Todos os dias, sempre à s seis horas da manhã, impreterivelmente, quando eu estou vindo da Barra de São Miguel, encontro aquela alma generosíssima de trajes simples, segurando uma garrafa térmica com leite e café, a encher um surrado caneco de plástico de um pedinte sujo e desolado que escolheu a calçada lateral dos alicerces do prédio da Assembléia Legislativa, bem em frente à Igreja Matriz, para passar suas noites solitárias e frias.
O pedinte, sempre sentado e ainda coberto por lençóis feitos de sacos plásticos, devora um pão enorme que o bom homem lhe dá, traga o café com leite gulosamente, enquanto a outra alma espera que se finde o desjejum do velho. Traduzo aquela cena como sendo o espelho da perversa permissividade da nossa cegueira mesquinha para com o sofrimento alheio, fruto do modelo social em que vivemos.
Aquele homem, dono de alma iluminada, nem sabe que é por mim observado todos os dias e que me dá inspiração para escrever em verso e prosa. Devo exaltar o seu gesto de humanidade. Afinal, um ser como este, não podemos perdê-lo de vista, nunca. É fruto raro e de sabor delicioso. É muito mais que uma iguaria; é alma acesa pelos frutos do amor vivo de Cristo. Ave em extinção.
Quando chego com o meu carro ao pé da ladeira, onde todos os dias vejo aquele velho dormindo após varar a madrugada escura e triste, a primeira coisa que faço é diminuir a velocidade do automóvel e tentar acrescentar alguns segundos à visão da cena. Dá para refletir sobre aquele gesto e pensar em sua única causa: o desamor da humanidade. Se amássemos verdadeiramente ao próximo, não veríamos cena semelhante a esta que descrevo entristecido.
Admiro ainda mais o homem que fornece o alimento ao pedinte, procuro não me acostumar com a cena, quando o semáforo abre e tenho que prosseguir. O meu juízo arde com uma inveja benevolente daquele ser e até hoje, fora esta crónica, nada fiz por aquele velho, o que tenho de confessar publicamente. É uma outra grande falta para comigo mesmo e para com a sociedade como um todo, a qual não me perdóo. Tenho que saldar esse débito com Deus. Preciso mesmo!
Continuo a olhá-los pelo retrovisor do carro. Eles não sabem, mas eu os observo todos os dias quando por ali passo, de barriga cheia e montado em um carro novo e confortável. Deveria sentir com ele a agressão física das madrugadas frias e inseguras que só aquele velho pobre entende tão bem, sem cobrar do governo um só centavo do imposto recebido, para diminuir-lhe a miséria em que vive atolado até a alma.
A outra alma, a do homem generoso e simples, me enaltece como ser da criação. É por existirem homens dessa natureza que ainda há esperanças na construção de um mundo melhor do que este onde vivemos cegos, surdos e mudos ao sofrimento alheio.
Será que o governo não o vê? E o bispo da diocese? Os pastores evangélicos que gostam tanto do dízimo, onde estão? Acredito que só uns poucos pagadores de impostos é que tentam resolver aquela situação de extremo desconforto para o velho pedinte, no lugar dos verdadeiros responsáveis. Sei, muito bem, que não é preciso ter igrejas ou pertencer a associações de caridade para se ajudar ao próximo. Até eu poderia imbuir-me do mesmo silêncio generoso daquela alma boníssima e levar aquele velho para o conforto do meu lar. Só não o fiz ontem porque não encontrei dentro de mim, ainda, a generosidade que preciso ter, quando bato ao peito e digo: Sou um cristão vivo. Não amo o próximo como a mim mesmo; isso diz tudo o que quero. Amanhã, quem sabe?
Tantas reuniões governamentais, tantas ONGS, tantos shows beneficentes, tanta falácia e não se resolve nada vezes nada. Precisamos mudar e mudar rápido. Não nos sobra muito tempo. Arquitetemos algo de inusitado em prol dos nossos irmãos menos favorecidos e dos miseráveis que nos ficam bem mais distantes ainda, como este sujo e ignorante santo da ladeira.
Vou começar a ajudar-me, ajudando o velho sujo das madrugadas frias da calçada da Assembléia. Domingo, chamarei a imprensa local para assistir ao imundo ser comer lagosta ao Thermidor, sentado numa mesa limpíssima no melhor restaurante que encontrar na cidade. Isso dará o ibope necessário para decolarmos numa grande campanha contra a fome e o desprezo e a favor do amor a Deus e da paz do mundo. Não vou esperar mais pelas autoridades; vou fazer, amanhã, a minha parte e a parte de todos eles! Verei o quanto é esplêndido gostar de nós mesmos e, para tal, é imensamente preciso que amemos todos os velhos que, como este, sofrem tanto. A Lua nos dará o seu prêmio de presente e a natureza nos coroará com o prêmio maravilhoso de uma vida longa, saudável e muito feliz. Os céus não nos cobrarão nenhum imposto sobre isso que fizermos.