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Contos-->O Castelo das Sombras e o Cacho de banana -- 21/07/2017 - 19:29 (LEANDRO TAVARES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

O Castelo das Sombras e o Cacho de banana

 

A mensagem veio à noite, por meio do sonho de um amigo.  A incerteza dos dias vindouros precisava de algumas respostas, mesmo que viessem a aparecer de forma inusitada.

— Alô!

— Quem fala?

— Sou eu, Rafael!

— Quem? Ratitu?

— Vai catar coquinho! — Cara, tu não sabe! Sonhei contigo essa noite. Um sonho muito doido. Parece até um sinal. Uma viagem muito maluca!  

— E o que qui viu?

— Sonhei que a gente tava num lugar cercado de muralhas. Era um lugar que, olhando de fora, aparentava ser bem organizado, mas por dentro era uma zona, uma bagunça completa.

— E o qui mais qui viu?  Vai falando qui escutando! — respondi mastigando um biscoito de chocolate. 

— Nesse lugar tinha um  carrasco que ficava infernizando a galera. Tipo assim, tinha genti de roupa social, genti de terno e gravata, genti de farda, de jaleco. Enfim, pessoas usando todos os tipos de uniformes que pode imaginar. Vi também o João, nosso amigo da alfândega.  Ele caminhava cabisbaixo. Tava bem triste, sabi. Vagava desolado pelo pátio do castelo.

— E comé que eu tava?

— Te vi no meio do pátio sozinho, tava sentado, apático. Falava pouco. Olhava quase sempre pra baixo e não sorria. Tinha uma expressão bem pálida também — O resto do pessoal só obedecia. Ia pra lá e pra cá. E o desejo de todo mundo era alcançar um cachu de banana que ficava no meio do pátio. Mas o carrasco não dexava ninguém por a mão nele. O infeliz gritava com todo mundo e ameaçava o tempo todo com um chicote na mão. Afora o medo que a maioria tinha de ser punido por tentá provar das bananas.

— Hummm. Sonho  sugestivo o teu. Quê mais?

— Acontece que eu peguei uma banana escondido, enquanto o carrasco tava distraído. Daí comi um pedaço muito pequeno de forma bem discreta e te entreguei a banana em seguida.

— E o que qui eu fiz com a banana?

— Rsrsrsrsrsrsrs!  Você descascou ela e começou a comer na frente de todo mundo! Depois começou a rir — felizão! E o que mais impressionou: tirou a bota e foi embora discalçu, rindo feito uma criança por poder caminhar sem bota e mastigar a banana que todos desejavam, mas que não podiam ou não tinham a mesma coragem para fazê-lo!

— E o carrasco?

— Ficou perplexo. Não sabia o que falar. O resto das pessoas ficou olhando a cena, meio que boquiabertas, sabi. Ouvi algumas comentando: “Caramba, o Sebastião foi embora descalço, meu! Inacreditável!”. Foi um zum-zum-zum danado por causa disso.

— Comigo já foi diferente. Começei a bater os braços e, quando percebi, estava voando. Sobrevoei o lugar, que lembrava um castelo. Pra quem estava lá embaixo, aparentava ser o Templo da Ordem. Porém, quando avistei de cima o pátio central, observei que era o Castelo da Desordem.  Vi também muita escuridão. Lembrava um purgatório. E lá de cima era nítido o sofrimento e a angústia dos que nele estavam. As sombras vagavam por entre as almas, inquietando-as. Escutava-se nitidamente  gemidos agonizantes de tristeza e dor. O problema foi que, apesar de voar, eu não conseguia me desvincular  daquele lugar.

— Mas por que você decidiu voltar?

—Eu fui, mas tive que voltá, pois sabia que precisava ajudar outras pessoas. Ia, mas sempre voltava. — Mas contigo foi diferente! Você foi e não voltou mais! E, depois do teu ato de coragem, vi outras pessoas tirarem seus calçados e provar da banana. Logo em seguida olhei pros muros do castelo. Começaram a tremer. E um raio de luz incidiu sobre o cachu. Foi quando, todos os presentes, inclusive o carrasco, passaram a vislumbrá-lo. Alguns olhavam com espanto. Outros, com encanto. Foi uma cena paralizante.

O cacho de banana ganhou a atenção que sempre merecera, mas que era vetada pelo carrasco. O raio de luz que o iluminou mostrou aos prisioneiros do castelo o quanto provar dos frutos do cacho é valioso. Mas o castelo era possessivo e precisava manter prisioneiras as almas. Sua liberdade significava o colapso das muralhas, o reino da luz e o consequente fim da escuridão. E o que é mais maquiavélico: o castelo se nutria da energia dos espíritos que aprisionava. A cada alma que entrava no lugar, mais se expandia a espessura das muralhas e mais se fortalecia o sistema, às custas da energia vital daqueles que a ele estavam subjugados.

— Vou anotar isso tudo. Conheço uma senhora de São Tomé das Letras que interpreta sonhos. Dizem que sabe muito de alquimia, sinais, mensagens, tarô, runas,   essas coisas místicas. No mês que vem vou pra lá. Depois te passo o que ela me disse. Preciso desligar agora. Tô atrasado pra aula de violão.

— Beleza! A gente se fala depois então. Abraçu!

Abraçu! Valeu!

(...)

São Tomé das Letras.

Minas Gerais.

Tardinhagelada de um sábado de inverno.

Tim-dom! Tim-dom!

Uma senhora de avental azul marinho abriu a porta bem devagar.

— Oiii! Bom dia moçu! Do qué qui o  sinhorrr precisa?

— Bom dia sinhora! Aqui ki é a casa da Dona Maricota?

Issuuu, meu rapaiz! Ela tá na cuzinha. chamá ela pru sinhorr. Minutim só, tá!?

“ Tia Maricotaaaa!!! Tem um moçu querendo falar com a sinhora aqui fora!”

manda intrar Terezinha! Fala com eli pra vi aqui na cuzinha!

Pódi entrar moçu! Só num repara não viu, porque aki é casa di pobri .

— Que nada minha sinhora! Reparu não!

— Toma cuidadu com esse degrau aqui. Já caiu muita genti neli sabi.

Senti sua mão quente aquecer as minhas. Me agachei pra conversar com ela no mesmo nível da cadeira de rodas. Foi a primeira vez que vi uma idosa usando cabelos soltos. Tapavam a metade de seu rosto pelancudo.  Sua alvura contrastava com a cor de sua pele. Quando tocou minhas mãos, meu corpo arrepiou e senti um frio na barriga.

Olhei seus olhos, e vi neles o brilho de um cristal.

— O que ti traiz aki meu jovem?

— Preciso decifrar um sonho, Dona Maricota. Me disseram que a sinhora sabe fazer isso muito bem.

— Possu tentar! Ajoelha aqui nus meus que vô fazê uma oração.

Com suas mãos sobrepostas à minha cabeça ela fechou os olhos e rezou em voz baixa. Não consegui entender o que falava. Era um zunido repetitivo e enfadonho.

Pega aquela cadeira e senta aqui na minha frente.

Empalidecida, aparentando estar em algum tipo de transe espiritual, continuou:

Infia a mão nessa caixa de papelão embaixo da mesa e pega uma fruta.

Coloquei sobre a mesa uma banana verde.

— Agora pega outra e coloca du lado da primeira.

Apanhei  uma banana podre.

— Pega mais uma e deixa as três, uma do lado da outra.

Enfileirei com as outras uma banana amarelinha.

— Meu jóvi rapaiz! Se ocê tivéssi cum fomi. Qualé das treis ki ocê ia iscolhê?

“Será que ela tá falando sério”, me perguntei em pensamento.

— É claru qui a amarelinha!

Me olhou. Abaixou a cabeça. Depois olhou pra porta que dava vista para a horta do quintal. Deu um suspiro:

— Num é sempre assim não rapaizim! Sabi purquê?

— Sei não sinhora!

Purquê nim sempri vai pudê isculhê o tipo de banana qui vai aparicê nu seu caminhu.

— Mas o qui qui eu ia pudê fazê com uma banana verde e outra podre?

— Sem sabiduria, nada! Maissss, cê sabia qui dá pra fazê doci cum banana verde? E cum a podre cê pódi separar algumas partizinhas piquininha pra cumê, ou intão jugá no rio pra servir de isca prus pexi? Na verdade, nóis têm ki sabê fazê du limão a limonada sabi, pra prová dá vida ki Deus nus deu.  Vivê é prová da vida meu rapaizim! Si ocê num sentiu u gostu da vida, cê num viveu. Mais a vida é dus omi livre. Us  iscravos num tém vida. Cê pricisa sê um capitão pra sê livri. Mais naum um capitão di um navio, ô di um fábrica. Cê precisa sê o capitão da sua vida! O guia de seu própriu barco, purquê assim cê vai pudê navegar livri pelo oceano e si aventurar ondi quisé i quandu quisé.

Capitão da minha vida”. Nunca tinha escutado essa expressão. Tem capitão de tanta coisa por ai. Capitão disso, daquilo, daquela instituição, daquele barco, daquela companhia, daquela tropa, daquela empresa. Mas nem por isso capitaneiam suas próprias vidas, o que é paradoxal. O sujeito é líder de uma grande empresa. Mas não é livre, e nem tem tempo para liderar sua própria vida. É capitão de algo que não lhe pertence, mas não é capitão daquilo que de fato lhe é intrínseco. Lidera o mundo, e esquece de conduzir seu próprio destino...

Possu contar o sonho pra senhora?

Num pricisa naum meu rapaizim! Era issu o que tinha pra ti dizê!  Ninguém mió ki ocê pra fazê issu! — aceita um cafézim antes di i imbora?

Aceitu sim sinhóra!

— Tereziiinhaa! Traiz um cafézim pro moçu aqui. — Com ô sim açúcar, meu fio?

— Com pôca açúçar Dona Maricota!

Se a Terezinha não tivesse derramado mais da metade do café na minha camisa eu teria saído dali mais vislumbrado do que irritado. A sobrinha dela estava prestes a fechar a porta. Olhei pra trás. Dona Maricota acenava um tchauzinho com as mãos, sentada em sua cadeira de rodas. Acenei de volta.

A porta se fechou.

Caminhei rua acima até chegar no alto da Pirâmide. A imensa bola de fogo descia vagarosamente no horizonte. Alguns assistiam em silêncio, outros sorrindo, outros cantando, outros se abraçando e se beijando. Um curitibano tocava uma sitar a dois metros de onde me sentei, cantando Kajra Re Naina. E, quando a bola desapareceu no horizonte, a multidão aplaudiu de pé, ovacionando o espetáculo do astro que nos mantém vivos e aquecidos.

Levantei-me. Estiquei os braços. Alonguei o pescoço. Atrás de mim, um casal segurava um menino no colo.

Sorriam. Choravam de tanto rir.  

Foi quando o último raio do sol tocou a penca de banana que degustavam, iluminando, também, seus sorrisos.

(...)

Uma semana depois liguei pro Ratito. Mas ninguém atendeu. Enviei uma mensagem pelo whatsapp e ele me mandou uma foto. A praia de Caraíva, na Bahia, preenchia o pano de fundo.  Com seu filho no colo, segurava um cacho de banana maduro. O guri sorria faceiro. O pai, descalço. E a bola de fogo se punha no horizonte do mar, inundando o sorriso dos dois.

E o sol, mais uma vez, iluminou o cacho de banana, mostrando o que realmente importa nesta vida...

“ Caminhar descalço na areia da praia.

         Provar das frutas do cacho.

               E sorrir...

                             ... porque a vida

                                                          ...não acontece dentro dos muros do Castelo.”

Por Leandro Tavares

Rio de Janeiro, 14 de julho de 2017

Comentarios

Leo  - 01/02/2020

Muito bom! Temos que nos libertar dos castelos que nos aprisionam.

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