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Contos-->EU MORO NA RUA MOÇO -- 02/05/2017 - 22:41 (LEANDRO TAVARES) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

EU MORO NA RUA MOÇO

 

Meu nome é Moralício.

 

Hoje tive uma surpresa quando saía de casa pra trabalhar.

O mendigo estava dormindo sobre seu papelão, ao lado de sua namorada. Por azar, ele não tinha um cão de guarda ao seu lado.  Mas dormiam tranquilos os dois. Eu caminhava atrás de um andarilho. Eram quatro e cinquenta da manhã. Precisava chegar à estação de General Osório às cinco em ponto, no horário da abertura das portões da estação, já que não podia perder o primeiro metrô da madrugada. Se o perdesse, o trem não teria paciência para me esperar na Central do Brasil, nem um minuto sequer. O metrô e o trem são extremamente impacientes.

O casal de mendigos dormia. Ao lado deles havia uma pequena caixa de papelão, dessas de embalar comida. Eu caminhava atrás do andarilho, a uns dez metros de distância. Levava minha mochila de trampo como fardo e, junto com ela, muita desconfiança e uma superatenção digna de quem se atreve a caminhar pelas ruas do Rio de Janeiro de madrugada, muito embora Ipanema não seja um bairro tão violento. Já havia tomado meu cafezinho do despertar numa lanchonete que fica exatamente na frente do posto policial da praça General Osório.

O andarilho parou ao lado do casal.

Diminuí o passo.  

Ele abaixou.

Parei.

Abriu a caixa. Viu o que tinha lá dentro. Extraiu dela um pão sírio.

Disse em voz baixa:  — Perdeu. E prosseguiu em sua perambulação.

— Bacana o que você fez hein! Show de bola! Se aproveitando que ele tá dormindo pra robá dele hein! Muito bacana sua atitude! — Disse-lhe enquanto o ultrapassava caminhando.

— Eu moro na rua moço!

— É. Sei. Mas teu companheiro que você roubou também mora! Morar na rua não justifica a tua desonestidade!

Ele foi pro canto da calçada enquanto falava comigo. Estava envergonhado. Não esperava que alguém estivesse lhe observando.

Parei ao seu lado.

Ele olhou pra mim com desconfiança. Fechou seus punhos. Seu rosto emitia uma expressão de medo mesclado com raiva.

Olhei em seus olhos.

Ele, nos meus.

— Não vou te bater. Vá lá e ponha a comida dele no lugar onde estava e volte aqui pra falar comigo.

— Ao cara ae! Tá achando que me manda, ô play boy?

— Não te mando! E nem sou playboy! Playboy não levanta de madrugada pra ir trabalhar. Faça o que te disse e volte aqui. Confia em mim!

— Qual a ideia? Tá me estranhando?

Com convicção e  voz firme lhe exortei: — Vá lá e faça o que eu te disse. Se não for por bem, irá com a ajuda da polícia.

Ele foi. Caminhou olhando de soslaio pra mim e resmungando.  

Abaixou com cuidado pra não acordar o suposto casal. Colocou o pão no lugar onde estava.

Caminhei em sua direção.

Ele bateu a mão no peito e me chamou pra luta corporal, sinalizando com as mãos.

Continuei caminhando em sua direção.

Parei a uns cinco metros de onde estava. Mantendo meu olhar fixo na reação dele, saquei uma nota de vinte reais do bolso esquerdo da calça.

— Está vendo esse dinheiro aqui? Sabe o que vou fazer com ele?

— Infia no cú, filho da puta!!!

— Não, seu mal educado! Esse aqui é o dinheiro do teu café!  Não te disse pra confiar em mim?

Surpreso, sem graça e ainda desconfiado, entrou em sintonia com o silêncio da madrugada. Sua expressão facial voltou ao normal, conquanto ainda estivesse presente em sua áurea os ares carregados da fúria recém dispensada e a desconfiança perene dos habitantes da selva de pedra.

— Toma! Estendi-lhe a mão esquerda com a nota de vinte reais.

Aproximou-se e esticou a mão para pegar o dinheiro.  A distância mais próxima entre nós foi a soma do comprimento do meu braço esquerdo com o braço direito dele.     

Astuto, puxou a nota de minha mão com rapidez. Afastou para o canto da calçada.

— Camarada! Entenda uma coisa: a tua condição não justifica a tua desonestidade. Aquele de quem você roubou o pão também mora na rua. E outra: você lhe subtraiu o café da manhã. Já imaginou a revolta e a decepção dele ao acordar e não achar o pão que guardou para a primeira refeição do dia? Como você se sentiria ao acordar com fome e descobrir que alguém roubou sua comida enquanto dormia?

Olhou pra mim envergonhado. Porém—convicto—, respondeu:

EU MORO NA RUA MOÇO!

E seguimos, cada um, o seu próprio rumo...

Eu, Moralício, da minha perspectiva de um mundo ideal: ética moralista.

Ele, do frio de uma madrugada de perambulação: ética da sobrevivência — o homem em seu estado de natureza, em meio aos leões de uma savana humana selvagem.

E essa resposta passou a rondar meu pensamento sempre que vejo um pedinte na rua:

EU MORO NA RUA MOÇO!

 

Por Leandro Tavares

Rio de Janeiro, 02 de maio de 2017.

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