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Contos-->Nelsin do Gaiz -- 07/06/2017 - 20:20 (LEANDRO TAVARES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

Nelsin do Gaiz

 

Pra você me lê agora: bom dia!  Ou boa tarde! Ou boa noite! Ou boa madrugada! Prefiro não falar meu nome, porque tenho certeza que o anonimato se identifica com milhões de identidades, complexas e indefiníveis. Anonimato é sinônimo de povo, que significa algo que ainda não tem um significado consensual e concreto. O que é povo? O povo não tem nome. É anônimo.

Semana passada li todas estas palavras nos muros da cidade de São Paulo:

— Companhia. Amizade. Coleguismo. Hipocrisia. Falsidade. Interesse. Sinceridade. Demagogia. Aparência. Ironia. Jogo. Status. Projeção social. Riqueza. Pobreza. Fama. Mentira. Fashion. Cafona. Ridículo. Anonimato. Iniciativa. Drogas. Sucesso. Passividade. Marketing. — Cachorro do mato!

Também me chamaram de bicha, de otário, de ladrão, de esquerdopata, de fascista, de gay, de homofóbico, de médico mercenário, de político safado, de macaco, de ditador, de advogado ladrão, de 171, de puta sem vergonha, de porco fardado, de traveco glamouroso, de filho da puta, de verme e outros nomes que nem sequer me lembro mais. Todavia, só fiquei triste por um motivo: — Não me chamaram pelo nome que me identifica e com o qual também me identifico. Mas tudo bem! Prefiro me conformar com a ignorância alheia do que insistir em mostrar-lhes algo que não têm interesse algum em saber. Discutir com conceitos fossilizados dentro de cérebros também fossilizados não é o caso. É frustrante e improfícuo.

E pra que você quer a faca? — Perguntou-me o pivete.

— Pra que serve uma faca muleke?

— Pra robá, ué. Tem alguma outra utilidade?

— Sempre tem! Essa utilidade a gente inventa na hora. O problema não é a faca, mas como e para que se usa ela.

Pedi emprestada a faca do pivete que caminhava ao meu lado. Ele me olhou desconfiado. Disse–lhe que seria só por alguns instantes, que não iria ficar com ela pra mim. Como garantia do empréstimo, dei-lhe uma nota de cinquenta reais. Ele parecia ser um pivete confiável, apesar de carregar uma faca e um revólver 32 — este saliente na cintura da bermuda que usava.     

Parece que essa noite de sábado vai bombar! — Vou pra Vila, meu chapa! Não é Vila Isabel, mas pra vila dos manu, meu. Vou caminhando pela Paulista até chegar lá. Na altura do primeiro sinal já vejo uma turma de Emo atravessando a avenida. Uma das garotas, a mais baixa do grupo, usava quatro brincos prateados em uma das orelhas e a outra tinha cinco nos lábios e dois piercings na língua.  O manu que tava com elas era bem esbelto e tinha quase dois metros de altura e usava uma calça preta, camiseta regada roxa e tinha o cabelo pintado de  cinza. O magrão andava de mão dada com uma (a baixinha), mas beijava a boca da outra, que estava toda de vermelho, dos pés à cabeça. Um trio amoroso emblemático da multidiversidade tribal da terra da garoa. Cada um que encontre a sua tribo e dela extraia o seu ouro, ou a sua prata!  — Essa é lei da terra dos bandeirantes. Mas não se esqueça de um detalhe: água e óleo não se misturam. Nenhum processo químico ou físico pode fazer isso — até onde minha ignorância em química e física me fazem ver.

Olhei pro outro lado da avenida e vi uma casa cuja fachada havia sido pintada com várias cores. Curioso com o movimento na frente do lugar, acabei atravessando a rua pra ver o que tava rolando por lá.

...

— Dá licença Manu! Beleza?

— Boa tarrrde senhorrr!  A fila começa do outro lado da casa.

— Putzzzz — lamentei discretamente tentando sufocar o movimento dos lábios.

Olhei pro outro lado da rua e o pivete não estava mais lá. “Acho que ele vai voltar mais tarde pra pegar a faca dele.” — pensei com uma gota de esperança, uma garrafa de ingenuidade e um mar de ceticismo e arrependimento.  

A gota me disse: — ele vai voltar.

Já a garrafa: — você é muito troxa!

E o mar completou: — Seu barco afundou, amigo. Vou te engolir com minhas ondas gigantes, por completo, seu otário!

Mantive o silêncio. Nem  a gota, nem a garrafa e nem o mar conseguem prever o futuro. “Pode ser que essa nota de cinquenta reais volte um dia pro meu bolso, e a faca retorne para o seu genuíno proprietário.” — concluí minha desilusão com esse pensamento.

Fiquei na fila por quinze minutos e entrei na casa multicolorida. Logo na entrada a recepcionista me encaminhou para uma outra garota que era responsável por fazer o cadastro dos visitantes do evento.

— Boa tarde senhor! Bem vindo ao Nike future. Só preciso que o senhor me fale seu email e telefone.

— Ok. Sem problemas. Email: tocomsorte@hotmail.com.  Celular: 4580999.

— Vou colocar essa pulseira no pulso do senhor. Só peço que retire ela depois de sair do local, ok !?.

— Certim! Obrigado.

Dei as costas pra moça e virei à direita. Na sala da casa havia um sofá de veludo roxo, e sentadas nele várias pessoas, as quais experimentavam os tênis mais modernos do mercado. Foi quando me lembrei do meu, o qual já havia passado da hora de ser rendido.

— Quanto custa esse azul e vermelho aqui, por favor? — Perguntei para a atendente apontando para o tênis.

— À vista, tá saindo por R$ 700,00. Mas podemos fazer um descontinho bacana pro senhor.

— Quantos por cento?

— 10 no cartão de crédito, 15 no de débito ou 20 no dinheiro.

O tênis era de fato muito bom, muito embora o preço não fosse nem um pouco aprazível pra minha realidade.  Abaixei a cabeça. Olhei para o velho andarilho de guerra.  E ele me disse:

— Não me troque por esse Nike de playboy, pooorrrr favorrr! Tá certo que to meio surrado. Mas sei muito da tua vida. Se me trocar por esse ser moderno, vou contar tudo da tua trajetória pra quem não deve saber dela! E não se esqueça de uma coisa: percorri metade dos teus dias do teu lado. Te dei conforto. Te livrei de pregos, tachinhas, espinhos e até de picadas de animais peçonhentos. Agora, depois de tudo que fiz por ti, você quer me trocar por um tenizinho de marca que não conhece nada da vida, e muito menos de você! Não sou apenas a principal testemunha da tua história. Sou, antes de tudo, o teu cúmplice de todas as horas, mesmo daquelas nas quais o teu terrível chulé me transformou num ser abominável e rejeitado por todos que me cercavam. E outra: esse moderninho vai esvaziar teu bolso por alguns meses em árduas prestações com juros invisíveis embutidos!

Suspirei depois desse discurso de cobrança e, sem dizer-lhe uma palavra, retirei-me da casa multicolorida dos moderninhos. E meu acabadinho me acompanhou com lealdade, como de praxe. Apesar do sermão, senti que ele estava mais tranquilo depois daquele desabafo. Parecia um outro calçado e, por isso, mais leve. “Como um desabafo alivia”, refleti.  

Caminhamos juntos.

Fiquei silente até chegar ao meu destino: Vila Madalena.

Já era onze da noite e a lua cheia tentava se despir pra São Paulo, não fossem as cortinas de fumaça do céu cinzento se oporem à sua pretensão. E a faca do pivete?  — Me cobrou o consciente, depois de uma alfinetada de leve do  inconsciente inferior.

— Tá na cintura, meu amigo! Não esqueça de devolvê-la pro garoto.

— Se ele aparecer, o farei. Caso contrário, vou levá-la pra sitio do tio Jorgim — respondi.

Cheguei na rua Paulistânia.  Caminhei com Harmonia e parei pra ver um Girassol que era iluminado pela luz de um poste.  Foi quando um feiticeiro chamado Wisard saiu de trás de uma árvore e jogou Purpurina em meio rosto. Sem que eu tivesse tempo pra responder ou reagir, ele me exortou: — Que a tua noite tenha o brilho que esta purpurina lhe trouxe e que você tenha a sorte de beber uma boa e gelada cerveja Original.  Bem vindo à Vila Madalena!

E desapareceu em meio às suas sombras, as quais se esvaíram em pequenos pedaços para todos os cantos escuros da Paulistânia. Não me disse nada além daquelas palavras. Só me lembro da natureza grave de sua voz, a qual tocou o ponto central de minha alma, fazendo-a tremer, sem, contudo, machucá-la.  

Perplexo, me pus a caminhar novamente. Comecei a pensar sobre aquele fato que acabara de acontecer: um feiticeiro me jogando purpurina e me desejando boas vindas. Essa Vila Madalena deve ter algo mágico ou místico, cogitei. Tomara que as palavras do feiticeiro não sejam enigmáticas nem conotativas. Torço pra que sejam a mais exata denotação! “Feitiços podem atrair bênçãos e também maldições.”, costumava dizer minha avó. Mas a maldição de hoje pode se transmutar na benção de amanhã, ou vice-versa.

Parei na porta de um boteco. Algumas pessoas ali estavam aos farrapos, na vila que no passado teve esse nome. Vila dos Farrapos. Hoje, Vila Madalena.  E, na minha frente, estavam os Farrapos da Madalena: homens e mulheres, jovens e até algumas crianças. Ali percebi o que um bar pode representar. Ele é uma oca de uma tribo inteira. Quem o frequenta se identifica com o ambiente, com as pessoas que o frequentam, com a música que ali toca, com o tipo de roupa que se veste e com a atmosfera do lugar.

— Mas todos estavam aos Farrapos? — você me pergunta.

Respondo:

— Todos eram humanos. Logo, farrapos por natureza.

— Com licença! Boa noiti! Por favor, vocês sabem de alguma lugar bacana pra ir hoje? — perguntei a um grupo de três garotas que estavam em pé conversando e bebendo cerveja.

— Olha, se você descer essa rua e virar à direita vai encontrar um bem legal. Música dos anos 80. Se você curte, lá é um lugar bem bacana.

— Obrigado. Desculpa o incômodo! Com licença.

— De nada! Divirta-se.

Desci a rua e virei à direita. Um segurança em cada esquina e mais quatro na entrada. A fila não estava das maiores. Fui pro lado oposto da rua e fiquei observando o movimento pra ver se valia ou não a pena entrar. Me aproximei do segurança que estava do mesmo lado da rua que eu.

— Com licença. Por favor, sabe o que vai rolar ai hoje?

— Manu, isso vai bombar hoje! Daqui um hora ninguém mais vai conseguir entrar. Juba do vôlei, Ambrózio fenômeno, Romildo, Joaquim (cantor da banda rotasexz) e mais três atriz tão no camarote. Muita celebridade ai hoje. E a banda que vai tocar é presença, saca? Banda Mobralexir.

Celebridades. — Essa palavra começou a martelar em minha mente.

Celebridades. Celebridades. Celebridades.

Me perguntei em pensamento: — Quem são as celebridades da minha vida?  Quem são os famosos que contribuíram para que eu fosse a pessoa que sou? O que elas fizeram por mim? Será que eu as venero? Por que são celebridades?

Cessaram as perguntas da minha mente.

— Quanto tá a entrada?

— R$ 50,00, ou então R$ 100,00 convertido em consumação?

— Ok.  Vou ficar com a entrada sem consumação. “Vai que eu não goste do lugar. Pelo menos não vou precisar gastar tanto só pra ver o que há de bom nessa festa” — pensei.

Logo que entrei no salão vi que o camarote estava cheio. Proporcionalmente, o espaço lá era três vezes menor que o salão, mas a quantidade de pessoas era suficiente pra deixar o ambiente desagradável. Na parte debaixo não estava tão cheio assim. E por que tanta desproporção habitacional?

Me aproximei da escada que dava acesso ao espaço dos VIPs. Parei próximo do segurança, ao lado do corrimão. Duas mulheres com aparência de quarentonas perguntaram-lhe o valor do acesso à área VIP. Ele disse que a entrada era restrita a convidados especiais.

Fui no caixa, comprei uma caipirinha de maracujá e retornei pro lado da escada. Quando estava chegando próximo do corrimão, dois rapazes de vinte e tantos anos subiram a escada. O segurança nada lhes perguntou. Também não usavam pulseira nem uniformes de trabalho. Estavam bem vestidos na verdade: camisa social de grife, relógios caros e um penteado clássico de quem pagou o melhor dos cabeleireiros.

Mas o rosto deles brilhava.

Wisard.

A purpurina.

Seria a purpurina o código de identificação dos convidados especiais?

Dei uma volta pela boate. Caminhei até a entrada, voltei, pedi uma cerveja no balcão. Me aproximei do banheiro feminino pra ver o padrão da mulherada da festa.  Tinha de tudo ali. Não era uma festa de beldades, mas também não assustava com a quantidade de dragões por metro quadrado. Dava pra conseguir alguma coisa pelo menos. Fiquei mais um tempo na pista de dança olhando por cima pra ver se identificava uma possível presa. Vi umas três que me agradavam. Mas ainda era cedo pra tentar alguma coisa. Sem álcool na cabeça, a maioria delas continua fazendo pose de patricinha. Precisava apostar no tempo pra atacar no momento oportuno, naquele em que a fragilidade da caça não lhe permite muitas reações, e o caçador triunfa implacável.

Parei próximo de um segurança e fiquei aguardando as próximas pessoas que se dirigiam ao camarote. Vi duas garotas e um rapaz indo em direção à escada de acesso à área VIP. De forma bem discreta, caminhei atrás deles. E, mantendo a firmeza psicológica de quem era um convidado do camarote, dei boa noite ao segurança da escada, olhando convicto em seus olhos. E ele só me respondeu com um cortês “Boa noite senhor!”.

Subi as escadas e cheguei ao paraíso das celebridades. Fui ao bar e pedi um uísque com energético. Avistei uma pequena mesa redonda próxima do parapeito que dava visada para a parte inferior da boate. Sozinho e observador, sentei e comecei a tomar alguns goles do meu uísque barato. A proporção de mulheres para cada homem era considerável, beirando quatro por um. No canto direito havia uma grande mesa retangular, cheia de combos de bebida, porções de petiscos e drinks sofisticados.  E ali se concentravam as mulheres mais belas da festa. No centro desse amontoado estavam os famosos que, juntos, eram o sol ao redor do qual orbitavam os planetas de seu sistema, sugando-lhes o calor da fama, da riqueza e da ostentação. Os planetas queriam seus status, suas famas, seus drinks e também seus genes milionários e famosos que podiam lhes invadir o ventre depois de uma noite de aventuras boêmias, brindando seus óvulos com um bilhete premiado de loteria.  Sorrisos maquiados, elogios forçados, poses elegantes e sensuais decoravam o teatro daquele sistema solar de aparências.

Não me identificava com aquela atmosfera. Era muito vazia pro meu coração sincero. Onde estavam meus amigos de verdade? Ou melhor, onde estava meu melhor amigo? .... Nelsin.

Levantei minha mão e chamei o garçon.

— Pois não, senhor! Em que mais posso ajudá-lo?

Queria fazer uma pergunta ao funcionário da casa. Mas primeiro era melhor fazer um pedido para conquistar sua simpatia.

— Com licença mano, posso ver o menu?

Sacou-o de seu avental e me entregou. Olhei por alto as opções com a visão seletiva de quem olha o preço antes de olhar o prato.

— Por favor, pode me trazer uma porção de batata frita com calabresa?

— Sim, claro! — respondeu ele.

— Demora quanto tempo pra ficar pronto?

— Uns dez minutim, no máximo.

— Beleza. Obrigado!

E quando ia se retirando, chamei-o novamente.

— Parceiro, queria uma informação. É que tenho um amigo que costuma vir aqui na Vila Madalena. Não sei se você o conhece, mas ele é bem conhecido por essa região. O nome dele é Nelsin. Ele é filho do seu João sapateiro, que trabalha na esquina próxima do metrô. Acho que ele entrega o gás aqui na Vila todo dia. É meu camarada de verdade sabe. Mas faz tempo que não o vejo. Acho que pra mais de sete anos. Você sabe quem é?

— Desculpa mano. Sei não. Cheguei em São Paulo há seis meses. Vim de Vitória.

— Espírito Santo?

— Não. Vitória de Santo Antão, Pernambuco.

— Ok. Entrei aqui hoje na esperança de encontrar com ele por acaso. Mas sei que isso seria difícil. Um dos seguranças me disse que a casa ia bombar hoje, pois muita gente famosa ia estar na casa essa noite.

Esperei minha porção de fritas com calabresa. Terminado o uísque, pedi uma  cerveja. E depois de quinze minutos chegou minha comida. O álcool já havia alterado um pouco da minha percepção. Mas a porção salgada veio pra amenizar a queda da minha pressão arterial, já em declínio.

Entediado com aquela cena galáctia, decidi deixar o lugar. O asco que senti daquela prostituição velada me convenceu a sair em retirada. “Vou pra outra festa, isso aqui não dá pra mim” — pensei, levantando-me da mesa. Agradeci o garçon vitoriano pela atendimento e desci as escadas do glamour patético. No caminho para o caixa uma garota de cabelos negros, pele morena e olhos verdes me olhou e sorriu de leve. Pra não perder a viagem, parei do seu lado, e sorri de volta, dizendo-lhe: — Não vou embora sem pedir teu telefone!

— Só isso que você quer? Apenas um número? — perguntou ela.

Fiquei perplexo com a pergunta dela. Não esperava uma resposta tão direta e resoluta. Mas gostei da atitude. Acredito que as mulheres também tem que ter um papel ativo no jogo da conquista.  

— Não sou medíocre! — disse, puxando-a pela cintura e beijando sua boca. Sem nem ao menos perguntar seu nome. O olhar e a atitude dela já sanavam todas as minhas dúvidas. Não errei no meu gesto invasor. E ali continuamos nos beijando, nos aquecendo e dançando. Bebemos mais e mais. Não senti o tempo passar. Quando olhei no grande relógio que estava pendurado atrás do palco, já eram cinco da manhã.

— Quer ir embora comigo, senhorita?

— Não! Não vou embora com você!

Senti um mal estar no ar, daqueles típicos de quem toma um fora bem dado, sem direito a contraditório. Já estava conformado em voltar sozinho pra pensão onde estava hospedado. Pelos menos a noite não foi em vão. Ao contrário, tinha sido até bem instigante.

A moça virou as costas sem dizer adeus. Foi para o caixa pagar sua conta e saiu pela porta com sua amiga, uma gordinha de feições italianas, largos brincos, saia preta e salto alto.

Fui ao banheiro esvaziar minha bexiga alcoólica. Ajeitei meu cabelo, minha camisa amassada pela morena assanhada e fui pra pista escutar Tendo a lua, dos Paralamas.

A pista já estava vazia. Poucas pessoas. Fim de noite notável. Fui pagar a conta cantando a música. “ Eu hoje joguei tanta coisa fora...Vi o meu passado, passar por mim, cartas e fotografias, gente que foi embora...”  E como a minha dama da noite tinha ido embora, não havia mais motivo para ali permanecer.

— Quatrocentos e cinquenta reais, senhor. Dinheiro ou cartão? — perguntou o caixa, o qual usava um boné verde e amarelo da seleção brasileira.

— Cartão. Débito, por favor— respondi, apavorado com a facada no peito. “Resto de mês na miséria”, pensei.

Naquele instante reconheci a voz do caixa. Era bem familiar. Logo que digitei a senha do cartão, ele levantou o rosto pra agradecer.

— Obrigado, senhor!

— De nada!

— Aminésio? É você?

— Calma ai! Nelsin? Caralho mano! É tú, meu velho? Como tu tá diferente cara! Pintou o cabelo, emagreceu. Nem te reconheci.

— Pois é Aminésio! Na verdade você que esqueceu que meu cabelo já estava pintado da última vez que te vi.

— É mesmo mano? Foi mal. É que tenho aminésia às vezes.

— Às vezes? Pelo que lembro quase sempre! Risos.

— Velho, bora lanchar depois que tu sair daqui!

— Vamos sim! Bora pra casa da minha prima depois! To dormindo na casa dela hoje. Vamos pegar uma piscina hoje à tarde.

— Feito! Ótima pedida!

 Aguardei mais trinta minutos até que Nelsin fosse liberado do trampo. Daí pegamos o Metrô para a zona leste. Descemos e andamos por mais vinte minutos, chegando ao apartamento por volta das sete horas. Nelsin tocou e campainha e sua prima veio abrir a porta.

— Bom dia prima! — disse-lhe, dando-lhe um abraço de bom dia.

— Bom dia primo!

— Trouxe um amigo meu pra dormir aqui hoje. Vou levar ele pra pegar uma piscina hoje à tarde.

E quando Nelsin abre a dianteira, quem encontro? A garota com quem dancei a noite inteira.

Ela sorriu feito uma menina de tanta alegria. E disse a Nelsin: — Você acredita que só não trouxe ele pra cá pra não te incomodar primo?

— Acredito prima. Sem dúvida alguma! Mas não adianta, o Aminésio sempre me incomodou. Amigos incomodam, mas fazem nossa vida mais feliz.

— E eu, durmo aonde aqui?

— Essa resposta é da dona da casa— disse Nelsin.

E ela, vermelha de tão feliz, me conduziu até seu quarto, um cômodo pequeno, todo pintado de rosa e ocupado ao centro por uma cama de casal de colcha bege, decorada ao centro por um urso de pelúcia marron.

E tentamos dormir, sem sucesso.  O calor da noite se estendeu pela manhã afora. E perdemos alguns quilinhos juntos, numa manhã de muito prazer e contentamento sexual.

E pensei: “Nenhuma celebridade me proporcionou esse momento. Se não fosse a amizade com o Nelsin, não estaria aqui deitado ao lado dessa gata.  Bendito seja o Nelsin!”

Romarildo, Runim do vôlei, Jocó do Barça, nenhum desses fez a minha noite mais feliz do que o Nelsin. O que me interessa ter presente numa festa pessoas que não conheço, que não fazem parte da minha vida, que nem sabem quem sou? O segurança tenta me convencer de entrar na festa pra ver pessoas que nunca vi na vida e que nem sequer sabem que existo!

Todavia, valeu a pena essa noite muito bem vivida! Reencontrei o Nelsin e ainda peguei uma gata — sua prima, que eu não conhecia.

Mas e a faca do pivete?

Honrei meu nome — esquecei de falar: o pivete era filho do Nelsin! Encontrei-0 dormindo no sofá da morena.

Se o mundo não fosse tão pequeno, as amizades verdadeiras não seriam tão grandes.  E, no fim das contas, as frustações viram piadas contadas entre amigos...

E, em função da minha amizade com o Nelsin, venceu a gota!

 

Rio de Janeiro, 06 de junho de 2017.

Por Leandro Tavares

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