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Artigos-->Em meio ao riso, a solidão (1) [uma resenha] -- 13/05/2001 - 00:00 (José Pedro Antunes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
De como eu busquei pelo meu Bruce Chatwin na biografia de Nicholas Shakespeare, e não o encontrei



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De Cees Nooteboom

Trad. do holandês por Helga van Beuningen

Trad. do alemão por zé pedro antunes



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O noivo veste um terno elegante, que, sem dúvida, só pode ter sido confeccionado sob medida. Mantém o braço direito levemente estendido para que, os olhos fixos no chão, possa agarrá-lo a noiva. O homem olha diretamente para a câmera, com um olhar que poderíamos descrever como matreiro, um olhar de secreta cumplicidade, como se o fotógrafo, invisível, soubesse tratar-se, no caso, de uma charada notável, e não de um verdadeiro casamento.



Logo, da capela particular dos pais da noiva, o casal récem-abençoado haverá de seguir em direção a uma vida na qual os caminhos de ambos, milhares de vezes, se verão dissociados, uma selvagem coreografia de moscas pelos diversos continentes, que haverá de durar até que a morte outra vez, lentamente, e agora pela última vez, os tenha tornado a reunir.



Nas fotos posteriores, este homem nunca mais haverá de estar tão bem penteado. Nelas, terá a aparência de um fauno, de um mosqueteiro de costeletas chegando com atraso, um sedutor, um fatigado viajor em rota de descobertas. Mas sempre haverá de lançar um olhar direto e dominador para a câmera, como soem olhar para o espelho certas pessoas, nele buscando achar a confirmação de sua existência. Quem muito se ocupa com a ficção, tem suas razões para duvidar da autenticidade de tudo, inclusive da sua própria autenticidade.



Tem vinte e cinco anos de idade esse jovem da classe média inglesa. De maneira vertiginosamente rápida fez um nome brilhante na Sotheby s e, a despeito de uma precária formação em história da arte, já agora é tido como possuidor de um olhar infalível para a qualidade e para a autenticidade, bem como para o seu oposto, a falsificação.



Ainda não escreveu palavra. Tampouco sabe ainda o que irá fazer. Casa-se no seio da aristocracia americana e, ao que tudo indica, tem à sua frente um futuro brilhante. Vinte e três anos depois, em 1989, quando vem a falecer, acabava de completar 49 anos de idade, mundialmente conhecido como escritor, lenda e pedra de escândalo, a contradição em pessoa.



Homossexual e não homossexual, arqueólogo e arqueólogo coisa nenhuma, nômade e, outra vez, nômade algum, um homem afeito a fantasias, sempre a reiventar a própria vida desde o início, com todos os respectivos requisitos; homem de muitas vidas e, na verdade, de uma só vida.



E esta única vida é agora objeto de uma biografia abrangente. São mais de 800 páginas. Longa demais e, ao mesmo tempo, demasiado breve. No romance "The Biographer s Tale", de Antonia Byatts, publicado no ano passado, num ponto qualquer logo no início do primeiro capítulo, a persongem principal conversa com um professor de literatura sobre a questão: O que é, afinal, uma biografia?



A respeito, o professor observa tratar-se de um gênero pouco prestigiado, sendo, no entanto, uma arte, que consiste em produzir arranjos para os fatos. A essa afirmação, o inquiridor, que acabava de se decidir por arquivar os estudos de literatura, responde considerar a escritura das biografias uma forma híbrida, algo para amadores, histórias contadas por pessoas que não conseguem verdadeiramente desenvolver um pensamento sobre o que quer que seja, simplesmente "storys" cozidas para leitores sem olhar crítico, mais conversa fiada do que qualquer outra coisa.



"Aí tem coisa", admite o professor, "mas, na verdade, seria bom que não nos esquecêssemos de dois fatos.



Primeiro: a conversa fiada é uma parte constitutiva essencial da comunicação humana e, como tal, não pode ser desprezada.



Segundo: Uma grande biografia é algo de nobre. Nenhum ser humano é idêntico ao outro, que se pense um pouco nisso. Não somos clones. Do óvulo à decadência inexorável, cada um de nós é único.



O que haveria de mais belo (e nobre) do que, com o auxílio de uma biografia, poder detectar um ser humano por inteiro, uma obra completa? Que de qualidades - científicas, intelectuais, psicológicas e geográficas - não se precisa dispor, para elaborar algo dessa natureza?"



E a questão é exatamente esta. Como descrever, de maneira exaustiva, um ser humano? Estou velho o suficiente para já ter tido a oportunidade de ler biografias de pessoas (escritores) que conheci de perto, e o que fica é sempre o sentimento corrosivo de que o autor, justamente pela introdução aleatória de fatos, e pelo uso do método prismático, não fez justiça a alguém que conhecemos vivo.



O que se faz é, no tempo, encolher o espaço que alguém - para falar com Proust - ocupou, instaurando-se assim uma distorção, a ser superada talvez apenas quando não houver mais nenhuma pessoa a ter conhecido pessoalmente o biografado.



Ainda assim, a questão permanece: De centenas de conversas, histórias triviais, relatos de terceiros, de cartas e notícias, resultaria uma biografia fiel à verdade dos fatos? Ou não seria direito exigir algo desse tipo, a gente devendo antes se contentar com um apanhado de anotações não mais do que provisórias?



Tal significaria, no entanto, que o objeto de uma biografia tem seguir assim mesmo adiante através da História, tal como o colocou no papel o biógrafo (dele ou dela), e isso até surgir uma outra biografia - em se considerando possível que isso aconteça.



Pessoas vivas (nos casos de Sinatra ou Salinger) e viúvos (considere-se Picasso) podem pedir a palavra. Nabokov ainda podia esparzir veneno e bile sobre Andrew Field.



Já os mortos, sabe-se, não soem manifestar-se sobre a relação extraordinariamente íntima que algum sobrevivente possa achar de estabelecer com suas vidas. Os mortos dependem de espelhos a lhes reflitir a imagem. E com espelhos eu tenho em mente testemunhos dos contemporâneos.



No caso de Bruce Chatwin são muitos, mas muitos contemporâneos, e muitos, até mesmo uma sobrecarga gigantesca de testemunhos. À imagem dos espelhos, eu cheguei pelo método do biógrafo em questão.



Shakespeare decidiu-se por um mosaico de centenas de pequenos espelhos - o registro da edição inglesa compreende treze páginas com uma linha tripla de nomes impressos em caracteres miúdos.



Com todas essas pessoas, que, além disso, moram em todos os recantos da terra imagináveis, deve ter sido um trabalho gigantesco.



Amigos de juventude, colegas de escola, colecionadores de arte, conhecidos e amantes efêmeros, partícipes da cena homossexual, namoradas, colegas escritores, arqueólogos, antropólogos e etnólogos, jesuítas e monges ortodoxos gregos, médicos e membros da família, cada qual contribuiu com o seu espelho pequenino.



E os espelhos compõem uma amostragem. Da bichinha estridente e do esposo cronicamente infiel, ao escritor possuído e ao homem mortalmente solitário, que, qual um derviche dançarino, passou como um sopro de poeira pela terra, à procura daquele que, afinal, ele era, e aos livros que faziam parte dessa busca. Procede tal imagem? Quem poderia dizê-lo?



Perde-se às vezes, em meio a todos esses nomes duplos ingleses, entre o elogio, a anedota e o ressentimento, a visão panorâmica. Em desespero, o leitor folheia o livro de volta, tentando desvendar quem-acabou-mesmo-de-dizer-aquilo-que-ali-se-lê.



Chega-se à suspeita de que o biógrafo, nos oito anos que empregou na elaboração da obra, tenha pouco a pouco começado a detestar-lhe o objeto. Mas, em seguida, numa entrevista a um jornal espanhol, lê-se que submeteu-se ao preceito da objetividade a qualquer preço, mesmo ciente de que a viúva de Chatwin, que em todos esses anos permanecera incondicionalmente fiel ao marido, leria o livro antes de ele ser impresso.



E, mesmo assim, o que ali se lê tem, entre outras coisas, o caráter de um dossiê pericial. Um mito é destroçado ou, pelo menos, soterrado. A auto-encenada imagem de Chatwin sofre escoriações e é dissecada com pequenas e cirúrgicas observações à margem. Pinta-se um retrato, mas, ao mesmo tempo, tem lugar um acerto de contas. Em todo caso, sempre com o auxílio das línguas (malditas) de terceiros, de gente que sabe muito bem tudo o que Chatwin não era.



É como se, ao lado da imagem do herói reluzente, fosse preciso exorcizar uma outra, mais desoladora, a sombra de um duplo, um Chatwin mais desagradável, que ele sempre carregava consigo, e que, finalmente, deveria produzir os seus efeitos, sendo um escritor menor do que acreditava ser ou poderia ter sido.



O que menos se lhe perdoa, ao que me parece, é a ficção, ou são as ficções com as quais ele se movia pelo mundo. Pesa sobre ele, no caso, um moralismo que tem a mesma lógica passível de ser aplicada a um camaleão, ao acusá-lo de, quando necessário, assumir as cores do seu entorno. A menos que um verdadeiro moralista, naturalmente então, venha a dizer que um camaleão também não pode fazer outra coisa.



A questão é se Chatwin teria podido escrever, ou se teria escrito livros melhores. Era ambicioso e ávido por novidades, possuído pela infinita multiplicidade que o mundo oferece, suficientemente desvinculado para entrar nessa oferta sem limites. Poder-se-ia dizer: por trás disso, a aspiração de um indivíduo qualquer a ser cada uma das pessoas e, ainda que por um breve espaço de tempo, a pertencer a cada uma delas. Aspiração mais freqüentemente encontrável em pessoas que não pertencem verdadeiramente a ninguém.



Para tanto, Chatwin possuia o necessário, tendo-o em grande medida: um talento para a mímica, para a imitação, para a observação. Um dom que, em última instância, sempre tem a ver com o amor. Proust jamais teria podido escrever de forma tão maligna sobre as pessoas, não as tivesse primeiro impiedosamente observado. Para tanto, primeiro do que tudo se faz necessário amar a espécie, em todo o seu potencial para a mesquinharia e para a pequeneza.





[continua]
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