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Artigos-->Em meio ao riso, a solidão (2) [uma resenha] -- 15/05/2001 - 21:37 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Bruce Chatwin foi um ladrão talentoso, um invasor sutil

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A frieza que certos contemporâneos viam em Chatwin ligava-se à urgência com que vivia. Só muito tarde é que ele próprio se descobriu escritor, e, a este escritor, não mais que treze anos lhe foram concedidos.



Só depois de descoberto o próprio talento para a literatura é que ele encontrou também os seus modelos: Hemingway, Flaubert e, algo totalmente inesperado, Racine.



Nesse trio tão disparatado, o que havia em comum era o método, o da brevidade significante, no verdadeiro sentido desta última palavra (e, no caso de Racine: marmórea), sem qualquer firula, um estilo da mais manifesta eficiência, que, em sua laconicidade, como por exemplo no primeiro dos "Trois contes de Flaubert", permite contar uma vida inteira.



Para chegar até esse ponto, Chatwin percorrera um atalho gigantesco, que haveria de terminar em fiasco. Por anos a fio, havia se envolvido com a idéia, já em si mesma nebulosa, do nomadismo. Seu instinto estava correto, uma vez que essa idéia, como sempre acontece, tinha a ver com a essência do seu ser. Mas era falso o método de que se utilizara.



Chatwin não era, e jamais deveria se tornar um cientista, sendo antes, como todo grande escritor, um ladrão talentoso, um invasor sutil, que sabia aonde ir buscar o de que carecia para os seus livros.



O que, para certas testemunhas presentes nesta biografia, é motivo para detestá-lo de modo pouco comum, pois determinadas formas da mentira, aquelas que tem por finalidade criar uma verdade, acabam esbarrando, sempre, na guarda fronteiriça composta pelos que querem vigiar essa terra de ninguém entre a aparência e a realidade.



Lógico, talvez, é o fato de Nicholas Shakespeare, patrício de Chatwin nascido em 1957, ter dado a palavra de modo tão exaustivo ao coro de lamúrias - num panorama de tal modo extenso, ele naturalmente se conta como sendo um deles -, ainda que isso me decepcione um pouco em alguém que também escreve, ele próprio, literatura de ficção.



Que mal pode haver, por exemplo, em Chatwin transportar a história, de uma noite de bebedeira em Leningrado, para Moscou (em: "Que faço eu aqui"), e em transformar, a posteriori, um soneto de Shakespeare - que ele, postado sobre a mesa, declamou na ocasião -, na longa passagem inicial de Orsino em "Was ihr wollt"?



Pode ser terrivel para aqueles que estiveram presentes, mas a verdade é que o leitor simplesmente lê uma bela história de uma festa regada a álcool em fartas quantidades.



[...........]



Terá conseguido Nicholas Shakespeare o anseado conceito da "completa objetividade"? Talvez não. Eu mesmo o tenho por desnecessário e, certamente, impossível, já porque, a outros, o derradeiro acesso secreto, aquele que conduz ao interior daquele que se pretende descrever, aos compartimentos ocultos nos quais se dá o diálogo do indivíduo consigo próprio, continua como sempre vedado. O leitor tem a possibilidade de ponderar.



Neste livro são emitidos tantos juízos de valor a respeito de Chatwin, até mesmo sobre o modo como ele veio a falecer e sobre como ele tratou a sua doença, que o leitor se sente como que igualmente instado a promover, ele próprio, uma condenação moral. A isso eu me oponho.



Por um bom tempo, Chatwin não queria saber que estava doente de Aids. Na China, ele havia tomado um cogumelo dos mais raros, o que, a princípio, acabou confundindo os médicos, e a estes ele se apegava, porque jamais aceitara a própria bissexualidade, e, eu penso, porque isso, qual um instrumento inalienável, fazia parte da pantomima, de não ser tão transparentemente visível.



Na biografia, ao contrário, várias vozes homossexuais pensam que Chatwin deveria ter assumido a própria homossexualidade, pensamento este que surge acompanhado da frase ominosa: "Mas certas pessoas acreditam que ele teria podido escrever melhores romances e ser uma pessoa mais significativa, se, em face da morte, não tivesse sido tão tipicamente Bruce ."



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Falávamos sobre lugares e sobre leite e mel

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Na verdade, isso não passa de nonsense. Ninguém rapidamente se transforma em outra pessoa diante da morte, só para prestar um favor às outras pessoas. Mas, por seu anonimato, o boateiro "certas pessoas" cheira a suspeita, e, com isso, retorno à idéia da objetividade.



Como soaria se alguém, mais tarde, viesse a dizer que Nicholas Shakespeare teria podido se tornar um escritor maior do que foi, não tivesse ele, por oito anos, carregado consigo o cadáver de um outro escritor?



É claro que se trata de um nonsense inadmissível, mas é o que resulta, em todo caso, ao se especular, com a ajuda de outras vozes, sobre que tipo de escritor alguém possivelmente poderia ter sido, quando o que interessa é saber que tipo de escritor ele na realidade foi.



No começo do ano passado, em Adelaide, pude presenciar uma discussão pública entre Nicholas Shadespeare e o poeta australiano Kevin Hart. O tom do diálogo era, na minha memória, de decepção, como se não conseguissem ambos, inteiramente, perdoarem-se a si mesmos terem-se deixado deixado levar por Chatwin, a acreditar na imagem mítico-romântica que ele próprio de si mesmo havia projetado.



No caso de Shakespeare, talvez isso seja apenas natural. Ninguém passa impunemente oito anos de sua vida a juntar milhares de imagens espelhadas de alguém que só consegue se manifestar com o auxílio do que ele próprio uma vez escreveu.



Foi um trabalho gigantesco, e, por paradoxal que possa soar depois de tudo o que eu disse: Estou feliz por Nicholas Shakespeare ter escrito este livro. Por mais controvertido que seja, ele me levou de volta à única coisa que realmente interessa - aos livros que Chatwin deixou escritos.



Nos últimos tempos, tornei a lê-los todos ainda uma vez, "Na Patagônia", Sobre a montanha escura", "O vice-rei de Ouidah", "Utz" e "Caminhos de sonho". E os achei ainda igualmente fascinantes.



Ou, como escreveu Hans Magnus Enzensberger, a seu tempo, no The Times Literary Supplement (16. 6. 1989): "Chatwin nunca produziu aquilo que era esperado por críticos e editores, ou pelo público leitor. Por não ter medo de nos decepcionar, ele nos surpreendia a cada virar de página. (...) Por certo, Chatwin haverá de permanecer, na lembrança, como contador de histórias, e sua falta será sentida - um contador de histórias que ultrapassa de muito os limites convencionais da literatura de ficção e, em suas narrativas, combina elementos da reportagem, da autobiografia, da etnologia, da tradição ensaística continental e da parolagem. Atrás do brilhantismo manifesto do texto, esconde-se algo de fantasmagórico, algo de Karges e de solitário e de comovente, como em Turgenew. Se retornamos a Bruce Chatwin, nele encontramos muitas coisas que ainda permanecem não ditas."



Há vinte anos, Chatwin visitou-me em minha casa em Amsterdã. Eu deveria entrevistá-lo para um jornal holandês. Diante da porta estava um homem que parecia ser mais alemão do que inglês, que parecia maior do que era, com cabelos bem louros, olhos azuis como gelo, casaco de feltro impermeabilizado.



Hoje, pela primeira vez desde então, tornei a ouvir a fita. Bem uma hora eu fiquei a espreitar a voz de um morto, e tudo estava ali, como na biografia sempre renovadamente descrita, o modo histriônico de falar, no qual toda a escala cromática é explorada, o francês perfeitamente articulado e, quando era o caso, esse mesmo francês, mas com sotaque africano, as histórias que, pelo freqüente narrar, adquiriram uma forma perfeita, a tentação, a imitação, a escancarada solidão.



Falávamos sobre viajar e escrever, sobre lugares onde ambos estivemos, sobre leite e mel como emblemas do nomadismo e sobre o nomadismo como característica essencial da diáspora, e então, em meio a todo o riso e a todas as conversas fiadas, sobrevém a palavra "anxiety", "perpetual anxiety", a eterna angústia que faz parte da viagem.



Neste momento, toda a coqueteria costumava desaparecer. Ali estava sentado um homem, que levava uma vida sem compromissos para escrever os livros que ele tinha na cabeça.



Caso venha a conduzir ou a reconduzir leitores a Chatwin, não terá sido em vão a biografia escrita por Nicholas Shakespeare.



Ao leitor alemão, algumas coisas confusas serão poupadas, porque, no caso, um bom tradutor ou leitor pôs suas mãos à obra. Herman Bloch volta a ser Hermann Broch, Monsieur de Malraux pode prescindir do seu predicado de nobreza, o "musée" francês novamente se masculiniza, a espanhola Guadalupe deixa de ser francesa e, aquela "uma última ode" de Brahms, volta a se subdividir em três, deixando de se chamar "Von eviger Liebe die Mainacht sapsiche" [sic], para retornar aos três títulos originais: "Von ewiger Liebe", "Die Mainacht" e "Sapphische Ode". Mesmo o navio holandês "Statendam" recupera, na versão alemã, o seu próprio nome. Bravo!



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Nicholas Shakespeare: Bruce Chatwin. Eine Biographie; trad. do inglês por Anita Krätzer und Bernd Rullkötter; Kindler Verlag, Reinbek 2000; 828 pp., 78,- DM



(c) DIE ZEIT 09/2001



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