fantasioso para dar maior verossimilhança à caracterização das personagens. Do jeito que as coisas estão desenrolando-se, é como se vocês continuassem casados.
— De forma alguma. O que não pretendo jamais na vida é voltar a ter as mesmas ânsias e depressões por ver o meu marido sofrendo com o casamento, a ponto de fingir muitas vezes que estivera com outras mulheres apenas para causar-me uma revolta que me fizesse querer o divórcio.
— A isso eu chamo de litígio. Vocês não quiseram brigar na frente do juiz, mas nós podemos enfatizar as brigas e discussões, dando-lhe forte relevo dentro da história.
Rosalinda não se conformava com o que ouvia. Resolveu não responder de pronto, providenciando um café junto à cozinheira, ela mesma fazendo questão de preparar a mesa.
Após trocarem algumas palavras a respeito da decoração da sala, elogiada bastante por Noêmia, enquanto degustavam o café acompanhado de biscoitos doces e salgados, voltaram ao tema.
Foi Rosalinda quem propôs:
— Se você me prometer que me entrega o esqueleto do livro dentro de vinte dias, eu concordarei em modificá-lo, desde que me agradem as suas idéias depois de transformadas em texto. Não pense que tirei da cabeça o formato original. Estou apenas dando um pouco de corda a vocês dois, para verificar exatamente o que vocês gostam de editar.
— Rosalinda, leia os livros da nossa editora. Não fique apenas no círculo das obras espíritas. Se nós conseguirmos encaixar alguns textos integrais que você diz ter psicografado, faremos muito pelo Espiritismo, já que a intenção é dar a obra a ler pelas pessoas em geral. Falando bem francamente: você acha que os seus textos não têm equivalentes na literatura espírita? Comparando com certas obras do Chico Xavier...
— Quer saber o que eu acho? As obras do Chico tiveram a sua época. São pouquíssimas as pessoas que lêem mais de um livro dele e, assim mesmo, por recomendação expressa dos instrutores dos cursos, isto quando têm a mente aberta para outras obras além das de Kardec.
Depois de combinarem o preço a ser pago, despediram-se, cada qual imaginando quais seriam os próximos episódios daquela intrigante situação.
Noêmia ia com a convicção de que poderia escrever um romance ou uma novela, ainda que de sua própria autoria, caso Rosalinda não lhe aprovasse as idéias.
Rosalinda ficava com a intenção de manter a obra com os textos originais, suprimindo alguns e acrescentando outros mais recentes, o que constituiria um outro livro a ser lançado por outra editora.
Foi aí que lhe surgiu, no horizonte de seu tino empresarial, a idéia de aplicar os lucros das empresas na constituição de editora própria e de distribuidora. Na sua mente, cresceu a necessidade de publicar os autores novos, dada a tremenda dificuldade que ela mesma vinha encontrando. Decidiu, contudo, deixar que as idéias fermentassem, para não cair de borco no lamaçal dos perdedores.
Não gostou da imagem que formulara e apelou humildemente a Esmeralda que a ajudasse em mais aquela decisão, recebendo de imediato a intuição de que também os fracassos ensinam.
